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Delito de Opinião

Adiantamento mental

José Meireles Graça, 08.06.22

A comunicação social não tem dado grande relevo ao facto de Portugal, pela segunda vez nos 47 anos de democracia, ter um adiantado mental no elenco governamental.

Não é um mago das finanças, está mais no ramo Pantone: o país terá um futuro cor-de-rosa se apostar na economia azul, há um negro passado de descaso e indiferença, e as perturbações no abastecimento de combustíveis dão um claro sinal amarelo, é o que se infere das muitas declarações que tem prodigalizado. A Oposição tem envolvido as declarações de Costa e Silva num manto de silêncio, mas não estará longe de, à medida que os planos ministeriais se vão concretizando, ficar verde de inveja.

A Task Force do Mar, com oito grupos de trabalho, já está a flutuar, o que prova que Lisboa tem todas as condições para se transformar numa espécie de praça financeira para a economia do mar. Uma balsa, portanto.

Costa e Silva está determinado a construir o greenshipping (não sei o que é mas parece coisa de grande engenho) em Sines, desenvolver os portos, digitalizar, modernizar e inseri-los na rede internacional, e diz:

Temos na eólica offshore um potencial imenso e a nossa eólica offshore tem potência suficiente que pode ser importante para se transformar na grande plataforma de apoio ao hidrogénio verde, mas o mar vai ser o futuro, com a eólica offshore e a electrólise da água, directamente da água do mar. Precisamos de grandes quantidades de hidrogénio.

Tudo leva a crer, portanto, assim a Costa deem tempo e meios, que teremos abundância de ar, água e fogo, embora quanto a este último o tempo ainda não esteja de feição.

Uma coisa que não podia faltar a este grande programa são os players, dos quais há muitos: a Fundação Oceano Azul, o Fórum dos Oceanos, a Marinha, a Universidade do Atlântico, diversas empresas do sector.

E é claro que esta revolução não tem passado despercebida lá fora: somos informados que este mês chegam a Lisboa 4000 empresários focados em investir na economia azul e que é preciso "um choque" para aproveitar todo o potencial.

E dinheiro? Não falta: Ele há fundos internacionais com montantes impressionantes e os 252 milhões da bazuca.

Isto a mim parece-me tudo muito fúcsia.

O Airbus A380

José Meireles Graça, 12.08.20

Quando o poeta Costa Silva fez o seu inspirado Plano sobre a forma como o país deveria torrar 45 mil milhões em fantasias tentei, e desisti, ler a coisa até ao fim. Comentei a parte que li, e presumi que o resto era igualmente disparate.

Desde então, diversas sumidades se têm pronunciado sobre o ponderoso estudo, com o louvável propósito de o demolir. Mas, ó desgraça, sucedeu o que tinha antecipado: “Por outro lado, no catálogo de intenções e medidas o principal vício não é serem umas e não outras – para esse peditório não faltam iluminados com visões, que decerto aparecerão quando estas ingentes matérias aparecerem sob a forma de iniciativas legislativas e decisões políticas, sobre as quais se vai debruçar o olho opinativo dos reformadores nacionais, que são legião”.

Ainda o arame cá não chegou e já gente de representação tem planos alternativos, isto é, não rejeita nem os apoios públicos selectivos de agentes económicos, nem a ideia de financiar investimentos privados com dinheiro dado, nem a previsão de evoluções e circunstâncias – apenas acha que espatifar incontáveis milhões no cenário a) é uma grande burrice, que todavia se transmuta em brilhante clarividência no cenário b).

A generalidade dos comentadores pega em dois ou três pontos, não no Plano completo, visto que este diz respeito a tudo e o seu contrário (com excepção de assuntos relativos a sexo, que estão dolorosamente omissos). Esta prudência justifica-se: fazer um Plano alternativo obrigaria a uma sólida formação em economia vudu e enciclopedismo.

Este André Vilares Morgado, engenheiro do progresso, “convoca”, dos dez eixos estratégicos apresentados no documento, “o quinto, em que o seu autor advoga que a reindustrialização do país deve assentar em empresas digitalmente integradas, isto é, ‘que casam o mundo físico e digital”. (A frase é de belo efeito e deve por certo querer dizer qualquer coisa).

Começa por concordar com a ideia da reindustrialização, esquissando as razões pelas quais a desindustrialização teve lugar, sem gastar sequer um parágrafo a explicar convincentemente por que razão esta última, continuando presentes as suas causas, verá o seu processo revertido por um conjunto de decisões administrativas. Devemos acreditar que o conjunto destas é necessário e suficiente. Mas não é, nem uma coisa nem outra, como se verá.

Que decisões administrativas portentosas são essas? São: i) A criação do Banco de Fomento; ii) A formação de empresários e dirigentes; iii) A criação de mecanismos que contribuam para contrariarem a tendência para a recusa da “partilha de ideias e na inovação”. “Em Portugal temos dificuldade em trabalhar uns com os outros, associarmo-nos, juntar forças e criar sinergias. Preferimos competir do que cooperar”, diz o preclaro e eu confirmo pela minha experiência, é tudo uma cambada de egoístas; iv) A criação de valor. Os empresários produzem sucata com pouco valor acrescentado, e isso não pode ser. Do que eles precisam é “de produtos que integrem mais complexidade e sofisticação… devendo, para esse efeito, apostar no design e recorrer a novos materiais e tecnologia”. Precisam disto mas sem esquecer que “não vão poder deixar de olhar para outras tecnologias que hoje ainda são vistas como emergentes — como, por exemplo, a nanotecnologia, realidade aumentada, machine learning e blockchain —, mas que, em breve, terão uma palavra a dizer sobre o desenho dos processos produtivos e a geração de novos modelos de negócio”. (O autor não informa, neste ponto, se os empresários não necessitarão igualmente de um aumento do consumo de benzodiazepinas, por causa da ansiedade, e de fósforo, para reforço da elasticidade das meninges); v) A captura de valor. Digamo-lo rudemente: os empresários são uns totós. Mas, felizmente, para combater essa alegada totozice basta a “implementação de processos de marketing robustos”.

Toma, Costa Silva, que já almoçaste, pelo menos num eixo. E os outros nove vão igualmente levar grandes sovas, que do que não há falta é de académicos que sabem perfeitamente como se torram dezenas de milhares de milhões de euros para fazer o país novo que os seus colegas anteriormente estuporaram, quando se dê o caso de, por serem novinhos, não terem sido eles mesmos a colaborar em tão patriótica tarefa.

Sucede que, por partes:

Já existe um banco público que financia investimentos, a Caixa Geral de Depósitos, e convinha portanto explicar em que é que um novo será diferente da Caixa, salvo pelo facto de ter uma outra administração, outros funcionários e outras instalações. A Caixa tem um passado de fomento de investimentos e de calotes, mas nada, absolutamente nada, na sua administração actual, apresenta contra-indicações específicas para um respeitável esbanjamento de fundos públicos. Nem a Caixa nem, já agora, os bancos privados, com excepção talvez do Novo Banco, a respeito do qual ainda ninguém percebeu se faz negócios ruinosos para engordar plutocratas e vigaristas ou se os negócios são normais, os valores do balanço original é que não. Donde, a criação de um banco de Fomento só parece uma boa ideia para quem dele directa ou indirectamente espere beneficiar.

Todos os anos, e de há muito, as faculdades de Economia e Gestão despejam no mercado de trabalho dezenas de economistas e gestores qualificadíssimos que se veem aflitos para encontrar emprego na função pública, em bancos, seguradoras e grandes empresas. Nas pequenas e médias nem por isso porque, lá está, os empresários que há, uma classe notavelmente vesga, não os querem por aí além. De modo que a alegada necessidade de formação dos empresários é uma resposta estúpida a uma pergunta errada. A pergunta certa é por que razão são tão poucas as pessoas com boa formação que fazem empresas. Dito de outro modo, pretende-se que quem não consegue criar emprego para si mesmo vá dar aulas a quem não quer empregar os que lhe querem dar aulas. Isto em doutorais cabeças faz todo o sentido. Na minha nem por isso. Talvez não fosse má ideia perguntar a uns quantos milhares de licenciados que já trabalhem há alguns anos: Tentou fazer uma empresa? Se não, porquê? Se sim, porque não conseguiu? Não é impossível que com as respostas, em particular à segunda pergunta, se aprendesse alguma coisa.

A “partilha de ideias e inovação”, e a preferência pela competição em vez da cooperação, que outros têm e nós não, é uma ideia comovente. Um espírito cínico como o meu, porém, atreve-se a duvidar de que seja realmente assim e presume prospectivamente que as pessoas cooperam se houver vantagens recíprocas evidentes, aqui e em toda a parte. E como essas vantagens têm provavelmente componentes fiscais que não estão presentes, e obstáculos que estão, a resposta deve encontrar-se não numa diferença cultural (que aliás, se existisse, não seria ultrapassável por diktats de gurus) mas em circunstâncias objectivas – que o autor não identifica.

O design, a tecnologia, a complexidade, a sofisticação e mais um par de botas surgem numa economia vibrante onde o capital exista em abundância, a respectiva remuneração também (em vez de um Fisco inimputável, predatório e sôfrego), o capital de risco idem para projectos avançados, o Estado e a sua miríade de agências funcione, incluindo os tribunais, haja abundância de empreendedores ambiciosos, de falhados que voltam a tentar, de sonhadores, de trabalhadores qualificados disponíveis, e um longo etc. Em suma, onde a economia cresça com naturalidade porque há condições para crescer, não porque uma mão-cheia de políticos, funcionários e académicos iluminados sem skin in the game decide quem investe o quê, quando e aonde.

Melhor fora que estas boas cabeças estudassem que condições objectivas criar para ajudar as empresas a nascer e crescer sem decisões casuísticas de poderes públicos; para que o Estado, em vez de estar por trás, saia da frente; como reformá-lo para o tornar mais leve, em todos os sentidos, não porque seja demasiado pesado em comparação com muitas economias mais avançadas mas porque essas economias não são avançadas por terem Estados pesados, mas sim porque podem – corpos musculados aguentam sem esforço mochilas mais pesadas. E, finalmente, explicassem porque se acredita que, suportando o mesmo peso, mas com corpos mais débeis e estradas piores, vamos correr mais do que os outros.

Enfim, mais uns retoques no Plano Costa Silva. Outros virão, com outras visões, outros sectores que é preciso promover, outras medidas que é indispensável tomar, outros aspectos que é preciso ter em conta, cada um segundo as suas crenças e as suas manias. De liberdade económica nicles, de reforma do Estado e fiscal zero, de liberdade de contratar e despedir nem mo-lo digas, nem, nem, nem.

Chamei ao post anterior sobre este assunto O Aero-Plano. Nome infeliz, creio bem que com todas as versões de planeamento vamos precisar de um Airbus A380. Senão de um paquete.

O Aero-Plano

José Meireles Graça, 23.07.20

Tinha decidido que iria ler pacientemente o Plano Costa Silva e comentá-lo, atento às necessidades de incontáveis milhares de cidadãos ansiosos que precisam conhecer a minha opinião para formar a deles. Porém, comecei e desisti a meio, aterrado: é um documento inacreditavelmente extenso, indigesto, repleto de certezas sobre geopolítica e economia contemporâneas que relevam ou de ignorância ou inconsciência, a par de uma impressionante falta de humildade, e prenhe de raciocínios voluntaristas repassados de uma grande dose de fé, que é apresentada quase como ciência. Comentar capítulo a capítulo daria um intragável post, mesmo que descartasse a palha, que é muita, e deixasse de lado aspectos menores. Poderia omitir também observações quando, no desparrame de investimentos públicos, concordasse, como é por exemplo o caso da ligação ao resto da Europa por caminho de ferro, para transporte de mercadorias. Mas mesmo assim: não poderia despachar loucuras como os investimentos faraónicos no hidrogénio ou no novo aeroporto de Lisboa. Em suma, Costa Silva é um chato topa-a-tudo, nem sequer merece que se cansem excessivamente as meninges a demolir o seu pedante exercício.

Por outro lado, no catálogo de intenções e medidas o principal vício não é serem umas e não outras – para esse peditório não faltam iluminados com visões, que decerto aparecerão quando estas ingentes matérias aparecerem sob a forma de iniciativas legislativas e decisões políticas, sobre as quais se vai debruçar o olho opinativo dos reformadores nacionais, que são legião.

O que segue é portanto uma apreciação genérica.

Maria de Lurdes Pintasilgo, justamente esquecida, foi primeira-ministra durante seis meses, em 1979, a convite de Ramalho Eanes, impressionado com a sua competência técnica (era engenheira química, como frau Merkel), a sua carreira profissional no sector privado (trabalhou na CUF), o seu percurso público (procuradora à Câmara Corporativa, secretária de Estado, ocupou vários cargos nacionais e internacionais em organizações do catolicismo militante, hoje decadente, e da promoção do mulherio, hoje florescente) e o seu palavreado: falava diluvianamente sobre o país, ao qual sabia perfeitamente o que convinha, e a palavra-chave do seu discurso era invariavelmente o plano. Para tudo faltavam planos, para tudo era necessário fazer planos, e não havia problema que um plano bem feito não resolvesse. Paz à sua alma, morreu em 2004.

O futuro viria a confirmar a sua visão: desde a adesão à CEE em 1985 planos é o que não tem faltado, e distinguem-se uns dos outros porque os mais recentes destinam-se a corrigir os vícios e os efeitos perversos dos anteriores, além da actualização do pensamento económico em obediência às últimas modas e aos mais recentes falhanços, tendo em comum o destinarem-se a distribuir o bodo europeu e a aproximarem Portugal dos países mais desenvolvidos da UE.

Os planos sempre andaram de par com os estudos e os relatórios. E destes o mais famoso foi o de Porter (encomendado a peso de ouro pelo ministro da Indústria de Cavaco, Mira Amaral), hoje esquecido porque se veio a concluir que o guru era na realidade um treteiro albardado de prestigiados diplomas. Nada que tivesse impedido uma geração de economistas, gestores e marqueteiros de serem obrigados a empinar-lhe as teorias.

Bem bem, Portugal tem a maior dívida pública da sua história, e a privada está igualmente na tropopausa; não tem praticamente bancos privados, que são quase todos estrangeiros, nem grandes empresas, salvo no sector da distribuição de secos e molhados e alguns serviços; não tem capitalistas e os ricos são aqueles que tenham um rendimento bruto mensal acima de seis mil e tal euros, a partir do que o Estado pressurosamente pilha quase 50%, só a título de IRS; não cresce nada que se veja há 20 anos e o seu rendimento por cabeça desliza para o último lugar da tabela, numa União que não cessa de perder importância no mundo; não fosse a ligação permanente à máquina do BCE e os juros da dívida monstruosa sufocariam o país; e a Autoridade Tributária tornou-se na Santa Inquisição, completa com inversões do ónus da prova, acusações ininteligíveis e familiares inimputáveis, depositários da sagrada missão de perseguir os evasores.

De modo que podemos achar que sem planos ainda era pior, que com os planos temos sido vítimas de um grande azar, ou que os 130.000 milhões que a CEE e a UE já para cá expediram, a fundo perdido, foram uma gota de água: não temos um SNS público exemplar, inveja de nações pouco esclarecidas? E não fornecemos dentistas e enfermeiros ao Reino Unido, e arquitectos ao Dubai, fruto da aposta na educação? Pois então a Europa da solidariedade, em vez de revoltantes contas de merceeiro, deveria era alargar os cordões à bolsa para sustentar este aluno dilecto.

Vem agora aí uma abada de milhões, uma parte a fundo perdido, e outra a título de empréstimos, à boleia da crise que a Covid provocou (na realidade não foi a Covid mas a forma como os Estados danificaram as economias para lidar com ela, mas não vamos estar com peguilhices). Soube-se disto um dia antes de Costa Silva, o miraculado escolhido pelo PM para o ajudar a fazer sombra a D. João II, apresentar o Plano, e paira no país uma onda de optimismo e satisfação, que pudicamente a comunicação social não tem querido estragar com a informação de que os 750 mil milhões (para nós 45, se faz favor) serão a prazo cobertos com novos impostos.

Pois bem. Na altura em que parei de ler porque ninguém me paga nem tenho pecados sérios a expiar, estava impressionado com

O Paleio

Costa Silva não sabe bem se há de escrever em economês ou em engenheirês, dois dialectos destinados a obscurecer o que é simples e a levar as pessoas a pensar que os autores são depositários de competências profundas. “Este Plano parte de dois quadros conceptuais que se interligam, e da sua análise estratégica resultam os pilares estruturantes do programa de recuperação”, diz logo na Introdução, e o leitor intrépido que se aventure no resto do texto para tentar perceber o que raio quer isto dizer vai tropeçar em visões, pilares, paradigmas, clusters, apostas, dinâmicas e

Vagueza de conceitos

A primeira vez que ouvi falar em economia circular julguei que se estavam a referir a carrosséis, mas desconfiei. Com razão: parece que por economia circular se entende o que Salazar condensou no bordão “guarda o que não te faz falta, encontrarás o que te é preciso”, o povo no provérbio “no poupar é que está o ganho”, e a ciência na proposição, adaptada, nada se perde, tudo se cria, tudo se transforma. Na prática, é uma cedência à histeria ambientalista das Gretas deste mundo, e mesmo que haja futuro, como há, na satisfação da procura de tretas verdes, é esse um filão a explorar por genuínos empreendedores, que o mercado recompensará ou não. O Estado metido no processo garante corrupção e torra de recursos em projectos inviáveis. Costa não sabe isto? Não, não sabe, e por via das dúvidas fala de economia circular mas não a define, como aliás não define quase nada: estas coisas são para cognoscenti, tanto pior se quem paga no final, que é o contribuinte, entender tanto deste plano como entendeu dos anteriores. A economia digital, outro conceito, releva da mesma abordagem ingénua: partindo da constatação de que as ciências de computação têm cada vez mais importância – e têm – há que aprofundar a tendência e ajudar quem esteja ou queira estar no ramo, e financiar todo o cão e gato que conte um filme empreendedorístico que se abrigue sob a epígrafe “digital”, sem curar de saber se o tal futuro incógnito vai recompensar a aposta. Se vai, os fundos de pouco serviram; se não, foram espatifados; e se sim ou não o especialista, que é Nosso Senhor, não é consultor do engenheiro Silva, a menos que este, à condição de ingénuo, acrescente a de chanfrado. Quer dizer que, entre outras coisas, a este Plano falta

Realismo

Querer prever o futuro é um velho sonho da humanidade, e actual dos profissionais do progresso programado, que vicejam nas faculdades de Economia por definição, nas de outros departamentos porque é o que está a dar, e nas redacções porque adivinhar o futuro, e mais ainda moldá-lo, vende. E quanto mais surpreendente e agradável ou ameaçador ele seja apresentado, e mais prestigiada a universidade, e mais convincente o raciocínio, melhor. Pessoas ingénuas julgam que a profissão de arúspice se extinguiu. Que nada, mudou foi de nome e de métodos: enquanto dantes se examinavam as entranhas de animais imolados, ou o voo de aves, agora pintam-se cenários e apresentam-se gráficos que, com o rigor da matemática e a flexibilidade do Excel, dissipam todas as dúvidas.

Sucede que as economias foram e ainda estão, em parte, paralisadas pelos Estados e o medo dos cidadãos. Isto criou quebras e danos, enfraqueceu os mais fortes, matou alguns dos mais fracos, e pode ainda liquidar muitos mais, pelo que se gerou um consenso: é preciso ajudar com moratórias quem possa ser ajudado, suspender obrigações que não é possível cumprir, e amparar o sistema financeiro, que irriga os outros. Isto foi feito de forma canhestra e com grande diferença entre a realidade e a imagem que dela dá a comunicação social enfeudada ao socialismo doméstico, que é quase toda; mas foi feito. Infelizmente, como a UE viu aqui (mal, disso não curo agora) uma oportunidade para se afirmar, adoptou um Plano Marshall, não tanto para restaurar a destruição física que quase não houve mas para reorientar a economia para o regresso a um crescimento sustentado, com respeito pelo ambiente, a igualdade, as tecnologias do futuro e mais um par de botas. Ou seja, em vez de cada Estado se ir endividar ao mercado para fazer o que melhor entendesse, foi a UE, com implicações para a fiscalidade futura, reforço dos poderes das burocracias, acentuação do dirigismo estatal bruxelense  e do directório informal dos grandes países, que os pequenos frugais, quer-se acreditar, vão engolir indefinidamente. Os europeístas, que são quase todos os portugueses, rejubilam: vamos ter a fiscalidade da Estónia, a eficiência alemã, a criatividade italiana e o rendimento dos luxemburgueses, enquanto todos estes infelizes europeus vão finalmente adoptar a culinária portuguesa. Sim, e eu vou para novo, e não rejeito a probabilidade de vir a ter uma amante finlandesa – loura, escultural, de olhos azuis, poliglota, CEO de uma multinacional e com uma incontrolável paixão pelo je.

O futuro não pode ser previsto, e o facto de haver sempre quem, nisto ou naquilo, o adivinhe, não invalida a afirmação: há tanto palpite diferente sobre o como vai ser que alguém acerta; mas isto não faz com que a construção de cenários onde se projectam as tendências do presente seja o pano de fundo adequado para enterrar milhões, muito menos quando são decisores públicos que fazem as escolhas, seleccionando os vencedores antecipados, decidindo o que tem e o que não tem pernas para andar, substituindo-se ao mercado e a milhões de decisões e iniciativas individuais, e fazendo tábua rasa da nossa tradição de corrupção, tráfico de influências, prodigiosa estupidez e ineficácia de agências governamentais, ausência calamitosa de liberalismo económico na Academia, e portanto na magistratura de opinião económica, o que tudo compõe um quadro que recomendaria prudência – precisamente o oposto do que Silva propugna, que é o aventureirismo.

De modo que a petulância que estas extraordinárias personagens exibem, ao entender que eles vão acertar onde todos os seus antecessores falharam, releva desde logo de um soberano desprezo pela experiência: acaso todos os políticos, todos os teóricos e práticos da gestão pública, todos os economistas que já elaboraram planos e os aplicaram, eram uma récua de imbecis, ignorantes ou desonestos? Porque lá falhar, falharam: nenhum plano foi jamais avaliado pelo confronto entre os seus resultados e os seus propósitos, nenhuma decisão verdadeiramente escrutinada, e nenhuma mea-culpa assumida. E todavia o país faliu três vezes em quarenta anos, precisa do apoio relutante dos frugais para mais esta crise, e acredita, como já acreditou doutras, que desta é que vai ser. Não, não há falta, ao contrário do que se acredita nas redes sociais, de gente séria e com sérias credenciais académicas. E, tirando da equação o fenómeno da corrupção, que não tem as costas tão largas que nelas se possa dependurar toda a explicação dos falhanços, alguma coisa em comum tem todo este intervencionismo estatal que teimosamente produz mediocridade.

A meu ver – mas eu não sou obrigado a ver nada porque não sou autor de plano nenhum – do que precisamos não é que o Estado faça o país que Estado nenhum jamais fez modernamente em sítio algum. Porque quem faz não é o Estado, ele apenas cria condições para que se possa fazer. E essas condições implicam liberdade económica, fiscalidade comedida, desamor à igualdade material entre os cidadãos (não há corrente eléctrica sem voltagem, isto é, diferença de tensão, e do mesmo modo não há crescimento significativo sem lisonjear e gratificar a ambição e a vaidade de quem quer arriscar), e limitação de despesas públicas, isto é, eliminação de serviços redundantes, análise permanente de custo/benefício dos necessários, abandono da confusão entre prestação de cuidados públicos, de saúde ou educação por exemplo, e propriedade pública. Tudo isto e um longo etc., que não precisa de conter nenhuma novidade.

Dito de outro modo: do que precisamos, e não temos, é de quem saiba interpretar correctamente o passado, não de quem julgue que sabe ler o futuro; não de quem queira mostrar o caminho, mas sair da frente; e não de quem queira copiar os estados sociais, e as soluções, de quem vive melhor do que nós mas há muito  deixou de crescer percentualmente muito mais, indo buscar inspiração, e aprendendo, com aqueles países que já foram relativamente atrasados e no passado e no presente ganharam lugares na ladeira do desenvolvimento.

Paraministro

José Meireles Graça, 01.06.20

A primeira vez que ouvi falar num paraministro foi numa notícia em que Catarina se aliviava de umas banalidades a armar ao sentido de Estado mas não liguei – coisas lá do aquário da politiquice lisboeta e das trincas e mincas da Geringonça.

Que um ministro, ou o Primeiro, ou o Presidente, tenham uns amigos ignotos com os quais trocam umas impressões está no arranjo ordinário das coisas. E que esses interlocutores tenham um café em Freamunde ou sejam empresários do ramo dos petróleos não deve surpreender ninguém. A comunicação social tem até fórmulas consagradas para estes encontros fortuitos, se os topar ou receber encomenda para os noticiar: no primeiro caso trata-se de auscultar a sociedade civil e no segundo inteirar-se dos problemas do sector.

Mas, afinal, o tal paraministro não é mais um gambozino que a Tina da Companhia de Teatro das Visões (In)úteis inventou para o Bloco fingir importância: existe mesmo, fala, e tem opiniões.

Um tipo que navega na massa escura do crude sabe da logística do produto, dos offshores por onde se movimenta o arame, que costas é preciso afagar, quais os números de telefone que convém ter, onde estão os bons restaurantes, e que tudo isso deve estar rodeado de grande discrição. Deve também perceber alguma coisa de relações internacionais e de economia, no que umas e outra podem afectar o ramo, pelo que convém não ter formação naquelas áreas, para não ter o trabalho suplementar de se despir de preconceitos académicos.

O tal Costa Silva parece preencher o quadro. Infelizmente, logo na primeira entrevista, expele uma quantidade prodigiosa de tolices.

Vejamos primeiro o problema, depois a solução, e, finalmente, o que diz o preclaro.

Uma doença nova, comprovadamente benigna, provocou uma sobre-reacção mundial, baseada no medo induzido pela ignorância dos seus verdadeiros contornos, por alguns serviços de saúde terem sido submergidos, pelo facto de afectar sobretudo pessoas de idade, por ser muito contagiosa, por assintomáticos também poderem contagiar, e por parecer ter sido contida por medidas radicais do governo ditatorial de uma superpotência opaca, que as democracias tentaram emular.

As burocracias mundiais ou regionais (OMS ou EU, p. ex.) abraçaram com gosto o reforço da sua importância; os governos cederam às opiniões públicas em pânico, pilotado por uma comunicação social geralmente acéfala que se especializou na facilidade do drama sem perspectiva nem trabalho de contextualização; e as economias afundaram, mesmo para aqueles que adoptaram abordagens menos penalizadoras, por causa das interdependências internacionais.

No nosso caso, o consagrado Ronaldo das Finanças fala numa quebra de 7%, portanto deverá ser entre 10-15%.

Este o problema. Agravado no caso português pelo abismo entre a propaganda dos apoios e a realidade: ninguém sabe ao certo, nem é possível saber porque a informação não é de confiança, que parte do apoio ao layoff é que já foi paga; e até mesmo o reembolso do IRS (resultante em si de uma pilhagem) o próprio ministro reconhece, sem vestígios de vergonha porque não a tem, que está a ser atrasado.

A solução vem de um prodigioso bolo europeu de 750 mil milhões de Euros, dos quais nos tocariam à volta de 26 mil milhões (15 dados e o resto emprestado) se, no complicado processo decisório da EU, o número não levasse um corte de cabelo, como possivelmente levará.

Quem tiver curiosidade pode ler as minúcias da coisa, p.ex. neste texto de um especialista nestas tranquibérnias, no caso o Prof. Doutor Paulo Trigo Pereira (trato-o assim, com os títulos todos, porque o homem é comicamente cioso destes penachos).

Muito dinheiro, em suma: de volta os pacotes Delors, o comboio europeu, o agora-é-que-vai-ser. Não estivesse a expressão tingida da abominação cavaquista, e corríamos o risco de ver ressuscitado o famoso pelotão da frente que aquele grande estadista consagrou, conjuntamente com outros memoráveis disparates.

Não vai ser. Desde logo porque a UE fala de prioridade aos investimentos nas áreas da transformação ecológica e digital, além de outras piedades, que traduzidas para Portugal querem dizer torrar montes de dinheiro em investimentos não reprodutivos e fantasias promovidas por visionários e vigaristas sortidos, que vêm ocupar o lugar deixado vago pelos engenheiros do progresso - na encarnação anterior estavam mais virados para a formação profissional. Depois porque todo o pacote se destina a ser reembolsado com impostos europeus, a começar a cobrar de 2028 em diante, e que se virão juntar aos que já existem. E finalmente porque em lado nenhum, em momento nenhum, se fala de reforma do Estado, o que quer dizer que a economia, logo que recupere com ajuda algum fôlego, continuará a carregar o fardo da classe média. Aquela que, se não fosse o Estado onde se acolhe, segundo o intelectual Pacheco, não existiria; e aquela que é mal paga porque a economia não é eficiente, dada a fatalidade de os empresários não serem dinamarqueses.

Deixemos isto. Que diz ao certo o mago do Plano de Recuperação Económica, que o elaborou em dois dias? A julgar pela entrevista, é um documento de grande arrebatamento, que não deixará decerto, quando vir a luz do dia, de provocar nuns cólicas, noutros gargalhadas, e nos socialistas aplausos.

“… no caso da TAP, o Estado também deve intervir – com o objetivo claro de evitar que ‘empresas rentáveis se afundem e entrem em estado de coma”. E a intervenção terá de contemplar a “preservação dos postos de trabalho” ou a “qualificação dos trabalhadores”.

Ahem, a TAP é uma empresa rentável?! E vai recuperar sem adequar os seus quadros à procura que tiver, e tendo ainda o enternecedor cuidado de dar formação às meninas do balcão das reclamações?

“A médio e longo prazo, o plano é composto por ‘dois eixos estratégicos’ que, realça o gestor, estão ‘limitados aos recursos financeiros’ disponíveis. Num primeiro momento, a aposta é na modernização das estruturas físicas do país, como seja ‘qualificar a rede viária’ ou intervir nas estruturas portuárias, ou de ‘energia’”, fundamentais para alavancar as exportações do país”.

Nós, de eixos, aprendemos alguma coisa durante a crise da Covid, por causa de tanto gráfico com que fomos mimoseados. E isto nos dá a lucidez para adiantar timidamente que mais autoestradas, mais dinheiro em Sines, e mais corrupios no alto dos montes, não nos parece assim muito bem. Da última vez, a receita, em vez de incentivar o desenvolvimento, provocou o risco de calotes e uma demorada penitência.

“Ao mesmo tempo, é preciso ‘acelerar a transição digital’ na administração pública e, em especial, no tecido empresarial das pequenas e médias empresas – um dos pontos do segundo eixo, mais virado para as infraestruturas digitais. E antecipa o ‘enorme impacto na economia’ que o aumento das competências digitais possa vir a ter”.

Isso da transição digital sabemos o que é. Em vez de termos um bilhete de identidade barato temos um cartão de cidadão caro; e em vez de nos zangarmos com funcionários mal-encarados enfurecemo-nos com o computador e os sites do Governo. Quanto ao tecido empresarial das PMEs, Costa, deixa lá isso: as empresas aceitam tudo o que lhes quiseres dar, em troca de fingirem que têm um grande respeito por gurus da gestão de aviário; menos conselhos e apoios para fazerem o que não lhes sirva para nada.

“Costa Silva fala, ainda, em ‘estender a fibra ótica a todo o território nacional’, depois do recurso às tecnologias, durante a pandemia, ter espelhado as desigualdades sociais entre os alunos”.

Parece razoável. Tanto que é legítimo duvidar que se faça. Acontece muito, quanto se está sobrecarregado a fazer uma quantidade de inutilidades, escassear o tempo para o que é preciso.

“À RTP, o gestor garantiu que o Serviço Nacional de Saúde, depois de ter respondido à pressão da Covid-19, vai ver o ‘investimento reforçado’, numa clara aposta em ‘equipamentos e recursos humanos’, concluiu Costa Silva”.

É o que se chama fechar com chave de ouro. Mas não são necessárias pressas: já tanto utente esticou o pernil por causa de consultas, tratamentos e operações adiadas que durante algum tempo a pressão deve diminuir.

Em suma: Dizem deste homem que irá substituir Siza Vieira, que irá substituir Centeno, que irá substituir o Governador do BdP.

Tudo leva a crer que quem o convidou não irá ser substituído. Daqui a uns anos, acontecerá ao glorioso PM que descobre estas pérolas o mesmo que ao malogrado Sócrates: nunca ninguém votou nele.