Depois de uma longa noite eleitoral, todos acabamos por ser surpreendidos por algo que já sabíamos que podia acontecer. Fez lembrar a “Crónica de uma morte anunciada”, não sobre a morte do Santiago Nasar, mas sobre a quadruplicação dos mandatos obtidos pelo Chega.
A análise desta surpresa anunciada pode ser feita sobre diferente aspectos, que aqui tentarei abordar.
Quando o autoproclamado Salvador de Portugal, por vontade de Deus, começou a aparecer na actualidade política, os apoios que ia recebendo não eram mais do que votos de protesto. As sociedades, tal e qual como têm sempre indivíduos que povoam o que designamos por margens, têm sempre dentro de si gente capaz de votar num palerma, não pelo que diz, mas apesar do que ele diz. E fazem-no por se quererem associar ao incómodo que este causa à maioria.
Eu conheço quem, por sentir que rapidamente fica fora de uma conversa sobre política, economia ou outro assunto mais elaborado, se contente com explicações simples sobre assuntos complexos. Daí até acharem piada ao tipo que comentava o futebol a dirigir-se em directo a Cavaco tratando-o por tu, vai apenas um passo. Muita desta gente, designada por Hilary Clinton como “os deploráveis”, vive nas periferias, fora da bolha mediática, trabalha, paga impostos, tem pouco poder de compra, vai de madrugada para a porta do Centro de Saúde para conseguir uma consulta, espera anos por uma cirurgia, não sabe se a maternidade onde era suposto os seus filhos nascerem irá estar aberta, não consegue colocar os seus filhos numa creche, irrita-se com muitos dos apoios sociais que sustentam as pastelarias a servir pequenos-almoços, farta-se de saber de casos de corrupção sem consequências e acha que os políticos são todos iguais. Todos menos o Ventura, que é maluco e manda umas bocas. E todos eles têm o direito a um voto.
Alguns dos portugueses que acham isto são jovens em início de vida. Não conseguem rendimentos que lhes permitam tornar-se independentes. Desde que se lembram de ser gente que se fala em crise. Desde sempre a economia está estagnada. Sabem que continuamos a ser ultrapassados por países que há poucos anos eram mais pobres que nós. Os mais interessados já sabem que no dia, que erradamente julgam muito longínquo, em que se reformarem terão apenas direito a menos de 50% do último ordenado. Todos conhecem um, ou vários, colegas da escola que emigraram e que no verão regressam à terra nos seus carros vistosos de matrícula da Suíça ou do Luxemburgo. Para eles, todo este mal-estar social tem um nome e chama-se Socialismo. Quem duvidar disso, verifique o perfil etário dos votantes do PS. Quem conhecer gente desta, portugueses como eu, olhará para o trajecto eleitoral dos últimos anos do PCP e conseguirá antever o futuro do PS. Quem não conhecer gente como esta, um dia irá ser surpreendido por mais uma “Crónica de uma morte anunciada”.
As causas da esquerda são também irritantes. A revolução sexual foi chão que deu uvas já nos tempos dos pais deles e não querem saber das causas ditas fracturantes para nada. Cada qual faz o que entende com a sua vida e o que os realmente incomoda são os sacanas com dinheiro a brincar com a justiça para evitar serem julgados.
O tempo avança em movimentos pendulares. Ser de esquerda é tão natural para uma parte da geração que assistiu ao início do regime como o contrário será no ciclo que, entretanto, já começou. Lembro-me perfeitamente do optimismo e dos ganhos objectivos que os portugueses sentiram no tempo que se seguiu à adesão à CEE e da forma como os governos de então conseguiram cavalgar aquela onda, mas muita desta gente ainda não era viva nessa altura. O desaproveitamento da anterior maioria absoluta do PS é como um pico de uma evolução no desapontamento com este regime.
Existe um factor regional que explica alguma da distribuição geográfica dos votantes no Chega. O país fundado a norte por uma aristocracia nobiliária não é igual ao sul dos concelhos, criados por cartas foral ao ritmo da reconquista. José Mattoso mostrou-nos isso n”O essencial sobre a formação da nacionalidade”. Vimos isso nos tempos do PREC, com uma fronteira informal em Rio Maior, e continuamos a ver o mesmo em cada acto eleitoral. Na Guerra Civil do século XIX, já os liberais se concentravam no norte, enquanto os miguelistas (anti-liberais) reuniam os seus maiores apoios a sul. A antiga tradição comunista no Alentejo faz parte do mesmo fenómeno, tal e qual o que acontece agora ao Chega.
Temos assim duas camadas sobrepostas de apoiantes de Ventura, a dos descontentes com os inconseguimentos de Abril, e da predisposição sociológica regional.
Este tipo de partidos não são novidade na Europa nem no mundo democrático. Se Trump é o mais conhecido dos lunáticos populistas democraticamente eleitos, não podemos esquecer o laboratório sempre precoce no lançamento de novos fenómenos políticos que é a Itália. Berlusconi foi o primeiro deste género que, entretanto, alastrou. Nas democracias europeias que já se viram a braços com o populismo de direita o primeiro impulso foi levantar a cerca sanitária. O resultado desta táctica foi o crescimento destes partidos e em nenhum deles a democracia foi posta em causa.
Nos casos da Hungria e Polónia verificaram-se ingerências políticas na justiça, mas foi no Portugal governado pelo PS, com MRS como Presidente, que o Caso Manuel Vicente foi enviado para Angola. E, arrisco, o Caso Influencer terá um desenvolvimento conveniente, em decisões e no calendário, às ambições políticas de António Costa. Será giro de ver como as exigências de asseio político para a entronização do próximo Presidente do Conselho só serão possíveis de cumprir depois de dar uns safanões no Ministério Público.
Regressando aos demais casos europeus, estes partidos só regrediram quando se envolveram na governação. Foi então que os seus apoiantes verificaram que afinal os temas complexos não têm soluções simples e todas as promessas feitas não se distinguiam das suas boas intenções. No momento seguinte, desiludidos com os populistas, regressaram à abstenção e aos partidos tradicionais, entretanto mais acordados sobre os reais problemas dos cidadãos. Eu, que nunca votarei no Chega, acho que, mais tarde ou mais cedo, acabaremos por assistir ao seu envolvimento num governo português. Graças aos tratados europeus, que nos garantem alguma decência democrática, conseguimos sobreviver a tanto desmando e irresponsabilidade nas últimas décadas, que não serão as palermices do quarto pastorinho afundar a nossa democracia.
E termino com a constatação de uma das características que fazem da democracia um sistema político com menos defeitos que os demais. O processo eleitoral garante válvulas de escape sociais. Sem elas, um destes dias seríamos surpreendidos com manifestações de desagrado bem mais graves do que ver um milhão de portugueses a votar num palerma.