DEBATE GOMES-MARCELO
Há uma diferença enorme entre querer e poder. Esta foi a frase extraída de um western que me veio à memória mal terminou o frente-a-frente da noite de anteontem entre Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa na RTP, bem moderado por Carlos Daniel.
Para azar da nossa antiga representante em Jacarta, este não foi apenas o debate que lhe correu pior: foi também aquele em que Marcelo se saiu melhor. Enquanto ela titubeava, ele ia espetando farpas. Sempre de largo sorriso no rosto, talvez para aliviar a dor da antagonista.
Mas foram farpas precedidas de anestesia. Como sempre fez nestes debates, o presidente recandidato começou por elogiar quem tinha à frente. Ana Gomes - sublinhou - «teve um papel muito importante para Timor-Leste e para Portugal num momento histórico». Pura técnica retórica, que Marcelo domina com requinte florentino.
Produziu efeitos com a bloquista Marisa Matias: quase só faltou saírem ambos a valsar do estúdio. E começou por funcionar também com a candidata apoiada pelo PAN e pelo Livre, ao ponto de o moderador se sentir forçado a dar-lhe duas deixas para ela criticar Marcelo. Antes que os telespectadores, bocejando, mudassem de canal.
Foi Carlos Daniel a sugerir ligação entre o suposto falhanço da pedagogia presidencial e o brutal aumento dos contágios por Covid-19 com uma pergunta directa à ex-eurodeputada: «Responsabiliza o Presidente da República pelo que está a acontecer?» Foi ele também a introduzir o tema do homicídio no SEF, que tanto incomoda Rebelo de Sousa. «Esta é das matérias em que eu faria diferente», afirmou a antiga militante do MRPP.
Ia a coisa a meio quando começou a haver debate. Ana Gomes atacou Rebelo de Sousa por viabilizar a nova solução governativa dos Açores - elogiando de caminho Cavaco Silva por ter convidado inicialmente Passos Coelho, vencedor nas urnas sem maioria parlamentar, para formar governo no Outono de 2015. Carregou de achismos a sua arma verbal e disparou: «Acho grave, normaliza uma força de extrema-direita.»
Seguiu-se este diálogo, com Marcelo a falar cada vez mais depressa e Gomes a pisar o travão:
- Como é que o Presidente da República recusa uma maioria parlamentar? (...) A posição da senhora embaixadora é proibir, fazer cordão sanitário. Eu sou contra. Ganha-se no debate das ideias, não se ganha proibindo, não se ganha calando. Isso é vitimizá-los.
- Não se trata de proibir...
- Trata-se. Defendeu a ilegalização, é proibir.
- As democracias têm de se defender contra os intolerantes, já dizia Karl Popper.
- Defende-se com as ideias, não se defende policiando.
- Se estivesse... quando estiver no lugar de Presidente da República serei absolutamente incisiva.
- Nunca pediu antes a ilegalização do partido. Foi ao Ministério Público pedir? Como cidadã indignada, porque esperou para ser candidata para vir dizer isso?
Em política, o que parece é. Há quatro meses, parecia que Ana Gomes não descortinava sombras no mandato presidencial. Por uma vez, o inquilino de Belém recorreu à cábula que trazia preparada, lendo uma declaração da candidata: «Faço um balanço positivo do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. (...) Foi muito importante a articulação entre os governos e o Presidente.» Data: 9 de Setembro. Conclusão do sorridente Marcelo: «Até ao dia seguinte à declaração da sua candidatura achava que a articulação tinha sido magnífica.»
Sentindo que os minutos se escoavam sem pontificar no confronto televisivo, a socialista abandonou por uma vez o tom diplomático. Aludiu à «relação de amizade» entre Marcelo e Ricardo Salgado, sugerindo interferências de Belém no passo de caracol a que segue o processo BES.
Pisava um terreno em que nem o rei das insinuações, André Ventura, ousou mover-se.
Isto permitiu que Marcelo desenrolasse um inventário: «No meu mandato, orgulho-me de terem avançado - com duas procuradoras, não só com uma - a Operação Marquês, a Operação BES, recentemente o julgamento de Tancos, a Operação Lex, operações contra magistrados judiciais. Avançaram, não pararam.»
Permitiu-lhe também o contra-ataque. Em comparação subliminar com o líder do Chega, remeteu-a à gaveta dos que disparam primeiro e só pensam depois: «Não sei se percebe o quão ofensivo é aquilo que disse. (...) Atingiu a minha honorabilidade e a minha integridade. Eu nunca diria de si aquilo que disse de mim. Não vale tudo na política.»
A sua antagonista nada mais de relevante proferiu.
Este foi o debate em que emergiu um vencedor mais nítido. Marcelo, receando a abstenção por parecer vencedor antecipado, só mobiliza votos vitimizando-se. Precisava do pretexto que Ana Gomes lhe serviu quando cedeu à tentação da demagogia.
Na sombra, António Costa terá sorrido: o seu candidato saiu-se bem neste western da campanha, galopando em triunfo na pradaria.
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Frases do debate:
Gomes - «É preciso ter uma relação leal e franca com o Governo.»
Marcelo - «Quem disse que o primeiro-ministro era igual ao primeiro-ministro húngaro Orbán não fui eu, foi a senhora embaixadora.»
Gomes - «Marcelo Rebelo de Sousa podia contribuir mais para as soluções.»
Marcelo - «A senhora embaixadora tem de estabilizar a sua opinião.»
Gomes - «Eu sei que o senhor professor, ate pela sua relação de amizade com o dr. Ricardo Salgado, é certamente das pessoas com mais interesse em que o caso BES já tivesse sido esclarecido, que já tivessem sido apuradas responsabilidades.»
Marcelo - «Eu não distingo entre portugueses. Não tenho interesses especiais, no caso Rui Pinto... não tenho interesses especiais nenhuns.»
Gomes - O senhor fala sobre tudo...»
Marcelo - «Não falo sobre tudo, falo sobre o que é importante. Quem fala sobre tudo é a senhora embaixadora.»