A bandeira de Portugal tremulava ontem como a imagem documenta, num mastro oficial, durante a visita do primeiro-ministro a Luanda, segundo o que foi transmitido pela televisão estatal de Angola.
É lamentável que os angolanos a tratem deste modo, como se fosse um trapo. Tinham estrita obrigação de saber hasteá-la devidamente. Até porque durante 64 anos foi bandeira deles também.
Interrogo-me o que sucederia se algo semelhante acontecesse, igualmente em Luanda, com uma bandeira americana, russa ou chinesa. Sou capaz de apostar que não ficaria assim.
«Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.»
«1. A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa.
2. A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas.»
Eu não assino os jornais (nada tenho contra eles, é apenas devido à escassez do vil metal...). Assim, do que não está em acesso livre, vejo os títulos, cabeçalhos e - por vezes, quando são disponibilizadas - as introduções dos artigos. É deste modo que agora - via um cabeçalho do "Público" - vou ao "Expresso" (a imprensa de "referência") onde um afamado colunista, representante da "esquerda", bota o seu juízo sobre o ex-PR angolano Santos. Ancorando as suas práticas nos efeitos de "500 anos de colonialismo"...
Ora perorar sobre "500 anos de colonialismo" é, pura e simplesmente, uma indigência intelectual. Ou ignorância alarve ou aldrabice alarve, em plena "imprensa de referência". Mas o que é verdadeiramente pungente nem são as décadas que os jornais passam a acolher esta tralha. São as décadas que os leitores, energúmenos, passam a ler isto.
«José Eduardo dos Santos é uma figura central na cultura de corrupção em Angola. Foi debaixo do seu nariz que a elite política do país e, consequentemente, da grande família política do MPLA, enriqueceu ilicitamente, deitando por terra uma oportunidade histórica para que o desenvolvimento social e económico viesse por fim corrigir décadas, séculos de opressão e miséria. (...) Hoje, as promessas do pós-independência há muito que caducaram e o projecto de país continua a ser um esboço atrapalhado pela gula e a ambição de uns quantos.»
José Eduardo dos Santos, ex-ditador angolano, morreu ontem numa clínica de luxo em Barcelona. Era proprietário de uma mansão no bairro mais elitista e elegante da capital catalã, em consonância com a sua conta bancária. Nascido numa família muito humilde, amealhou uma fortuna avaliada em mais de 20 mil milhões de dólares.
Cumpriu-se uma tradição comum a vários déspotas africanos: quando sentem a morte a rondá-los dizem adeus ao continente, rumando à próspera Europa.
Após 38 anos de poder quase absoluto em Luanda, Dos Santos abandonou enfim a presidência em 2017. Deixando um país na miséria, em total contraste com as suas finanças pessoais: cerca de 60% dos angolanos sobrevivem com uma quantia inferior a dois euros por dia.
Pelo menos Agostinho Neto - tirano marxista-leninista ainda mais sanguinário que este seu sucessor - foi mais coerente. Também morreu no estrangeiro, mas em Moscovo, então capital da União Soviética. Um e outro bem longe do povo que juraram servir.
Este documentário "Sita: a vida e o tempo de Sita Valles", é mais uma investida da realizadora Margarida Cardoso ao ocaso colonial. Ao vê-lo logo recordei o excelente "O Mar em Casablanca" de Francisco José Viegas (talvez o meu romance preferido daquele autor), que aflorou o terrível episódio. Mas, e para além dessa minha deriva, como é óbvio logo associei este recente filme a outras obras de Cardoso, o "A Costa dos Murmúrios" (com base no romance de Lídia Jorge) e, em particular, o excelente "Yvone Kane", neste caso pela patente similitude temática - e, num âmbito mais alargado dessa indagação sobre aquele período histórico também é relevante o documentário "Kuxa Kanema - o Nascimento do Cinema", debruçado sobre o inicial processo cinematográfico moçambicano (o texto começa por uma alusão aos "cinco séculos de colonialismo" mas essa derrapagem não é mácula suficiente para deslustrar o trabalho).
Não faço estas associações pela superficial nota de "género" - aquele mero reconhecimento da mulher realizadora que indaga o(s) processo(s) histórico(s) através de três personagens/personalidades mulheres, que será prisma que pouco me ilumina. Interessa-me a pertinência (e competência) da realizadora no seu vasculhar do que pode - àqueles que se refugiam na forma de incompreensão que é o espanto - aparentar ser o absurdo na história. Mas o qual é, de facto, o horrível histórico que tanto vigorou naquele período do final do colonialismo português e das alvoradas das novas nações. Como nos anteriores e posteriores períodos, noto, pois segue esse horror bem omnipresente.
A sinopse deste documentário está disseminada, o que torna desnecessário que a repita. Apenas friso o que me ocorreu durante o longo filme (quase três horas). Por um lado, o não terem sido abordadas as diferentes facetas daquele horror, no qual morreram Sita Valles, seu marido, seu irmão e cerca de 30 mil indivíduos. Não será isso um defeito, mas uma característica que foi objectivo da realizadora, o centramento no ambiente formativo daquela militante. Valles, de uma família oriunda de Goa e da pequena-burguesia luandense - e a sua inserção social, denotando menores barreiras raciais do que as existentes no Moçambique coevo, é apenas aflorada - é recordada através de documentos pessoais, depoimentos de familiares, amigos próximos de Luanda e de seus correligionários durante o período de residência em Portugal. Não há uma única voz contrastante ou, pelo menos, afastada. Alguém a quem ela, ou suas causas e objectivos, fosse antipática. Seja de quem foi então militante do MPLA ou do PCP, seja de adversários políticos lato sensu. E assim segue ela, a sua memória, algo acarinhada, nisso até enublada. E dos seus companheiros finais - do propalado movimento de Nito Alves - nada fica, nem do seu afirmado líder.
O que fui vendo foi a formação de uma jovem progressivamente radicalizada - desde o anticolonialismo e aversão ao racismo inicial até à sua formação comunista em Portugal e, depois, o seu extremar aquando do regresso a Angola (patente num até trágico trecho de uma sua carta à família na qual ecoa a retórica oficial, em tom crítico, aquilo de que "o MPLA não é comunista"). Tratava-se de uma peculiar visão do real, que não é bem delineada nos depoimentos - talvez por nunca ter sido sistematizada pela militante - e sobre a qual algo podemos intuir através da leitura do opúsculo "África - Colonialismo e Socialismo", de algum esquematismo interpretativo, publicado nesse ano de 1977 pelo seu irmão Edgar Valles, o qual neste filme surge como fonte primordial e explicitando-se como mais moderado, e até descrente, do que a irmã.
Honestamente, ao longo do documentário - acima de tudo pela secura dos trechos das suas cartas aos seus pais, bem como pelo que se pode depreender da sua efervescência pessoal através de alguns dos testemunhos dos que lhe foram próximos -, foi-se-me criando uma imagem da militante revolucionária que até algo me envergonha de aqui deixar transparecer, face ao cruel destino que sofreu. Não é apenas a do seu radicalismo até inconsciente, coisa até passível de ser atribuída à juventude, e que não só a conduziu até à morte bem como talvez influenciado a do seu irmão. Pois o que mais me foi patente foi um irredentismo, talvez abrasivo, um fervor crente de intolerância constituído.
Ou seja, e sei o quão cruel e descabido é até este meu sentimento de espectador, se o filme ilustra um acto de horrível despotismo, massacrando pelo menos 30000 dos apoiantes do próprio regime, uma das habituais purgas das pretensas "grandes revoluções" históricas, aquilo que se me foi crescendo ao longo do documentário foi uma sensação de que se tratava de uma mulher horrível. Insuportável, pelo menos. Sim, é um sentimento que pouco me abona, face ao cruel destino de Sita Valles, assassinada grávida nos seus 20 anos. E à magnitude da malevolência daquele regime assassino. E à imoralidade daqueles - alguns dos quais tão laureados vieram a ser - que daquele processo foram cúmplices. Até exultantes, a crer em alguns relatos. Mas foi, e digo-o com pesar, o que me ocorreu ao ver "Sita".
E decerto que por isso, pelo acabrunhamento sentido face a esta minha reacção, que logo após o filme fui até à estante. E comecei a reler o "Les Dieux Ont Soif", talvez procurando justificar-me na memória desse malvado fanático revolucionário Évariste Gamelin que Anatole France nos legou. Para que não caiamos em simpatias. Pelo putativo brilho, carisma, fervor, empenho e competência organizativa deste tipo de militantes...
Adenda: deixo uma entrevista de Margarida Cardoso ao Buala, relativa ao seu trabalho durante a produção deste filme e do "Yvonne Kane".
Faz hoje 45 anos, iniciava-se uma das maiores atrocidades jamais ocorridas na África lusófona. Barbaridade que as narrativas dominantes tudo fazem para ocultar, como se nunca tivesse acontecido. O chamado "golpe do 27 de Maio", nunca devidamente esclarecido, que vitimou parte da jovem elite do Movimento Popular para a Libertação de Angola - o partido que se tem perpetuado no poder em Luanda desde a independência, em Novembro de 1975.
Nessa data e nas semanas imediatas, milhares de militantes foram chacinados. Historiadores independentes e organizações de direitos humanos calculam em 30 mil o número mínimo de vítimas provocadas pelo esmagamento de uma suposta rebelião contra Agostinho Neto, selvaticamente reprimida pelas forças cubanas que serviam de guarda pretoriana ao ditador marxista-leninista e pela DISA, a sinistra polícia política que fazia do homicídio extrajudicial prática corrente.
A violenta repressão dos «fraccionistas», como eram apelidados no jargão do poder da época, pode ter causado um total de 70 mil mortos. Prolongou-se por dois anos envolvendo torturas, deportações forçadas para campos de concentração e fuzilamentos sem julgamento. Com Neto a dar rédea livre aos esbirros da DISA quando proclamou: «Certamente não vamos perder muito tempo com julgamentos. Nós vamos ditar uma sentença.»
Famílias inteiras desapareceram e os corpos, atirados para valas comuns, nunca foram recuperados. Incluindo o de Bernardo Alves Baptista, conhecido por Nito Alves, que a 25 de Abril de 1974 era comandante militar do MPLA na estratégica região dos Dembos e fora ministro do Interior desde a independência até Outubro de 1976. E também de José Jacinto Van Dunem e Sita Valles, pais de um bebé de três meses que viria a ser criado pela tia Francisca, futura ministra da Justiça em Portugal.
«Amarrem-nos onde forem encontrados: Nito Alves, José Van Dunem, Bakalof, Pedro Fortunato, Betino»; «Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes», gritava em títulos garrafais o repugnante Jornal de Angola, fiel serventuário do regime, na edição de 31 de Maio. A 18 de Maio, em comunicado, o MPLA concluíra, num macabro aviso para o que se passaria dias depois: «Todas as organizações se depuram.»
A purga, como também lhe chamaram, incluiu matanças a sangue-frio nos cárceres e em locais como a praia das Palmeirinhas. Os mais afortunados - incluindo o actual ministro português da Economia, António Costa Silva, foram apenas vítimas de simulação de fuzilamentos.
Grande parte dos mortos não tinha sequer vínculo ao MPLA: foram apanhados no local errado e à hora errada, a pretexto da "purificação" do partido governamental, como sublinhou a Amnistia Internacional em vários relatórios.
Só em 2021 o Presidente da República, João Lourenço, pediu desculpa em nome do Estado angolano aos familiares dos assassinados, prometendo toda a colaboração das autoridades para a exumação dos cadáveres, a identificação dos restos mortais por equipas forenses e a emissão das respectivas certidões de óbito. Então com apenas 20 anos, a sua mulher, Ana Dias Lourenço, foi uma das militantes aprisionadas na sequência do 27 de Maio.
Apesar do louvável pedido de desculpas, falta fazer quase tudo. Falta, desde logo, criar uma Comissão de Verdade para que o massacre não caia no esquecimento colectivo ditado por conveniências muito selectivas. As mesmas que ainda idolatram Agostinho Neto como poeta, virtuoso humanista e «libertador» do seu povo.
Mesmo que nenhum dos torcionários venha a pagar pela participação nestes homicídios, a memória não prescreve. Há que pôr fim à desinformação, à autocensura e aos silêncios, como alerta a Associação 27 de Maio. Há que repetir, uma vez e outra, que isto aconteceu. Uma nódoa inapagável na história do MPLA e da Angola pós-colonial.
ADENDA de 28 de Maio: um leitor chamou-me a atenção para este documentário realizado por Margarida Cardoso e exibido há dois dias na RTP 2: Sita - a Vida e o Tempo de Sita Valles. Vi-o na noite de ontem. Verdadeiro serviço público.
Vivemos tempos em que para combater as fake news, alguém se lembrou de recorrer a um selo. Ora o selo, já encerra em si toda uma história e um percurso na comunicação e na aproximação de quem está distante.
Começaram por servir como prova de pagamento, e de caminho transportaram imagens de mundos desconhecidos. Frequentemente do retrato se fez arte.
Enquanto aguadamos pelo reerguer do selo, agora como certificado de qualidade, aproveitemos para apreciar os antigos traços e cores que acompanhavam as notícias de outrora.
Selo com imagem de um Órix, também conhecido por Guelengue-do-deserto. Colecção Animais de Angola Emissão 1953
Pode ter sido distracção minha, mas até ao momento ainda não ouvi uma palavra oriunda do PCP sobre o que está a ocorrer em Angola - nomeadamente, as mais recentes notícias acerca das «lucros fabulosos» (expressão muito cara a Jerónimo de Sousa) acumulados pela filha do antigo Presidente da República que ali se perpetuou durante quatro décadas no poder - e foi amealhando também uns cobres muito razoáveis, ao que rezam as crónicas.
A repugnância dos comunistas perante fortunas pessoais - neste caso em contraste com as situações de extrema pobreza que afligem grande parte da população angolana - dissolve-se quando os milionários pertencem ao MPLA, "partido irmão" do PCP?
Não haverá, nas fileiras comunistas, vozes críticas capazes de se insurgirem contra esta chocante conivência? Pode ser que existam, mas andam emudecidas. Porque daquelas bandas nem um sussurro se tem escutado.
A verdade é que, ao longo de todos estes anos, o PCP alinhou sempre com José Eduardo dos Santos, a sua próspera família e o partido que tem gerido Angola em sistema monopolista. Com indecorosas atitudes de subserviência perante o poder angolano, agora deposto. Basta lembrar a censura ao livro Diário de um Preso Político Angolano, de Luaty Beirão, na Festa do Avante! de 2018, e o chumbo comunista de um voto parlamentar contra as penas de prisão aplicadas a 17 activistas angolanos, em 31 de Março de 2016 - aqui em jubilosa parceria com o PSD e o CDS.
Sem um reparo que fosse, sem o mais ligeiro tremor de perturbação. Pelo contrário, o exercício da crítica, por parte dos comunistas portugueses, visou sempre aqueles que ousavam contestar a autocracia angolana, inserindo-os em maquiavélicas conspirações orquestradas por Washington - numa patética recriação da linguagem soviética dos tempos da Guerra Fria.
«Portugal não deve ser instrumento e servir de plataforma para a promoção da ingerência contra um Estado soberano, designadamente ao serviço daqueles que, envolvendo e mobilizando cidadãos angolanos partindo de reais problemas, contradições, fenómenos negativos e legítimos anseios, de facto agem com o intuito de os instrumentalizar para desestabilizar e concretizar a denominada «transição» ou «mudança» de regime em Angola. (...) Existem interesses externos e sectores da sociedade angolana que consideram criadas as condições e chegado o momento de fomentar a desestabilização neste país. (...) Não seremos instrumento para fazer de Angola uma nova Líbia com o seu rasto de destruição, sofrimento, devastação e morte.»
«O PCP não acompanha campanhas que, procurando envolver cidadãos angolanos em nome de uma legítima intervenção cívica e política, visam efectivamente pôr em causa o normal funcionamento das instituições angolanas e desestabilizar de novo a República de Angola. (...) O PCP não acompanha os votos apresentados na sequência da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, adoptada em 28 de Março, que condenou 17 cidadãos angolanos a penas de prisão pelos crimes que o Tribunal considerou como de actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores. (...) A rejeição do presente voto por parte do PCP emana da defesa da soberania da República de Angola e da objecção da tentativa de retirar do foro judicial uma questão que a ele compete esclarecer e levar até ao fim.»
«Usam ora Rafael Marques ora Luaty Beirão para se guindarem a educadores do povo angolano, ditando aos angolanos o que o seu país é e o que dele devem fazer. (...) Será que ninguém estranha que as posições assumidas por BE e PS nos votos que apresentaram sobre Angola sejam convergentes com aquelas que foram assumidas pelo Departamento de Estado norte-americano e pela União Europeia? (...) O PCP nunca será instrumento ao serviço das operações que querem fazer de Angola mais uma vítima, que queiram fazer de Angola uma novaLíbia.»
«Interesses externos e sectores da sociedade angolana que, não deixando de utilizar uma qualquer oportunidade para envolver cidadãos angolanos a partir de reais problemas e legítimos anseios, de facto agem com o intuito de os instrumentalizar para promover a desestabilização de Angola e, se possível, concretizar a sua tão almejada mudança de regime. (...) Os significativos e genuínos laços históricos e afectivos que unem o povo português ao povo angolano e Portugal a Angola não devem ser instrumentalizados por intensas e hipócritas campanhas mediáticas que, objectivamente, contribuem para "legitimar" obscuras operações contra Angola e os interesses e aspirações do seu povo.»
(Memória - até intimista - por causa do que está a acontecer por aí).
Quando em 15 voltei a Portugal o que mais me custou não foi o frio, do qual me desabituara. Foi o silêncio. O próprio. Passara 15 anos a leccionar, a co-organizar seminários, a participar noutros, a comentar e debater. Assim a falar, muito. Quando regressei isso acabou. Não podia falar ("não tens doutoramento, não podes falar", é assim mesmo, são as regras, é o mercado laboral). Podia assistir mas não convinha contrapor, discordar, esmiuçar, que reina a cultura do silêncio defronte e da maledicência a posteriori ("ela é histérica", "ele é estúpido", diz-se dos colegas sem qualquer rebuço), associada à ofensa sentida se alguém questiona o que se disse. Eu sei que dizer isto provoca noutros a ideia, aqui habitual, do "este está ressabiado, ressentido". Mas estão errados. É apenas observação participante.
Pronto, ficou-me o silêncio próprio. Foi uma espécie de envelhecer (um pouco) avant la lettre. Um gajo é velho e ninguém o ouve, foi isso mesmo. Neste caso ainda com lucidez (presunção e água benta ...) para o perceber, e saber que será assim para a frente. Ultrapassei isso, ganhei o hábito de falar sozinho - falo imenso sozinho. A minha filha preocupa-se com isso, teme ser sintoma de algo mais. É nova demais para perceber que é apenas uma escapatória. Um gajo tem que falar, tem o vício, e se não tem audiência fala sozinho. Mal seria se eu começasse a fazer podcasts ou lá como se diz, e a metê-los no facebook.
Bem, vem esta memória a propósito disto: o silêncio não foi total. Nos primeiros anos ainda falei um bocadinho. Almas caridosas convidaram-me para leccionar lá na Invicta Porto, num mestrado ("éh pá, não tenho doutoramento", avisei. "Anda na mesma", magnanimizaram), durante dois anos. Lá fui, falar como Amador (no velho e nobre sentido do termo). De literatura africana. De arte moderna e contemporânea africana. Não sei como terá corrido (ao longo dos anos tive alunos que de mim gostaram, outros aos quais fui indiferente, outros que não gostaram. Haverá piores do que eu, há melhores, há muitos mais ou menos na mesma. É como é). Mas, repito, fui lá à terra do meu pai, à universidade do meu pai - e disso gostei muito -, falar de literatura africana e de arte africana.
Foi na época em que o Porto estava todo aperaltado para visitar a exposição - bem boa, digo-vos - da colecção de arte africana contemporânea de Sindika Dokolo, genro de José Eduardo dos Santos. Gostei de visitar, pausadamente. E deu-me muito, imenso, jeito, pois recomendei-a vivamente aos escassíssimos alunos.
Então sorri, com o fenómeno. A gente não avalia e frui a arte devido aos mecenas que lhe coube. Mas avalia o fenómeno da recepção. Sorri ao Porto. A Portugal.
E falei, sozinho. Continuo a falar sozinho. A Carolina não gosta, teme que seja sintoma de algo. E é, minha querida, é sintoma de ser patrício destes tipos.
Os que me conhecem, e os que me vão aturando no(s) blog(s), sabem que não simpatizo com o BE - ainda que me tenha ocorrido votar, e também por algumas razões até espúrias, em Marisa Matias (depois ponderei e votei bem à "direita", em Henrique Neto). Não gosto da coligação "guevarista" (et al) acima de tudo porque abomino o "identitarismo" e os requebros que o acompanham. E mais coisas, claro. Por isso tanto gostei do "affaire Robles" a desnudar o horizonte que se vê em Telheiras e no Bairro Alto. E tanto gozei com as patacoadas do prof. Rosas ("as nossas meninas", "a direita já tem o seu gay" - cito apenas de cor), a mostrar o quão plástico chinês é o "politicamente correcto" - já para não falar do célebre "eu tenho filhos, você não tem" (idem) de Louçã a Portas, o Paulo. Enfim, são quem são, esta minha Lisboa ...
Dito tudo isto, como vera auto-justificação, aqui fica a entrevista que Louçã e Teixeira Lopes deram quando lançaram o seu livro "Os Donos Angolanos de Portugal", há já cinco anos a mostrarem as ligações desta nossa elite político-económica com o poder económico (a "Isabel dos Santos") de Luanda.
É bom lembrar, porque parece que agora todos se esquecem.
Quando não há motivos de preocupação os políticos não necessitam de fazer desmentidos nem declarações em contrário. Ou seja, só tentam sossegar o país quando existem ameaças.
Muitos exemplos do passado recente comprovam isso:
Portugal não é a Grécia
O FMI já não vem
Os portugueses podem confiar no BES
E por aí a fora...
Além dos casos de ameaças ao país, recorrem também ao método da negação do óbvio quando o óbvio lhes é prejudicial:
A vitória do PS não é derrota do PCP
Ricardo Robles não se aproveitou do cargo que ocupava
O PSD está unido
... todos nos recordamos de muitos outros exemplos
Lembrei-me mais uma vez desta antiga constatação quando ouvi o nosso Presidente Marcelo afirmar que não há razão para preocupação nos sectores económicos e empresas portuguesas nas quais a empresária angolana Isabel dos Santos está a vender as suas participações. E acrescentou dizendo: “Os sinais que me chegam (…) são de que não há razão para nem a economia nesses sectores, nem os trabalhadores, nem os que têm a ver com as empresas, fornecedores ou clientes, estarem preocupados com isso.”
Há alguns anos abriu o casino em Maputo. Depois inauguraram o restaurante (uma espécie de "brasserie", se bem me lembro). Acorreu-se à novidade. Lá fui: resmunguei-o algo caro para a minha bolsa, e barulhento apesar do ambiente frio. Fui e até voltei, duas ou três vezes, coisas de jantares colectivos.
Uma sexta-feira lá isso me aconteceu. Cheguei, só e cansado, sentei-me na mesa dos conhecidos. Ainda não deitara o olho ao cardápio e entrou um patrício, desses muito conhecidos da política, que por lá aportara nas negociações da entrega de Cahora-Bassa e fora ficando, em regime "sanduíche" claro, em conselhos de negócios e coisas dessas. Rosnei para o lado "não janto na mesma sala deste fdp". Levantei-me, enjoado - que era o tempo do Sócrates, cujo fedor chegava a Maputo ainda que aqui os inteligentes, antropólogos, outros académicos e gente bem-informada o sentissem "perfume" -, e fui-me embora, talvez para o Piripiri, talvez para casa, não me lembro.
Os anos passa(ra)m. Eu sou da "direita" (e escrevo coisas que parecem da "extrema-direita", diz-me gente mui amiga). E vim-me embora do Índico. E os tipos como aquele botam agora o quão incomodados estão com aquilo da Bé, cá no Atlântico. Eles são muito de esquerda, estão no governo. Ou perto, seguindo muito apreciadores do simpático presidente que temos. A mim vale-me, pelo menos, que não sou migrante. Ahnn? É isso mesmo. Não sou migrante.
Há algo que me fascina no caso de Isabel dos Santos: aqueles que a apoiaram, que enalteceram o seu investimento na economia portuguesa, que se desdobraram em vénias, que acusaram de provincianismo quem recomendava prudência (troque “Isabel dos Santos” por “República Popular da China” e verá o futuro, caro leitor), desapareceram. Pura e simplesmente desapareceram. A Helena Matos escreve no Blasfémias que esta gente lhe dá asco. Eu ainda estou na fase da estupefacção.