De volta à estrada
Dulce, a pasta com os mapas está onde? Vi-a em cima da credência, pai. Se lá a viste, lá ficou. Vai buscá-la e deixa a porta bem trancada. Anda lá que está toda a gente à espera. Corri lance após lance, degraus dois a dois (sim, é verdade, acreditem!) até ao terceiro andar, peguei a pasta e voei escada abaixo. Os amigos já nos aguardavam, aqueles que não sendo da família em que nascemos, são a família que escolhemos e éramos inseparáveis. Os Afonso eram três, um casal com uma filha, a Tita, e os Silveira eram quatro, o casal, a Mica e o Gil, que o mano rabiava e apelidava de Gileia, por ser para o anafado.
Íamos todos partir de viagem e sempre que saíamos com o carocha atravancado com a proverbial data de tralha e equipamento essencial ao campista moderno, toda a vizinhança vinha dizer adeus à janela e desejar boa viagem. Adeus D. Sofia! Adeus D. Jo! Adeus!! Boa viagem! Adeus!
O destino era Andorra-la-Vieja, capital e principal cidade do pequeno principado de Andorra encalhado nos Pirenéus, verdinha e fresca no Verão e branca e fria no Inverno, apelativa para caminhadas e prática de desportos na neve, vivia e ainda vive do comércio e do turismo. Como as marcas consagradas mundialmente não pagam impostos nos seus representantes em Andorra, os preços são convidativos, num permanente ambiente de Outlet, que era exactamente o que os amigos Afonso procuravam: a André Jamet e uma tenda com duas assoalhadas e cozinha.
Metemo-nos à estrada, cada família no seu carro, e entre cantorias e despiques chegámos a Talavera de la Reina onde passámos a primeira noite. Dali seguimos para Toledo. Adorei Toledo: a sua catedral, o seu ar medieval com espadas e armaduras em todos os pontos de comércio, a glória de Espanha, nas palavras do da triste figura.
Seguiu-se um detour para visitar a imponência do Valle de los Caídos, que é exactamente isso, imponente. Continuámos viagem e pernoitámos em Fraga, estreando um pequeno hostal recém construído, Las Brujas. Foi uma noite memorável.
A seguir ao jantar um céu de breu trouxe raios, trovões e um dilúvio. Acomodados nuns quartos catitas a cheirar a novo, ouvíamos os estrondos lá ao longe, encantados pelo aconchego dos lençóis.
De repente, boom! E tudo ficou escuro. Um apagão! A luz que entrava nos quartos era a que vinha da janela e apenas quando havia relâmpagos. Subitamente o som de alguém a regurgitar, passos apressados e corpos a cair fez-nos sentar na cama meio desnorteados e completamente assustados, até outro som, o de incontroláveis gargalhadas chegar até nós, cada vez mais forte.
Qual enredo de tragicomédia, o Gil foi deitar-se indisposto e apavorado com a “noite nas Brujas”, extravasou a indisposição pelo chão, incapaz de, no escuro, localizar a porta da casa de banho. A sua mãe foi em seu auxílio e pumba, escorregou e caiu. O pai foi em auxílio da mãe, mas não teve melhor sorte e pimba, no chão. Os amigos nas outras suites vieram em socorro com fósforos acesos, acabando por se perder nos corredores… enfim. Ninguém dormiu muito, mas rimos que nem doidos.
Ainda hoje a história da noite nas Brujas nos leva às lágrimas.
A manhã seguinte cheirava a chuva e a verde e, depois de mais uma barrigada de riso, voltámos à estrada e chegámos finalmente a Andorra, quedando-nos por Encamp, Camping Meritxell, um paraíso para o campista habituado ao pó: era frondoso, arrelvado e com um ribeiro límpido e borbulhante.
Cada um foi à sua faina de estacas e cordas e ficámos prontos num par de horas para a primeira noite nos Pirenéus.
De manhã, enquanto os adultos foram ao minimercado eu, o mano, o menino, a Tita, a Mica e o Gil, fizemos o reconhecimento do camping e sentámo-nos a ler tranquilamente, todos com o recado de que não se podia deixar o menino sem vigilância, nem por um segundo que fosse. A verdade é que um segundo é seguramente uma infinidade de tempo…
Com os adultos de regresso ao Camping, almoçámos e preparámo-nos para ir às compras, quando demos pela falta dos chinelos. Ninguém tinha trazido os chinelos? Eu guardei os meus! E eu! Eu também!… Como que movidos por um magnete olhamos todos para o menino que sorria, safado e feliz… tiraste os chinelos? Para quê? Fiz corridas de barcos no ribeiro, retorquiu o pequeno patife com aquele olhar de céu travesso… bem que os procurámos, mas o mais certo seria terem já desaguado no Mediterrâneo... o que vale é que em Andorra o comércio é rei e tinham chinelos de todas as cores e feitios.
De Encamp sai o teleférico que sobe até ao pico Els Cortals. Fomos todos. Em 1976, as cabines eram pequenas. Não mais do que três pessoas por cabine. Depois de instalados, eu e o mano resolvemos asnear, nem sei porquê, mas chegou-nos a brilhante ideia de abanar a cabine na horizontal armados em thrill seekers, dare devils ou simplesmente palermas. Felizmente não teve desfecho trágico, mas valeu-nos sobejos ralhetes e descomposturas descomunais.
Lá em cima era lindo e valeu por tudo: a vista, o lago azul que espelhava o céu.
Os visitantes, homens principalmente, provavam a sua virilidade, ou fibra, vá, segurando com uma só mão um porrón, jarro de vidro de boca estreita e bico comprido cheio de vinho tinto. Com uma mão atrás das costas, tinham que beber sem tocar com a boca no bico do jarro nem sujar a roupa com vinho. Escusado será dizer que muito poucos desceram a Encamp com as camisas limpas.
Depois de os Afonso se decidirem por uma tenda azul e branca e pelos apetrechos necessários à arte de bem acampar, deixámos Encamp, Andorra e os Pirenéus rumo a Barcelona. Já em Andorra os Silveira tiveram notícias menos boas de Oeiras. Barcelona foi de fugida, Valência também e regressámos a Lisboa muito mais cedo do que o previsto e ainda a tempo de passar as duas últimas semanas em Albufeira, mas desta feita com a tenda em casa.