Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Parabéns, general

No 90.º aniversário de António Ramalho Eanes

Pedro Correia, 25.01.25

ramalhoeanes8034a936_664x373.jpg

 

Um oficial de semblante espartano irrompeu do anonimato numa noite tensa, ao surgir de camuflado como comandante operacional da contra-insurreição de 25 de Novembro de 1975 que pôs fim ao aventureirismo de uma certa esquerda festiva, armada até aos dentes. Com a região militar de Lisboa em estado de sítio, a circulação de jornais suspensa e os blindados do Regimento de Comandos da Amadora defrontando a Polícia Militar no quartel da Ajuda numa ríspida troca de tiros que provocou três mortos. O PREC chegava ao fim, a disciplina regressava aos quartéis, Portugal não seria a Albânia da Europa Ocidental – o destino que alguns tontos sonhavam para nós.

«Missão cumprida, meu general», disse o tal militar de poucas falas, dirigindo-se ao Presidente da República, Francisco Costa Gomes. Sete meses depois, já também oficial-general, ascendia ele próprio à chefia do Estado. Mas, ao contrário do antecessor, António Ramalho Eanes iniciava o seu mandato validado nas urnas. Pela primeira vez Portugal tinha um Presidente da República eleito por sufrágio livre, directo e universal.

 

Os portugueses gostaram dele: a 27 de Junho de 1976 recebeu quase três milhões de votos, correspondentes a 61,5% dos boletins. Era o mais jovem inquilino de sempre do Palácio de Belém: tinha apenas 41 anos quando ali entrou com a esposa, Manuela, e um filho ainda pequenino, Manuel. Outro viria a nascer já com o pai a conduzir o Estado naqueles anos em que o actual regime ainda gatinhava.

Alguns dos que mais o combateram acabariam por render-se à competência e à seriedade de Ramalho Eanes – figura de referência pela rectidão de carácter. Também por isso foi um dos raros políticos nacionais que sempre mereceram o meu respeito.

Mas o que me interessa valorizar sobretudo neste dia concreto, em que António dos Santos Ramalho Eanes festeja o seu 90.º aniversário, é o enorme contributo que o general deu para a consolidação da democracia em Portugal. Não foi tarefa fácil. Não foi - muito menos - uma tarefa menor. A verdade é que no momento certo ele estava lá. Mantendo-se à altura dos desafios da história. Devemos-lhe essa palavra de reconhecimento.

 

Gosto de qualificar o desempenho dos políticos formulando esta pergunta: ao cessarem funções deixaram o País melhor ou pior do que o encontraram?

Com Eanes nunca tive a menor dúvida quanto à resposta. O Portugal de 1986 era incomparavelmente melhor do que o Portugal de 1976.

 

Aprecio nele algumas qualidades que hoje parecem muito fora de moda: sobriedade, contenção verbal, sentido de honra, noção do compromisso, fidelidade à palavra dada, patriotismo jamais confundível com patrioteirismo. E coragem - física e anímica.

Gostava muito que o ex-Presidente escrevesse um livro de memórias ou sugerisse a alguém para o fazer por ele. Deve isso a Portugal e aos portugueses. Para já, daqui o saúdo em respeitoso cumprimento, endereçando-lhe parabéns por esta data festiva.

Parabéns, Helena

Pedro Correia, 07.12.24

HHH.jpg

 

Chamamos-lhe muitas vezes "a nossa Helena". Por ser figura de referência, uma espécie de âncora para gente bem diversa - de diferentes proveniências e de todas as gerações. Um elo de ligação.

Como lhe digo sempre que a encontro, ela é uma força da natureza. Dá-nos lições de vida com o seu contagiante optimismo temperado de uma sabedoria serena. Perto dela, ninguém se sente deprimido. 

A Helena Aires Trindade Sacadura Cabral, "a nossa Helena", completa noventa primaveras entre hoje e amanhã: a celebração prolonga-se pelos dois dias, como habitualmente. Até nisto se nota o seu carácter, típico de quem nasce sob o signo de Sagitário: são pessoas divertidas, curiosas, sociáveis e dinâmicas, apreciam o convívio, adoram viajar, prestam culto à liberdade. 

Características que surgem certamente nas linhas e nas entrelinhas do seu novo livro, Olhos nos Olhos, com chancela Clube do Autor: acaba de me chegar às mãos, vou lê-lo com a mesma atenção que dediquei aos anteriores.

Com um respeitoso, caloroso e grato beijo de parabéns.

Saúde, Helena. Continua a dar-nos lições de vida. Precisamos de ti.

Parabéns, general

António Ramalho Eanes festeja hoje 88 anos

Pedro Correia, 25.01.23

ramalhoeanes8034a936_664x373.jpg

 

Um oficial de semblante espartano irrompeu do anonimato numa noite tensa, ao surgir de camuflado como comandante operacional da contra-insurreição de 25 de Novembro de 1975 que pôs fim ao aventureirismo de uma certa esquerda festiva, armada até aos dentes. Com a região militar de Lisboa em estado de sítio, a circulação de jornais suspensa e os blindados do Regimento de Comandos da Amadora defrontando a Polícia Militar no quartel da Ajuda numa ríspida troca de tiros que provocou três mortos. O PREC chegava ao fim, a disciplina regressava aos quartéis, Portugal não seria a Albânia da Europa Ocidental – o destino que alguns tontos sonhavam para nós.

«Missão cumprida, meu general», disse o tal militar de poucas falas, dirigindo-se ao Presidente da República, Francisco Costa Gomes. Sete meses depois, já também oficial-general, ascendia ele próprio à chefia do Estado. Mas, ao contrário do antecessor, António Ramalho Eanes iniciava o seu mandato validado nas urnas. Pela primeira vez Portugal tinha um Presidente da República eleito por sufrágio livre, directo e universal.

 

Os portugueses gostaram dele: a 27 de Junho de 1976 recebeu quase três milhões de votos, correspondentes a 61,5% dos boletins. Era o mais jovem inquilino de sempre do Palácio de Belém: tinha apenas 41 anos quando ali entrou com a esposa, Manuela, e um filho ainda pequenino, Manuel. Outro viria a nascer já com o pai a conduzir o Estado naqueles anos em que o actual regime ainda gatinhava.

Alguns dos que mais o combateram acabariam por render-se à competência e à seriedade de Ramalho Eanes – figura de referência pela rectidão de carácter. Também por isso foi um dos raros políticos nacionais que sempre mereceram o meu respeito.

Mas o que me interessa valorizar sobretudo neste dia concreto, em que António dos Santos Ramalho Eanes festeja o seu 88.º aniversário, é o enorme contributo que o general deu para a consolidação da democracia em Portugal. Não foi tarefa fácil. Não foi - muito menos - uma tarefa menor. A verdade é que no momento certo ele estava lá. Mantendo-se à altura dos desafios da história. Devemos-lhe essa palavra de reconhecimento.

 

Gosto de qualificar o desempenho dos políticos formulando esta pergunta: ao cessarem funções deixaram o País melhor ou pior do que o encontraram?

Com Eanes nunca tive a menor dúvida quanto à resposta. O Portugal de 1986 era incomparavelmente melhor do que o Portugal de 1976.

 

Aprecio nele algumas qualidades que hoje parecem muito fora de moda: sobriedade, contenção verbal, sentido de honra, noção do compromisso, fidelidade à palavra dada, patriotismo jamais confundível com patrioteirismo. E coragem - física e anímica.

Gostava muito que o ex-Presidente escrevesse um livro de memórias ou sugerisse a alguém para o fazer por ele. Deve isso a Portugal e aos portugueses. Para já, daqui o saúdo em respeitoso cumprimento, endereçando-lhe parabéns por esta data festiva.

E assim nasceu «La Bohème»

beatriz j a, 22.12.21

 

imagem da wiki

GiacomoPuccini.jpg

Giacomo Puccini nasceu neste dia, 22 de Dezembro, em 1858, em Lucca, Itália. Pertencia a uma família de músicos, tanto pelo lado do pai como da mãe, organistas e compositores da corte. O seu pai era mestre-de-capela, lugar que muitas vezes passava de pais para filhos.

A família não tinha muito dinheiro e Puccini, que desde cedo tocava orgão em várias igrejas, completava esse magro salário tocando músicas populares, ao piano, em bares e casas de má reputação locais.

Em 1879 foi assistir à representação da «Aida», uma ópera de Verdi. Esta representação afectou-o muito, emocionalmente, e teve um grande impacto nos seus planos de futuro. Decidiu abandonar a ideia de ser compositor da corte como o pai e, em vez disso, enveredar pelo caminho da composição teatral operática.
 
Depois de acabar os estudos em Lucca foi para o Conservatório de Milão com uma bolsa de estudos mais algum dinheiro de um tio que o ajudava. Porém, o dinheiro era sempre curto para os gastos. Puccini passou esses anos anos de estudante em Milão numa vida boémia. Fez muitas amizades no mundo da música e da literatura. Conheceu Mascagni, outro compositor, com quem partilhava um quarto numa mansarda. Cozinhavam no quarto para poupar dinheiro, mas como isso era proibido, tocavam música em altos berros, para abafar o ruído dos tachos e panelas. Juntavam ali outros amigos boémios do mundo da música e da literatura. E assim nasceu «La Bohème».
 
«La Bohème» é uma ópera de Puccini passada no ambiente boémio do Quartier Latin, em Paris, entre um grupo de músicos, pintores, filósofos e escritores com pouco ou nenhum dinheiro que vive entre os quartos de mansardas e os cabarés, sempre a fugir dos senhorios e das rendas. A história gira à volta de Rodolfo, poeta parisiense pobre que se apaixona por Mimi, uma costureirinha e do seu amigo Marcello, apaixonado por Musetta, uma cantora.
 
«La Bohème» é a ópera mais famosa, não só de Puccini, mas de todas as óperas de sempre. É extremamente popular e fácil de ver. No próximo ano o Teatro Nacional de São Carlos traz à cena uma representação da «La Bohème». Para quem nunca teve a experiência da ópera, «La Bohème» é talvez a melhor introdução que pode ter: música muito melodiosa, acção cativante. Tem duas das árias mais famosas de todo o repertório operático, Che gelida manina e  Mi chiamano Mimì.
 

Giacomo_Puccini_Albumblatt_Mi_chiamano_Mimi.jpg

Trecho partitura da ária "Mi chiamano Mimì", de La Bohème, com autógrafo de Puccini (1902). (Wiki)
 
(texto também publicado no blog, Azul)

Sapo: 18 anos a blogar

Pedro Correia, 04.11.21

Dezoito anos: atingiu a maturidade. Em aniversário do Sapo Blogs, plataforma em que o DELITO está alojado desde o primeiro dia, toda a equipa que a concebeu, a dirigiu, a orienta e produz agora está de parabéns. Por cumprir algo a que podemos chamar serviço público sem favor algum. 

Desde 3 de Novembro de 2003, como lembra aqui o Pedro Neves, mais de 600 mil blogues foram criados com aquela chancela. Muitos desapareceram - incluindo alguns emblemáticos. Mas vários outros vão sendo criados, expressando novas tendências e novas maneiras de abordar este fenómeno que introduziu entre nós o verbo blogar.

São também 18 anos de histórias que aqui ficam documentados para investigadores futuros. E de História, com letra maiúscula. Património inestimável, pois. Desejo e espero que seja preservado: eis o voto que formulo e associo ao meu abraço de parabéns.

Der Schwarze Vulkan

João Sousa, 23.06.21

michele-mouton-turbo

Saudemos o 70º aniversário de Michèle Mouton: vencedora em 1975 da classe S2.0 nas 24 Horas de Le Mans; vice-campeã europeia de ralis em 1977; vice-campeã mundial de ralis em 1982 (ficando à frente do seu colega de equipa, "um tal" Hannu Mikkola); vencedora em 1984 da classe Open Rally (e segunda à geral) na sua estreia na mítica Pikes Peak; vencedora no ano seguinte da Pikes Peak com um tempo treze segundos mais rápido do que o recorde anterior; campeã em 1986 do Nacional de Ralis da Alemanha, com a particularidade de ter vencido todas as corridas que terminou.

E tudo isto, veja-se bem o topete, quando ainda nem tinham nascido muitos dos que hoje enchem discursos, editoriais e redes sociais com paridades, quotas, representatividades, hashtags e jargões semelhantes.

michele-mouton.jpg

 

(*) "Der Schwarze Vulkan" (o vulcão negro) foi a alcunha que lhe deram na Alemanha devido ao temperamento e longo cabelo preto.

Bênçãos terrenas

Sérgio de Almeida Correia, 16.09.19

IMG_3709.jpg

Passaram uns dias antes que eu pudesse aqui voltar. Resolvi fazê-lo esta manhã, aproveitando uma pequena pausa nas minhas obrigações, em jeito como que de homenagem à Mélita, que faz hoje 92 anos. 

Sei que a Melita não poderá ler este texto, não está em condições de poder fazê-lo porque as vicissitudes por que tem passado já não o permitem. Por vezes, a apatia sobrepõe-se ao sorriso, sereno e terno, que sempre está presente, em especial quando ouve a nossa, a minha, voz, e aproveitando a passagem de alguém por lá consegue vislumbrar e reconhecer quem lhe acena e fala de longe a partir da imagem de um telemóvel.

Em todo o caso, foi nela em quem pensei quando no passado dia 9 de Setembro, viajando entre Kumamoto e Fukuoka, li este texto que hoje aqui vos trago de Frei Bento Domingues.

Quem me conhece, e aqui ou ali me vai lendo, sabe quais são as minhas convicções. Nunca o escondi. Fui sempre transparente, mesmo em matéria religiosa, não confundido aquilo em que acredito com a fé e a religião que muitas vezes me querem servir.

Talvez por tudo isso tenha sentido de uma forma mais profunda as palavras do cronista do Público que, pese embora muitas vezes esteja nos meus antípodas, leio com agrado. E devoção. Seja pela forma generosa como se expõe, e à sua fé, como igualmente pelo convite à reflexão, à introspecção, e a um outro olhar para o mundo que nos rodeia. Frei Bento Domingues fá-lo com extrema elegância, sem nos querer impôr nada, entrando e saindo quase sem se dar por ele, deixando, no entanto, um rasto que nos leva a segui-lo e a olhar para as suas palavras com a atenção que o autor e os seus textos merecem.

Sei que a Mélita gostaria de poder lê-lo. Talvez até admitisse discutir comigo alguma da fé que de um modo tão próprio, muitas vezes sem o referir, cultivou ao longo da vida e que tão esforçadamente me quis transmitir sem grande sucesso.

Espero poder voltar a vê-la e abraçá-la dentro de alguns dias, quando finalmente a reencontrar, para voltar a ter a ternura do seu olhar e a graça do seu conformado sorriso. Por tudo o quanto a vida lhe deu e lhe tirou, sem aviso e sem que nada tivesse feito para o merecer.

Enquanto isso não acontece, deixem-me que aqui partilhe algumas das palavras de Frei Bento Domingues, a quem desde já agradeço a generosidade de connosco ir partilhando a sua fé e as suas dúvidas:

"No mês de Agosto, ao ler e ouvir ler alguns textos do Antigo Testamento (AT), indicados para a celebração diária da missa, senti-me arrepiado perante o ódio que os inspirava. Apesar da sua beleza literária, eram insuportáveis: Iavé mata e manda matar.

Deixo, aqui,  alguns exemplos: "Atravessaste o Jordão e chegastes a Jericó. Combateram contra vós os homens de Jericó, os amorreus, os perizeus, os cananeus, os hititas, os guirgaseus, os heves e os jebuseus; mas Eu [Iavé] entreguei-os nas vossas mãos. Mandei diante de vós insectos venenosos que expulsaram os dois reis dos amorreus. Não foi com a vossa espada, nem com o vosso arco. Dei-vos, pois, uma terra que não lavrastes, cidades que não edificastes e que agora habitais, vinhas e oliveiras que não plantastes e de cujos frutos vos alimentais" (...)

"Jefté marchou contra os amonitas e travou combate contra eles: Iavé entregou-os nas suas mãos. Derrotou-os desde Aroer até às proximidades de Minit, tomando-lhes vinte cidades, e até Abel-Queramim; foi uma derrota muito grande; deste modo, os amonitas foram humilhados pelos filhos de Israel" (...)

Os filhos de Israel "abandonaram Iavé e adoraram Baal e os ídolos de Astarté. Inflamou-se a ira de Iavé contra Israel e entregou-os nas mãos dos salteadores que os espoliaram e vendeu-os aos inimigos que os rodeavam. Eles já não foram capazes de lhes resistir. Para onde quer que saíssem, pesava sobre eles a mão de Iavé como um flagelo, conforme lhes havia dito e jurado; e foi muito grande a sua angústia".

Com a entrada do mês de Setembro, parece que mudamos de Deus e de mundo. São textos tirados da tradição sapiencial. Frei Francolino Gonçalves, exegeta dominicano, membro da Comissão Bíblica Pontifícia e professor da Escola Bíblica de Jerusalém, faleceu há dois anos. Deixou-nos textos essenciais para ler a Bíblia com inteligência, para não cedermos a nenhuma espécie de fundamentalismo. Hoje, evoco um que aborda, precisamente, a distinção de dois iaveísmos. Diria, por conveniência fundada, que se trata de Iavé de Agosto diferente de Iavé de Setembro. O melhor, porém, abstraindo desta circunstância, é ouvir o próprio autor, mediante um fragmento de uma grande elaboração que pode ser lida, na íntegra, nos Cadernos ISTA acessíveis na Internet.

Na Bíblia, Deus não é apresentado só com uma pluralidade de nomes, mas também com uma multiplicidade de retratos. O que a Bíblia põe na boca de Deus, ou diz dele, sugere um grande número de imagens muito variadas, contrastadas e, nalguns casos, aparentemente contraditórias. A grande maoria é de uma grande beleza, mas também as há que são de uma notável fealdade, ou até assustadoras."

Francolino Gonçalves defendeu a ideia de que não devemos atribuir esse mundo bíblico apenas à corrente nacionalista, cujo centro é a eleição de Israel como povo de Deus e a aliança entre ambos. Já havia alguns autores que tinham discordado dessa amálgama. Segundo ele, os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos partores nem, por maioria de razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudosque referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel.

Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT.

3. Dei a palavra a Francolino Gonçalves. Na homenagem internacional que lhe foi prestada, na Universidade de Lisboa e no Convento de S. Domingos, no passado mês de Maio, a questão dos dois sistemas iaveístas foi objecto de várias intervenções. Eu próprio, na homilia que me pediram, tentei mostrar o alcance pastoral desta distinção: quando um Deus se apresenta como tendo escolhido um povo, com o qual estabeleceu uma aliança, e este povo se considera o eleito, o povo de Deus, estamos perante um Deus nacionalista.

A causa de Deus e a causa da Nação passam a ser uma só, embora, de vez em quando, Deus manifeste que o povo depende dele, mas ele não depende do povo.

O nacionalismo continua a revelar-se como pouco recomendável para o bem da humanidade. Um nacionalismo divinizado é a peste das pestes."

Confesso que, passada uma semana, não posso deixar de estar de acordo com Frei Bento Domingues. Creio que a Mélita também estaria se pudesse lê-lo. Como não pode, deixo aqui, com a devida vénia, este extracto da crónica.

Parabéns à Mélita pelo seu aniversário. Parabéns a Frei Bento Domingues por nos ajudar a pensar e a ver melhor. A Mélita e Frei Bento Domingues são duas bênçãos nos meus dias. Terrenas, evidentemente. Nem por isso menos divinas. E estou-lhes agradecido.

60 anos de Pedro Ayres de Magalhães

jpt, 02.08.19

504342.png

Anteontem, quarta-feira 31 de Julho, Pedro Ayres de Magalhães fez sessenta anos. Um mero aniversário, uma alheia idade redonda, poder-se-ia dizer. Mas este tem um significado especial, anuncia que a minha geração passou assim, oficialmente, a sexagenária. Pois se Pedro Ayres nunca foi um "homem da frente" - o "front man" da mística rockeira - foi, de facto, o "homem do leme" da geração subsequente ao 25 de Abril. Não me vou por aqui a botar sobre ele: nem o conheço pessoalmente nem sou especialista em música. Mais vale escutá-lo (entrevista radiofónica) ou lê-lo (entrevista à revista Sábado; entrevista ao jornal i). Dizem-me que Edgar Pêra sobre ele fez um filme, mas ainda não vi.

Fico-me pelo registo: um tipo que andou na linha da frente do punk em Portugal (aqui deixo ligação para "Bastardos", um documentário sobre o punk português), desde os seus Faíscas, e seguindo para o grupo iconoclasta Corpo Diplomático. Eram tempos bem diversos - e aconselho mesmo as suas entrevistas, para se entender em particular o universo rural com que estes urbanos se deparavam, o tão diferente país de então, ainda espartilhado e sofrendo as mágoas das guerras coloniais recém-findas. Depois foi a alma-mãe dos Heróis do Mar, que tantos disseram - e continuariam a dizer, se se lembrassem de efemérides ou similares - como fascistas: quando de facto os Heróis anteciparam os anos 90s, esses que só terminaram em 2004, o reencontro do país Portugal consigo próprio e a sua celebração, passada que fora a era do país pária. Uma nação, história e identidade que comemoravam - mesmo que hoje o seu som surja imensamente datado, como "pop" que era -, enquanto também cantavam "este país é uma prisão", no afã de pontapear o provincianismo então hiper-dominante, sufocante mesmo. É certo que os hinos que ficaram dessa era foram os dos Xutos mas a atitude que frutificou nesses anos 1980s foi, em parte - e tão bom seria que mais tivesse sido -, a dos Heróis. Entenda-se, a de Pedro Ayres. 

Muito se celebra agora António Variações, feito ícone. Convirá então lembrar que foi Ayres de Magalhães (e o seu quase constante parceiro Carlos Maria Trindade) que lhe produziu o disco final. Como ainda foi ele que, através do Resistência, congregou repertórios e músicos - não só de diferentes estilos mas, algo tão difícil naquele tempo de cesuras constantes, também de diferentes aparências políticas. Assim concertando Portugal. Depois foi ele o verdadeiro Pigmalião do Madredeus, esculpindo não só a cantora mas também repertório e trajecto. E com este internacionalizando a música popular portuguesa, reabrindo caminhos (que décadas antes Amália havia percorrido sem deixar sucessores), os quais vieram depois a ser seguidos, ainda que sem o seu brilho, por artistas como Mariza ou Dulce Pontes. 

É um trajecto musical fantástico, feito sem cedências ao meios dominantes, muito radicado num individualismo - meritocrático, parece-me. É diante disto que continuo a repetir, Ayres de Magalhães é o homem da nossa geração que maior impacto cultural teve no país. Tem tido. A alumiar. Obrigado. Parabéns. Que venham mais anos, com saúde e sucessos.

 

 

 

 

Parabéns, Minerva!

Fernando Sousa, 07.02.19

Sabiam que hoje é o Dia de São Lourenço e ainda o das Cinco Chagas do Senhor? Que é Quarto Minguante? Que este mês os dias aumentam em Lisboa 1 hora e 2 minutos e no Porto 1 hora e 8 minutos? Que as mulheres nascidas por agora deverão ser belas e os homens inconstantes? Que é o tempo de semear alface e alhos-porros? Que este é o Ano do Porco, o da Tabela Periódica e ainda o da Moderação? Que o céu rosado ao fim do dia pressagia bom tempo? NÃO SABIA? O tempora, o mores! Não sabia porque não lê o Borda d’Água, que faz anos, 90 anos, quase um século a trazer-nos tudo o que precisamos de saber sobre astros, oráculos, dias de mercado, santos e legumes, com pequenas incursões sobre o que somos e perdemos tempo a fingir. Parabéns Mineeeeerva!! 

260x.jpg

 

Marcelo

Pedro Correia, 12.12.18

1024[1].jpg

 

Setenta anos, celebrados hoje. Em plena forma. Com níveis de popularidade altíssimos já após ter cumprido mais de metade do seu mandato. Em tempos que convidam à depressão colectiva e ao afastamento entre eleitores e eleitos, ele persiste em fazer a diferença. Com um sorriso aberto, um abraço solidário, uma palavra inspiradora. Decepcionando todos aqueles que desejariam ver em Belém uma espécie de múmia grave e sorumbática.

Vai continuar a decepcioná-los, tenho a certeza. Ainda bem. Parabéns, senhor Presidente.

Nos 95 anos de Adriano Moreira

Pedro Correia, 06.09.17

9448454_F8zot[1].jpg

 Retrato de Adriano Moreira na galeria dos antigos presidentes da Sociedade de Geografia de Lisboa

 

No dia 10 de Julho de 2015, um senhor vestido formalmente, de cabelos brancos e testa alta, ergueu-se da cadeira onde estava sentado, numa livraria do centro de Lisboa, e durante três quartos de hora prendeu a atenção de algumas dezenas de pessoas que o escutavam com uma notável lição de história, geografia, geopolítica - tudo a pretexto da literatura.

Eu estava entre os que tiveram o privilégio de o escutar nesse fim de tarde. E admirei a impressionante rapidez de raciocínio, a notável fluência verbal e a claridade de ideias deste homem que foi advogado e político, é hoje conselheiro de Estado, mas cuja verdadeira vocação nunca deixou de ser o ensino. Deu aulas durante dezenas de anos e deixou um rasto de admiradores em todos os continentes: é um dos portugueses com maior vocação universalista.

A expressão francesa sagesse aplica-se por inteiro a Adriano Moreira, que nessa tarde em Lisboa discorreu sobre a "comunidade de afectos" que a CPLP é acima de tudo - e como a língua comum funciona como poderoso traço de união entre os Estados-membros. Ao contrário do que sucedeu com outras antigas potências coloniais europeias, como a Bélgica ou a Holanda, incapazes de gerar laços afectivos com os povos residentes nas paragens que tutelaram.

Adriano Moreira foi subsecretário de Estado da Administração Ultramarina (1958-61) e depois ministro do Ultramar (1961-62) com António de Oliveira Salazar, de quem chegou a ser apontado como um dos seus mais jovens e promissores delfins. Enquanto ministro, aboliu a lei do indigenato - uma das medidas de maior alcance social alguma vez decretadas nos então territórios ultramarinos.

A corte da ditadura fervilhava de intrigas contra aquele jovem governante com 40 anos recém-cumpridos que se atrevia a revelar protagonismo num regime em que tantos progrediam na penumbra. Um dia, em Dezembro de 1962, Salazar chamou-o e foi sucinto: "Nós acabamos de mudar de política." Adriano Moreira foi igualmente sucinto: "Então acaba de mudar de ministro."

Nunca mais reassumiu um posto governativo. Fundou a Academia Internacional da Cultura Portuguesa, foi presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, dirigiu o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Correu mundo, escreveu livros, (Tempo de Vésperas, O Novíssimo Príncipe), radicou-se no Brasil após o 25 de Abril, regressou a Portugal, foi deputado e presidente do CDS, retomou a sua paixão de sempre: o ensino.

"A minha mãe ensinou-me que Deus é companheiro e nunca me esqueci disso. Nunca ando sozinho, nunca ando sozinho", declarou em Maio de 2015, numa longa entrevista concedida ao jornal i que vale a pena ser relida.

Pensa bem e diz o que pensa. Gostem ou não do que ele diz. Se em Portugal existisse Senado, ele seria o nosso primeiro senador. Atingidos os 95 anos, que hoje festeja, continua um sonhador. Ouvi-lo falar com tão espantosa agilidade mental é também uma lição de vida. 

À espera da bordoada

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.16

38x15x15_1.jpg

Passaram 42 anos sobre o 25 de Abril de 1974. E tirando o facto de hoje em dia a defesa do direito à liberdade de expressão de José Sócrates ser feita por Pedro Passos Coelho, de alguns "licenciados" terem obtido equivalência a "ex-licenciados" depois de lutas duríssimas, dos descamisados serem hoje empresários influentes que agilizam processos e frequentam fora de portas os restaurantes do Chef Umberto Bombana, o País mantém os seus vícios e anseia por saber, perante a derrocada da União Europeia, qual será o próximo campeão nacional de futebol.

Assinale-se, todavia, que internamente onde a luta está mais acesa é na discussão sobre as formas de tratamento. Foi para aqui que se transferiu a luta de classes. À direita, o deputado Paulo Rangel quer acabar com os títulos, avançando com uma proposta, em nome da mobilidade social, que colocará um fim aos "doutores" e aos "engenheiros". Suspeita-se que por detrás dessa proposta – dizem as más línguas que soprada por um ex-ministro – esteja a qualificação dos desqualificados que ficaram sem os títulos que arduamente conquistaram nas secretarias do ensino privado. Mas à esquerda, na linha daquilo a que nos habituámos, o proletariado em luta não está pelos ajustes. É por isso mesmo um descanso saber que ainda há quem cite de cor o Presidente Mao. E que os camaradas mais idosos passaram a ter direito ao título de "Dr." no Comité Central do MRPP.

Esta última é uma conquista que dá sentido a tantos anos de luta. Uma evolução histórica que confirma o triunfo da revolução, a irreversibilidade das suas conquistas mais patuscas perante a derrocada do Estado social e o agravamento do problema demográfico. Tesos, pelintras e doutores já são hoje mais do que os bebés que nascem, pelo que é de admitir que a bordoada seguirá dentro de momentos. Da grossa e na sala de um hotel no Panamá. Até ao último dólar.

A Rainha

Pedro Correia, 20.04.16

tumblr_nh82x22piD1ty479po1_500[1].png

 

«A dissimulação é a ciência dos reis.»

Cardeal Richelieu

 

Quando ela ascendeu ao mais alto cargo do seu país, José Estaline era ainda o senhor absoluto da Rússia vermelha. Nos Estados Unidos, mandava Harry Truman, então sem saber o que fazer dos soldados atascados no inferno da Coreia. E na Grã-Bretanha o primeiro-ministro era Winston Churchill, herói da guerra.

 

Ela viu tudo, ouviu todos.

Quando se sentou no trono herdado de seu pai, Mao Tsé-Tung mandava na China continental, Chiang Kai-Shek pontificava na Formosa, Hirohito mantinha-se como imperador do Japão mesmo após a rendição do seu país aos pés do general Douglas MacArthur. Havia nessa altura outros imperadores no mundo: Hailé Selassié na Etiópia, o xá Reza Pahlevi no Irão. As monarquias eram em número bem superior ao actual: havia-as da Grécia (com o rei Paulo) ao Egipto (com o rei Faruk). E até na Líbia do rei Idris, que um tal coronel Kadhafi viria a derrubar 17 anos mais tarde, em 1969.

 

Nesse mês de Fevereiro de 1952, quando a jovem Isabel se tornou Rainha da Grã-Bretanha, com apenas 25 anos, o planeta era governado por figuras que hoje têm lugar garantido nos livros de História: Sukarno na Indonésia, Perón na Argentina, Tito na Jugoslávia, Franco na Espanha, Nehru na Índia, Ben-Gurion em Israel, Getúlio Vargas no Brasil, Salazar em Portugal.

Conheceu muitos deles, numa sucessão de encontros ao longo de 56 anos – tempo suficiente para ter visto aparecer e desaparecer Elvis Presley, os Beatles e os Pink Floyd.

Coexistiu com seis Papas (Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco), nove presidentes franceses (Vincent Auriol, René Coty, De Gaulle, Pompidou, Giscard d’Eistang, Mitterrand, Chirac, Sarkozy e Hollande), oito chanceleres alemães (Adenauer, Erhard, Kiesinger, Willy Brandt, Helmut Schmidt, Kohl, Schroeder e Angela Merkel), 12 presidentes norte-americanos (Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e Obama). E 18 chefes do Estado brasileiros – de Getúlio a Dilma. E nove presidentes de Portugal (Craveiro Lopes, Américo Thomaz, Spínola, Costa Gomes, Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa) e 18 primeiros-ministros portugueses, da ditadura ao actual regime constitucional, passando pelo período revolucionário, onde em menos de dois anos houve seis Executivos.

 

Sábia, serena, sibilina, Isabel II foi reinando ao longo de todo este tempo de convulsões no mundo.
Assistiu a guerras no Congo, no Vietname, no Biafra, no Médio Oriente e nos Balcãs. Testemunhou a descolonização de África, a chegada do homem à Lua, o desmoronar do bloco soviético. Viu as monarquias chegarem ao fim em países tão diferentes como o Iraque, o Afeganistão e o Nepal. E serem restauradas noutros, como em Espanha e no Camboja.
Trabalhou com 12 primeiros-ministros – oito conservadores (Churchill, Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher, John Major e David Cameron) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).

 

Churchill não escondeu a ternura paternal que sentia pela jovem monarca. Ela retribuía-lhe a simpatia, sem quebrar o rígido dever de imparcialidade que os costumes do reino lhe impõem, mas não falta quem garanta que o primeiro-ministro favorito dela foi Harold Wilson, com os seus ares de filósofo de cachimbo na swinging London dos anos 60. E que Thatcher terá sido a líder do governo que mais detestou. O que não a impediu de comparecer no seu funeral de Estado, em Abril de 2013.

A verdade sobre isto e tudo o resto não será apurada num livro de memórias com selo real. Isabel II, a monarca britânica há mais tempo no trono, nunca escreverá esse livro.

 

Num mundo em mutação, onde tudo passa, tudo se esgota e tudo se esquece, ela é uma referência de estabilidade. Lembramo-nos dela desde sempre, são já poucos os que conheceram outro chefe do Estado no Reino Unido. O tempo dela foi sulcado por todas as modas – do chapéu de coco ao punk, passando pela mini-saia de Mary Quant.

Só ela nunca passou de moda.

 

O que sente, o que pensa, o que esconde?

Só ela sabe: por detrás do suave sorriso protocolar, subsiste a esfinge nesta monarca que ninguém tem a ilusão de conhecer.

"A dissimulação é a ciência dos reis", dizia o cardeal Richelieu. Uma legenda que bem se aplica a Isabel II, Rainha da Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, Barbados, Bahamas, Granada, Papuásia-Nova Guiné, Ilhas Salomão, Tuvalu, Santa Lúcia, São Vicente e as Granadinas, Belize, Antígua e Barbuda, e São Cristóvão e Névis.

 

Isabel II celebra amanhã 90 anos.

Texto reeditado e actualizado