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Delito de Opinião

Por outras palavras

Pedro Correia, 08.03.23

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«Where I'm going, you can't follow. What I've got to do, you can't be any part of.» 

Rick Blaine, Casablanca

 

A História, a todos os níveis, não se escreve com ses. Mas é possível, com uma simples pergunta, fazermos uma análise contrafactual a uma história de amor para testar a sua solidez. Até que ponto os seus protagonistas sofreriam se perdessem quem amam? Por outras palavras: o amor não se alimenta apenas da felicidade que há, mas da infelicidade que se deseja desesperadamente que não exista.

Amor, amor

Maria Dulce Fernandes, 26.09.22

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No tempo do era uma vez, as donzelas eram belas, castas e prendadas, conquistavam o coração dos seus amados, encantados ou encantadores, e depois dum sem número de peripécias, angústias, terror e sofrimento, acontecia o final feliz, selado com um beijo do verdadeiro amor e eram felizes para sempre, tudo isto enquadrado num cenário idílico, com maravilhosos pores do sol, passarinhos a chilrear e arcos-íris no céu.

Quem não gosta dum final feliz?

Eu, que sou o paradigma da chorona carpideira, em tudo o que é filme, série, mini-série, novela, cartoon, livro, revista e jornal ou caderninho de Sudoku, e que deveria receber a medalha de honra e mérito na categoria de melodrama, eu, que “num dia daqueles” vibro com as histórias das Floribellas desta vida e gasto resmas, paletes de lenços de papel, torço sempre para que a princesa fique com o sapo e vivam felizes para sempre, com uma trupe fandanga de girinos atrás.

Como diria Lavoisier, na natureza nada se perde, tudo se transforma, e os tais finais felizes, à força de se renovarem, reinventarem e estarem sempre in, acabam muito mais in-felizes, do que se pretenderia.

No espaço dum mês servi de ombro amigo, tia emprestada, psicóloga, médica, expert em coisas do coração, confidente e mentalista, não a duas, mas a dois piquenos de coração estraçalhado, cujas princesas encantadas os arquivaram na categoria de sapos, e deram às de Vila Diogo, deixando-os a afogar as mágoas, ou melhor, a afogarem-se nelas.

Já não há donzelas como antigamente! Onde é que param as pálidas e etéreas criaturas, tão dependentes, tão frágeis como dentes de leão ao vento? Muitas estão na Universidade, outras trabalham; umas criam novas amizades com interesses em comum mais cativantes, outras puxam pelos galões de Femmes Fatales, entram numa onda de curtir a vida e originam verdadeiras cenas de faca e alguidar que, declamadas por João Villaret, fariam do Fado Falado uma cantiga infantil.

Eles, os que deveriam cavalgar meio mundo, armadura resplandecente e montados num corcel branco para proteger as suas donzelas, revelam-se criaturas invertebradas, fracas e tristes, quais D. Quixotes montados em paus de vassoura, que escorraçados pelas Dulcineias, ficam sem força até para dar um espirro.

Quando acabam os argumentos, ou partem para a ignorância, ou recorrem á compaixão. Coisa triste de se ver...

O que me dói mais é ver gente que não sabe estar, que não sabe ser gente sequer! Eu sou daquelas que antes quebrar que torcer e nunca, mas nunca me haviam de ver rastejar atrás de quem me enxotou. Diz Pascal que o coração tem razões que a própria razão desconhece, mas então e se a razão do coração não tem razão nenhuma?

Será possível que aquele fogo que arde sem se ver a que chamamos amor se resuma a uma reles anedota de novela de cordel?

Esta gente doida sabe lá o que é o Amor!

 

(Imagens Google)

Contra Todas as Expectativas

Francisca Prieto, 10.02.18

Vens de uma reunião de book club onde se discutiu literatura francesa, ou melhor, onde a literatura clássica francesa serviu de pretexto para se chegar a temas tão actuais como a discrepância social, a liberdade sexual ou a importância da educação.

Numa época em que o tema da igualdade de géneros se instalou em cima da mesa, dás por ti a apontar o dedo ao mito do príncipe encantado. Insurge-se uma das convivas, criticando que se trata de uma questão cultural, que as meninas das sociedades ocidentais ainda crescem induzidas a sonhar serem salvas por enxovais e cortinados.

Gera-se o debate, atiram-se argumentos irrefutáveis para um lado e para o outro, cresce a polémica no meio de vozes acesas, até que, por fim, as oito mulheres sólidas, independentes e de mente aberta, acabam por concordar que sim, que não há qualquer dúvida de que uma rapariga quer, pelo menos uma vez na vida, enfiar-se dentro de um vestido para fazer juras de amor eterno.

 

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Cartas de amor

Helena Sacadura Cabral, 31.10.16
Acabei hoje de ler as cartas de Mitterrand a Anne Pingeot, mãe da sua filha Mazzarine, agora uma mulher de 41 anos. São centenas de epístolas que revelam o lado mais privado do homem que ocupou o mais alto cargo político na França.

A intimidade, quando revelada, tem sempre o duplo efeito de nos fazer participar de algo que não vivemos. E se, neste caso, isso pode ter um lado algo perverso, visto que se trata de um triângulo amoroso, noutras circunstâncias pode ajudar a compreender melhor alguém de quem só conhecemos o lado público.

Anne Pingeot e François Mitterrand apaixonaram-se no começo dos anos sessenta. Nessa altura o político francês tinha 46 anos, era casado e pai de dois filhos, e ela tinha 19. Anne tornar-se-ia - nas próprias palavras de François - não apenas a sua amante, mas a mulher da sua vida. 

Esta relação intensa e de enorme cumplicidade só se tornou pública em 1994, quando a revista Paris Match publicou fotografias do então Presidente da República a sair de um restaurante parisiense com a filha de ambos, Mazarine, nessa altura com 20 anos. Este “escândalo mediático” para a época foi, até então, bem protegido pela comunicação social que o conhecia desde há muito.

E se é verdade que Pingeot terá sofrido pelo silêncio que a rodeou e à sua filha, seguramente que a mulher oficial, Danielle, e os outros filhos não terão sofrido menos, já que chegaram a habitar em lados opostos no Eliseu.

O livro "Lettres à Anne", que saiu há cerca de quinze dias em França, deixou-me uma sensação estranha, que pouco tem que ver com conceitos morais – embora eles existam – mas que tem mais a ver com o homem e o conceito de família que estão por detrás daquelas cartas.

De facto, se esta mulher era assim tão importante, porque é que ele se não divorciou da primeira? Se esta filha foi o fruto desse imenso amor, porquê esconde-la tanto tempo dos olhares públicos? E porque é que todas estas personagens aceitaram desempenhar um papel que apenas Mitterrand impunha? Finalmente, o que leva Anne Pingeot a publicar agora estas missivas, quando o seu amor morreu há vinte anos e a sua rival há cinco?

Estas são para mim as perguntas mais inquietantes. Da resposta a qualquer delas depende, afinal, a ideia que façamos dos diversos intervenientes nesta história.

Que foi uma impressionante história de amor, parece evidente. Mas que tipo de poder tinha este homem para que ela se tenha desenrolado deste modo?!

O André da Fernanda

Francisca Prieto, 06.09.16

Foi-se embora o André da Fernanda. E eu vou lendo mensagens e artigos intercontinentais, escritos por gente séria, impressos em publicações de prestígio a falarem do André da Fernanda. Da sua intransigência enquanto editor. Da sua espada alçada contra o moinho da literatura menor. Da forma como nunca colocou interesses comerciais à frente de boa poesia ou, ainda mais difícil, de grande dramaturgia.

Hoje, por exemplo, o Bernardo Carvalho escreveu um artigo na Folha de S. Paulo que gostaria de ter sido eu a escrever, não só porque acredito que se não existissem editoras como a Cotovia, a oferta de literatura em Portugal seria dolorosamente parca, mas sobretudo, porque gostaria de ter privado mais com ele.

Só o conheci como o André da Fernanda, com o respeito, a admiração e o amor que a Fernanda tinha por ele. Com as suas idiossincrasias e teimosias. Com o seu sentido de humor singular e a sua vontade de fazer o que lhe desse na real gana.

Uma vez resolvemos organizar um sarau de poesia. A Fernanda ofereceu a casa e nós, ingénuas, sugerimos que convidasse o André para participar. Horrorizada, respondeu-nos que era melhor deixá-lo ir jantar fora, que era homem para, ao primeiro verso que falasse de mirtilos, sair porta fora dizendo que era só o que lhe faltava aturar uma coisa daquelas.

Têm uma sintonia, aqueles dois. Mesmo agora. Vêem coisas que nós não vemos e guardam retalhos do quotidiano para trocar à desgarrada, com aquela souplesse que vive inerente à mais fina ironia.

Ficaram-lhes as saudades. Um do outro. E aposto que continuam a coleccionar frases deliciosas para se oferecerem um dia, quando se encontrarem na eternidade.

 

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Amor Vulcânico

Francisca Prieto, 04.09.16

Este ano calhou ir aos Açores e passar de esguelha pela ilha do Faial. Fiz questão de visitar o Vulcão dos Capelinhos. Não porque me interesse particularmente por catástrofes naturais, mas porque me lembro de sempre ter ouvido dizer que o meu pai tinha sido um dos operadores de câmara destacados para cobrir o acontecimento. Em 1958, com a RTP a dar os primeiros passos da televisão em Portugal, lá embarcou o pai Zé António nesta aventura, com os parcos recursos que na época existiam.

Consta que foi durante as filmagens que tomou a resolução de casar com a minha mãe, de maneira que a boda se celebrou um ano mais tarde. Depois nascemos nós em escadinha, e ainda hoje permanecem juntos com um companheirismo e sentido de humor invejáveis.

Ora eu sou uma sentimentalona incorrigível, de maneira que, estando nas redondezas, não podia perder a oportunidade de visitar o local onde uma decisão deste calibre tinha sido tomada. Lá fui, com marido e filhos e, apesar da paisagem crua, não consegui deixar de me comover quando vi a minha filha Rita saltitar por entre as pedras com uma fita cor de laranja no cabelo. De alguma maneira, passados quase sessenta anos, dei com uma neta a marcar o amor dos avós, levando um traço de cor a este local de cinzas.

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Trocas na Maternidade

Francisca Prieto, 06.05.16

Acabo de desligar o botão do comando da televisão depois de uns lamechíssimos noventa minutos de cinema romântico hollywoodesco no seu melhor. Elas, tão giras que até apetecia pregar-lhes pares de estalos, eles, tão doces que só poderiam ser ficção. Pelo enredo fora, flores para cá e flores para lá, que era dia de São Valentim e a ocasião assim o exigia.

Lá pelo meio da fita, quando já me encontrava em ponto de rebuçado com as almas que se cruzam e se encontram e se beijam e se abraçam, dei comigo a pensar que não há miúda que não se derreta com um belo ramo de rosas a entrar-lhe pela porta.

Lembro-me como se fosse hoje do primeiro com que fui obsequiada. Precisamente a 14 de Fevereiro, de há muitos, muitos anos. Acabei por me casar com o remetente, pelo que não cheguei a ter nova oportunidade de ver uma colega de escritório, em pulgas, a empoleirar-se no meu ombro para conseguir ler o cartão.

É verdade que, quando nasceu o meu primeiro filho, assisti a um excesso floricultor a invadir o quarto da maternidade. Tive até de tomar algumas providências quando o cenário de câmara ardente começou a competir com a criança na demanda de oxigénio. Mas, embora me tenha sentido grata pela atenção, não se repetiu o êxtase de receber, num arrobo de romantismo, um ramo de rosas apaixonadas.

Até que, três anos mais tarde e por ocasião do nascimento do filho número três, naquela fase em que já tinha tido tantos filhos em tão pouco tempo que ninguém fazia ideia de que tinha ido parar à maternidade e muito menos se lembraria de ligar à florista para me mandar o que quer que fosse, me entra pelo quarto um rapaz com uma de jarra túlipas amarelas.

Começo a ver o meu marido muito agitado a chamar o rapaz, a sair do quarto muito apressado, eu agarrada à jarra como gato a bofe a pensar que queria lá saber se eram umas túlipas desmaiadas, que aquelas eram minhas e eram as únicas que me restavam.

Só depois fui esclarecida de que tinha ocorrido um lamentável equívoco. A rapaziada das entregas tinha-se enganado e tinha deixado um ramo de rosas vermelho-luxuriante no consultório da dedicada obstetra (com cartão a condizer) e tinha-me entregue a mim as túlipas amarelas que lhe estavam destinadas.

No dia seguinte, pediram muitas desculpas e entregaram novos ramos no locais correctos, o que quer dizer que lá tive direito às minhas rosas-paixão. Mas o cartão, meu Deus, ainda hoje era capaz de matar para saber o que dizia.

Uma questão de amor

Helena Sacadura Cabral, 20.11.15
Não serei muito ortodoxa nas questões de natureza familiar. Chamo de família a uma multiplicidade de formas de vida que não assentam no tripé pai, mãe, filhos. Sempre assumi essa posição e ainda há bem poucos dias escrevi para a EGOISTA um artigo sobre o assunto. 

Hoje foi aprovada na Assembleia da Republica a adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo. Ela já era possível para apenas um dos membros do casal, o que constituia algo de manifestamente estranho.

Se vivemos num país em que o casamento de pessoas do mesmo sexo é permitido, julgo que será muito mais importante do ponto de vista afectivo que uma criança possa estar rodeada do amor de dois pais ou de duas mães, do que viver institucionalizada sem o amor de ninguém.

Sei que esta posição não é politicamente correcta. Sei, também, que essas crianças irão, eventualmente, afrontar a maldade e a discriminação de outras crianças e, até, dos seus pais. Mas prefiro tudo isso - que um dia elas irão compreender - a uma criança reduzida a um número da Segurança Social a viver num orfanato, ou o que lhe queiram chamar, sem um beijo, um abraço, um colo que a ajudem a sentir-se amada!

Por isto tudo, posso perceber que muita gente que eu conheço possa estar muito feliz, não ignorando que muitos outros se possam sentir indignados. É a vida!

A questão do amor ou o amor em questão

José Navarro de Andrade, 15.02.15

Fica então resolvida de vez uma questão que tem afligido a humanidade, o sector euro-caucasiano dela e seus influenciados, pelo menos.

No dia 9 de Janeiro deste ano a escritora e investigadora Mandy Len Catron publicou no NY times o ensaio “To Fall in Love, With Anyone, Do This”, que num piscar de olhos disparou para os oito milhões de visitas, assim provando que correspondia a uma necessidade premente das populações leitoras daquele diário. Não se tratava de uma frivolidade, pois a peça estribava-se num estudo cientificamente académico (ou vice-versa) - cuja inapelável seriedade inscreve-se logo no título: “The Experimental Generation of Interpersonal Closeness: A Procedure and Some Preliminary Findings” - publicado pelo Professor Arthur Aron e sua equipa (de passagem demonstrando que hoje em dia só se pode alegar uma ideia com a caução de um estudo e que há estudos para caucionar tudo). De seguida, num gesto de generosidade e fidúcia, o jornal oferece à puridade uma app que permite a qualquer par de indivíduos apaixonar-se ao fim de 36 perguntas e quatro minutos de jogo do sisudo.

Embora o instinto de defesa nos leve a iludir o facto, todos sabemos que as noções de “amor” e “felicidade”, tal como apaixonadamente as diligenciamos e vivenciamos no nosso dia-a-dia, foram inventadas no séc. XVIII, por poetas que as implantaram na Idade Média (época que eles fantasiaram com inigualável arte), prosseguindo hoje o debate para determinar em que proporção as devemos a Rousseau, a Goethe ou a Byron. Há mais de 200 anos, portanto, ou só há 200 anos…, que andamos com os humores cerebrais atribulados por esta idealização romântica, a qual não deve ser confundida com o amor bíblico de Deus pel@s human@s, embora canonicamente um bocadinho mais por eles do que por elas, ou o amor instintivo e biológico de mãe pelas crias.

Uma das crises mais perturbantes da vida moderna é assistir ao espectáculo de pessoas apoquentadíssimas com os seus sentimentos, prolongando melancolicamente pela vida adulta os avatares da adolescência, fase em que as hormonas e as utopias desarranjam o entendimento. Esta situação é tão comum e preocupante que pelo menos três indústrias (a literária, a musical e a cinematográfica, em suma: toda a cultura) se têm dedicado com persistência e argúcia dissecá-la. Em Portugal apenas a Sra. D. Margarida Rebelo Pinto porfia nesta matéria, com tão pouco sucesso e muito menos resultados financeiros do que os seus congéneres mundiais.

Pois é tudo isto – quase 3 séculos de apaixonado labor, caramba! – que o NY Times e Mandy Len Carter desmobilizam numa penada.

Assim sendo, façamos todos o teste e arrumemos o assunto. Uma coisa é certa: sairá mais barato do que o bilhete para o filme “Anatomia de Grey” que já de si é mais económico que um conjunto de lingerie da Victoria’s Secret.

 

PS – Espero que no dia dos namorados o leitor tenha comprado no comércio local produtos vegetarianos e orgânicos – vê como é simples adquirir um estado de beatitude moral?

Gosto muito de ti!

Helena Sacadura Cabral, 17.04.14

"Deseja-se muita vez a repetição das coisas; deseja-se reviver um momento fugaz, voltar a um gesto falhado ou a uma palavra não pronunciada; esforçamo-nos por recuperar os sons que ficaram na garganta, a carícia que não ousámos fazer, o aperto no peito para sempre desaparecido".

                                   (in umjeitomanso.blogspot.pt)
 
Há muito que defendo que não devemos, nunca, deixar uma palavra por dizer ou um gesto por fazer. Sobretudo, quando se chega ao fim da caminhada é indispensável fazer a chamada revisão geral, para que nada fique em suspenso. 
Mesmo quando fico mais zangada - e zango-me pouco, felizmente - lembro-me disto e a "coisa" torna-se mais suave.
Todavia, aquilo que considero ainda mais importante é dizer, muitas vezes, àqueles que amamos um simples "gosto muito de ti". 
Disse-o àqueles que amei. Continuo a dizê-lo, sempre que me lembro, àqueles que continuo a amar. Mesmo que eles já saibam disso.
E só me entristece não o ter feito muito mais vezes ao meu Pai, já que ao Miguel e à minha Mãe disse-o centenas de vezes.

Leituras

Pedro Correia, 03.02.14

 

«O amor é uma coisa que morre. Uma vez morto, apodrece, mas pode servir de húmus a um novo amor. O amor defunto continua a viver secretamente no novo, de modo que na realidade o amor é imortal.»

Pär Lagerkvist, O Anão (1944), p. 18

Ed. Antígona, 2013. Tradução de João Pedro de Andrade

Um texto que chega do Brasil

Patrícia Reis, 20.12.13

O amor acaba

 

Por Paulo Mendes Campos


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Texto extraído do livro "O amor acaba", Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1999, pág. 21, organização e apresentação de Flávio Pinheiro.

Leituras

Pedro Correia, 29.06.13

 

«Uma pessoa é sempre inocente quando ama, porque regressa sempre à mesma idade emocional, à porta da eterna adolescência. Pura e formosa fui porque desejei e me desejaram. O amor é uma mentira, mas funciona

Rosa Montero, Amantes e Inimigos

Editorial Presença, Lisboa, 1999. Tradução: Maria Bragança