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Delito de Opinião

Com a condecoração chegam as medalhas

Sérgio de Almeida Correia, 15.09.23

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(foto daqui)

Depois da recente visita a Portugal, da condecoração com a Ordem do Infante, e das juras de amor no Dez de Junho à "lealdade e empenho dos portugueses", estava na hora de uma vez mais se demonstrar o apego à secular amizade e a tanta ternura.

Não havendo dúvidas de que a Declaração Conjunta e a Lei Básica continuam a ser exemplarmente cumpridas, pese embora de quando em vez apareça um ou outro pé descalço que se põe a cantar na rua e coloca em risco a segurança nacional, merecendo por isso adequado tratamento, a equiparação dos portugueses que queiram viver e trabalhar em Macau às trabalhadoras domésticas e ao pessoal que faz segurança nos casinos é um bom sinal de que a integração na mãe-pátria segue a todo o vapor e ninguém é discriminado.

É claro que isso acaba por dar algum trabalho ao Cônsul-Geral, mas pode ser que agora, com a injecção de sangue novo no Conselho Consultivo do Consulado e na Fundação da Escola Portuguesa de Macau, tudo possa ser feito com patriotismo e o devido cuidado. Tirar a Escola do local onde está e, finalmente, fazer render aquele terreno parece-me uma hipótese capaz de desbloquear estes pequenos milandos e dar novo fôlego ao ensino do português e à presença lusa no Oriente. 

É evidente que não há aqui nenhum problema de bipolaridade. Nem se trata de haver um discurso para os amigos de Belém e São Bento ao mesmo tempo que se vão dando, assim como quem não quer a coisa, umas caneladas por debaixo da mesa no momento dos brindes.

Não custa perceber que quem se colocou de cócoras, a ver se apanhava as migalhas e umas cerejas que caiam da mesa, ao fim de algum tempo, com os músculos doridos, tenha mais dificuldade em levantar-se, havendo sempre o risco, ao tentar fazê-lo, de levar com um piparote dos outros que tendo chegado mais tarde estejam a tentar ajeitar-se ao lado. Ou que uma pequena brisa deixada pelo último tufão, a quem está nesse estado depauperado, seja o suficiente para lhe fazer perder o equilíbrio e ficar a fazer figura de panda para os comensais.  

Não se vê nada disto em França, no Canadá, na Austrália, no Brasil, no Chile, em Cabo Verde ou no Luxemburgo, que ainda há dias levou 9-0 na bola e teria fortes razões de queixa, por exemplo, mas não é por isso que a música e o baile não devem continuar.

Desde que não seja na rua, obviamente.

Isso seria muito mau para os que já não conhecem outra posição a seguir à de cócoras que não seja de gatas, mas também para a segurança nacional e para os lucros de alguns elefantes que não obstante a vetustez e a obesidade continuam a deambular por aí à procura dos frutos da Dillenia indica como se tivessem acabado de chegar. Tudo causas nobres e que dignificam uma secular relação de amizade.

Seis amigos bastam

Pedro Correia, 15.03.23

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Faz hoje oito dias, jantei com dois amigos. Um deles, não o via há anos. Enquanto partilhávamos petiscos nepaleses e um bom tinto do Douro desfiando risonhas reminiscências do século passado, aquele que agora reencontrei ia narrando episódios rocambolescos da sua vida fragmentada em quatro continentes. Cada qual daria um filme, cada qual rematado por uma frase sábia. Anoto aqui uma delas: «Cada homem só precisa de ter seis amigos a sério na vida, é quanto basta para saber que haverá quem lhe transporte o caixão.»

Metáfora, claro. Mas que toca num ponto essencial. Contrariando o que se proclama agora por aí, em patéticos concursos de popularidade nas redes, medição de pilinhas a pretexto de contabilizar amizades que logo se "desamigam" como quem troca de camisa. Tudo espuma ilusória, falso brilho de pechisbeque social.

Não precisamos de muitos amigos. Ninguém tem mil amigos. Nem cem. Muitos indivíduos nem dez amigos genuínos vão reunindo na vida. Enquanto há cada vez mais gente rodeada de "amizades" virtuais que servem apenas para a partilha de frases ocas. Inúteis para aliviar o peso opressivo da solidão, cancro do mundo contemporâneo.

Seis amigos bastam. Dos verdadeiros, dos que não falham, dos que marcam presença no momento próprio - com uma palavra, um gesto, um conselho, uma memória partilhada. Se os tivermos, é sinal de que a vida já valeu a pena.

A vida real, não a existência postiça que nasce e morre num teclado.

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.

Clara Gema do Ovo (4) - A Normalidade

Maria Dulce Fernandes, 22.12.20

Ficar em casa doente, numa caminha quente e paparicada, sabia pela vida. Ficar em casa fechada quando lá fora se cantava na rua, havia lágrimas, sorrisos , música, alegria e abraços, era pura tortura, mas rapidamente tudo foi regressando à normalidade.
Normalidade é uma palavra com uma espécie de aura positiva, mas as normalidades têm tantas vezes tão pouco do dito “normal". Foi o que aconteceu no dia em que regressámos ao liceu. As alunas não traziam as batas vestidas, nem as mochilas com livros, nem os cabelos presos, nem os sorrisos forçados… muitas trouxeram instrumentos musicais e por todo o lado se entoava a Grândola Vila Morena. A Clara estava como eu, sentada nos degraus que levavam ao pavilhão de ginástica e com a bata atada à cintura. Falávamos do que se sabia pelas notícias e das novidades do Liceu. Queriam sanear a professora de história e a de Inglês. Sanear. Palavra que na altura ligava de imediato a esgoto e que passou a fazer parte do léxico liceal no pós Revolução. Tocou para a entrada. Levantámo-nos para ir para a sala , mas fomos das poucas a fazê-lo. As contínuas vieram ao pátio e instigaram ao cumprimento, mas estava calor, não apetecia nada e a beira Tejo era já ali em baixo. Aquele dia passou-se no limbo da revolta pela inacção. Os que se seguiram foram mais do mesmo, até que tudo aqueceu. Até o tempo.
Um grupo de alunas dirigiu-se à esquadra do Calvário e pediu um megafone emprestado. Então, debaixo de um sol escaldante e envolvidas no ambiente e no som das palavras de ordem, votámos greve geral de alunos e fomos todas para a “praia”. Era ver meninas bem educadas de calças arregaçadas, ou sem calças ou até em cuecas e soutien , naquela estreita língua de areia ao lado da Torre de Belém, a então chamada “Praia da Torre do Pé Descalço", numa espécie de alienação colectiva, como se fora a primeira vez que viam mar. Nem sei se os nossos pais alguma vez souberam desta maluquice.

20201222_104158.jpgO ritmo manteve-se frenético até às férias grandes, com as notas a descambar miseravelmente, mas no fim, com a nova média de 9,5 valores para transitar de ano e candidatar-se à faculdade, foi o autêntico paradigma da festa da vida.
Nesse ano os meus pais cumpriram uma promessa: deixaram-me ir a Londres. Na companhia do Vitinha, da Lena e da Guida, aquela família que nós escolhemos e que foi sempre a nossa, num belo dia de Agosto saí no “Eagle" do Cais da Rocha do Conde de Óbidos até Southampton. A viagem demorou três dias. Vomitei-os todos. Fiz os dezasseis anos a bordo com festejos por parte dos amigos e da tripulação, mas estava mais interessada na localização do WC mais próximo.
Londres era diferente apesar da chuva em pleno agosto e da monocromia pintada pelo nevoeiro, mas era Londres e só podia ser fantástico, . Foram duas semanas de uma viagem inolvidável, saindo depois para Paris e Madrid.
De todas as paragens, escrevi postais à Clara, para que podesse viver comigo parte desta deslumbrante aventura.
O regresso encontrou tudo no alvoroço da normalidade de 1974.

Clara Gema do Ovo (1) - A Clara

Maria Dulce Fernandes, 07.12.20

Tenho saudades da Clara.

Fomos boas amigas, colegas, companheiras de carteira e até cúmplices durante o liceu.

O meu pai chamava-a de Clara Gema do Ovo e sabia que era a melhor influência que naquela altura poderia desejar para mim.

A Clara era o que agora se chamaria uma “croma". Mediana de altura, cheiinha e com uns óculos redondos e grandes, tinha sorriso fácil, uma mente brilhante e uma acuidade artística fora de série. Qualquer tarefa para a qual a Clara se propusesse tinha a garantia da excelência da execução e do primor da conclusão.

As miúdas populares ressentiam-se com a atenção que os professores dispensavam à Clara pelo seu admirável desempenho a todas as disciplinas, com notas a alternar entre os 16 e os 20 valores. Eu não era uma miúda popular. Também não era uma croma. Balançava agilmente entre umas e outras; nunca tomei posição, mas sentia-me bem mais confortável com os cromos do que com a superficialidade que a popularidade confere.

 

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Como todas as adolescentes, a Clara amou com ardor. Desenvolveu uma paixão platónica pelo grego Demis Roussos, exacerbada por uma possível falta de afecto paternal, de tal modo que lhe escrevia intermináveis cartas em tom de diário, contando cada segundo da sua vivência e do seu pensamento que não o abandonava nunca. Escrevia sempre que podia, em cadernos do liceu numerados que a acompanhavam para onde quer que fosse, aos quais acabei por perder a conta.

A Clara trazia consigo recortes de notícias, posters, tudo o que a imprensa nacional e estrangeira pré-revolução era autorizada a disponibilizar ao público jovem em Portugal. O meu primo Dietmar trabalhava na altura na editora da Revista Bravo e arranjava-nos muitas revistas com vários pósteres estupendos (cheguei a forrar a parede do meu quarto com pósteres, alguns de tamanho natural, como foi o caso do Alice Cooper e também do Mark Spitz, com as suas sete medalhas de ouro), muitos deles do Demis Roussos. Pelo liceu era normal ouvir o trautear de “We Shall Dance". Aos poucos conseguiu coleccionar-lhe toda a discografia. E assim a Clara era feliz.

Um belo dia em que levei para o liceu os meus fantoches feitos com colheres de pau, lã e restos de tecidos das costuras da minha mãe, nem sei bem a que propósito, prometi que lhe faria um Demis Roussous em pano, costurando o Titã lírico em escala reduzida, com um “colosso" bem microscópico. Foi uma risota pegada, mas nunca imaginou a Clara que eu cumprisse o prometido.

 

Foto do Google

Dor, saudade e raiva

Diogo Noivo, 01.05.19

Perdi uma amiga que tinha um coração doce e um sorriso glorioso. Corrijo, não a perdi. Foi-me roubada de maneira vil, insidiosa e cobarde. Lamentavelmente, não sou o principal lesado. Antes fosse. Há dois petizes que ficaram sem mãe e um querido amigo que ficou sem o amor da sua vida. Há uma mãe viúva à qual foi arrancada a sua única filha. Há ainda um grupo de amigos de longa data que ficou amputado.

As razões do cretino responsável por tamanha desgraça são para mim imperscrutáveis. Na verdade, as razões pouco importam. A nuvem de angústia e dor lancinante que deixou a pairar sobre várias cabeças é demasiado grande e opressiva para ser explicada. Só percebemos a enormidade da coisa quando nos toca na pele.

Resta-me agarrar a saudade, as muitas memórias de amizade e carinho. E recriminar-me por não ter estado mais presente. Porque não tenho qualquer ambição de chegar ao céu, que sempre me pareceu um sítio aborrecidíssimo, espero que a ira do destino se abata com um fulgor brutal e impiedoso sobre o filho da puta que nos roubou.

Celebração da vida

Pedro Correia, 24.05.18

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   Imagens do facebook da editora Manuscrito

 

Gostei muito de passar pela Central Tejo ao fim da tarde de segunda-feira e ver a ampla sala cheia de amigos e admiradores do Pedro Rolo Duarte na sessão de apresentação do seu livro póstumo - e "o melhor", como bem salientou Miguel Esteves Cardoso. Um livro que teve como cuidadoso zelador o António Maria, filho do Pedro.

«Este é um livro da celebração da vida, da amizade. É o livro do Pedro vivo, não é o livro do Pedro morto», disse o MEC. E disse muito bem.

 

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Foi uma bonita homenagem a um jornalista que bem conheci e que o destino roubou depressa de mais ao nosso convívio. Lá estavam políticos e artistas e profissionais da comunicação - gente que se foi cruzando com ele ao longo de 35 anos de vida em redacções e estúdios - o Pedro, filho de jornalistas, começou muito cedo nestas lides, que já transportava nos genes.

Gostei de muito de ouvir o que disseram o Miguel, o João Gobern, a  Sónia Morais Santos e o próprio António neste lançamento de Não Respire. O Pedro, seguramente, também teria gostado deste convívio que congregou pessoas tão diferentes e variadas - muitas das quais só se reuniriam no mesmo espaço numa ocasião irrepetível, como esta foi.

 

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Comecei entretanto a ler Não Respire. E recomendo. Daqui envio um caloroso abraço ao António Maria e à Sofia Monteiro, editora da obra, que tem chancela da Manuscrito.

«Podia ser um livro de adeus. Mas não: é um livro de até já.»

Palavras do António que o pai certamente gostaria de escutar. Entre um sorriso pronto a rasgar-se e uma lágrima teimosa a escorrer-lhe no rosto.

Ao Rui

Sérgio de Almeida Correia, 17.03.17

 

La cigarette sans cravate
Qu'on fume à l'aube démocrate
Et le remords des cous-de-jatte
Avec la peur qui tend la patte
Le ministère de ce prêtre
Et la pitié à la fenêtre
Et le client qui n'a peut-être
Ni Dieu ni maître

Le fardeau blême qu'on emballe
Comme un paquet vers les étoiles
Qui tombent froides sur la dalle
Et cette rose sans pétales
Cet avocat à la serviette
Cette aube qui met la voilette
Pour des larmes qui n'ont peut-être
Ni Dieu ni maître

Ces bois que l'on dit de justice
Et qui poussent dans les supplices
Et pour meubler le sacrifice
Avec le sapin de service
Cette procédure qui guette
Ceux que la société rejette
Sous prétexte qu'ils n'ont peut-être
Ni Dieu ni maître

Cette parole d'Evangile
Qui fait plier les imbéciles
Et qui met dans l'horreur civile
De la noblesse et puis du style
Ce cri qui n'a pas la rosette
Cette parole de prophète
Je la revendique et vous souhaite
Ni Dieu ni maître

 

On se retrouvera. Obrigado, meu amigo.

O André da Fernanda

Francisca Prieto, 06.09.16

Foi-se embora o André da Fernanda. E eu vou lendo mensagens e artigos intercontinentais, escritos por gente séria, impressos em publicações de prestígio a falarem do André da Fernanda. Da sua intransigência enquanto editor. Da sua espada alçada contra o moinho da literatura menor. Da forma como nunca colocou interesses comerciais à frente de boa poesia ou, ainda mais difícil, de grande dramaturgia.

Hoje, por exemplo, o Bernardo Carvalho escreveu um artigo na Folha de S. Paulo que gostaria de ter sido eu a escrever, não só porque acredito que se não existissem editoras como a Cotovia, a oferta de literatura em Portugal seria dolorosamente parca, mas sobretudo, porque gostaria de ter privado mais com ele.

Só o conheci como o André da Fernanda, com o respeito, a admiração e o amor que a Fernanda tinha por ele. Com as suas idiossincrasias e teimosias. Com o seu sentido de humor singular e a sua vontade de fazer o que lhe desse na real gana.

Uma vez resolvemos organizar um sarau de poesia. A Fernanda ofereceu a casa e nós, ingénuas, sugerimos que convidasse o André para participar. Horrorizada, respondeu-nos que era melhor deixá-lo ir jantar fora, que era homem para, ao primeiro verso que falasse de mirtilos, sair porta fora dizendo que era só o que lhe faltava aturar uma coisa daquelas.

Têm uma sintonia, aqueles dois. Mesmo agora. Vêem coisas que nós não vemos e guardam retalhos do quotidiano para trocar à desgarrada, com aquela souplesse que vive inerente à mais fina ironia.

Ficaram-lhes as saudades. Um do outro. E aposto que continuam a coleccionar frases deliciosas para se oferecerem um dia, quando se encontrarem na eternidade.

 

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Tão longe e tão perto, Zé Paulo

Pedro Correia, 13.04.16

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Sentimos que começamos a envelhecer quando cada vez mais gente à nossa volta nos trata por você em vez de tratar por tu. Na segunda-feira despedi-me de uma pessoa que me tratava por tu há 33 anos - outra pessoa que parte cedo de mais, outra pessoa com quem ficaram tantas conversas por partilhar. Foi o José Paulo Canelas, um grande profissional do jornalismo, um amigo de décadas.

 

Éramos absurdamente novos, absolutamente infatigáveis, ingenuamente crentes de que seríamos capazes de tornar realidade todos os sonhos. Eu editava na altura o segundo caderno do semanário Tempo, um dos jornais com maior tiragem à época, e havia decidido remodelá-lo alterando-lhe o grafismo e até o nome - passou a chamar-se Fim de Semana. Obtive luz verde da direcção para contratar novos colaboradores e colunistas - de uma geração mais jovem e com uma linguagem mais arejada e dinâmica.

Entrou assim em cena o José Paulo, que passou a ter a seu cargo duas páginas de temas desportivos - era já então a área que preferia. Trabalhámos juntos, semana a semana, durante quase três anos: posso garantir que foi um dos raros colaboradores que não falharam um prazo. Oferecia sempre mais do que lhe era pedido em textos que me chegavam irrepreensíveis às mãos - ao contrário de outros, que precisavam de ser profundamente alterados ou mesmo refeitos de alto a baixo após julgamento sumário e condenação à guilhotina.

Finda esta experiência, reencontrámo-nos durante alguns meses na revista Nova Gente, onde fui um fugaz subchefe de Redacção. Trabalhávamos imenso mas divertíamo-nos na mesma proporção naquela indescritível cave em Queluz onde não decorria um dia sem um toque surreal. Com histórias que davam para um bom livro, garanto-vos. Ou para trechos de filmes de um Buñuel ou um Fellini.

 

Depois os nossos destinos separaram-se. Eu saí de Portugal, andei dez anos por fora, cumpri o sonho de dar a volta ao mundo. Ele seguiu a rota do jornalismo desportivo, para a qual tinha genuína vocação: passou pela Gazeta dos Desportos e pelo Record, e chegou a subdirector do diário O Jogo. Como sucede a quase todos nós, sucedeu-lhe então uma inesperada alteração de rota, especializando-se noutra área do jornalismo: chegou a director da revista TV 7 Dias e era agora subdirector da TV Guia, embora em situação de baixa há cerca de um ano.

Foi quando exercia funções directivas n' O Jogo que, estando eu de regresso ao País e sem trabalho, recebi um telefonema dele a convidar-me para editor do jornal em Lisboa. Algo que jamais esqueci, jamais esquecerei. Só quem nunca passou pelo desemprego é incapaz de avaliar a importância destes gestos.

 

Na igreja do Santo Condestável, ao princípio da tarde de segunda-feira, dizia-me o Fernando Sousa, seu primo-irmão, que o José Paulo Canelas, por mais atarefado que andasse, nunca perdia de vista os amigos e tentava sempre ajudá-los. Sou testemunha directa desta generosidade. Sempre discreta, muito à maneira tímida dele, quase como se precisasse de pedir licença para nos mostrar que tinha um coração enorme.

Naquele momento triste, reencontrando após tantos anos parte da "minha" equipa da Nova Gente, foi possível sorrirmos juntos ao lembrarmos episódios irrepetíveis em que fomos protagonistas. O espírito do Zé Paulo permanecia intacto, ali connosco.

Por breves instantes, inspirados por ele, voltámos a ser miúdos outra vez. De uma alegria contagiante, de uma energia inesgotável, com a sensação de que não há metas impossíveis e temos um tempo sem limite pela frente.

Tratamo-nos todos por tu e combinámos jantar. O Zé Paulo vai lá estar também.

Colaborações & Cia.

Sérgio de Almeida Correia, 13.04.16

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"O aborrecimento é o sintoma da deterioração da nossa relação com o mundo e, também, connosco próprios. O aborrecimento apenas desaparece voltando ao mundo, ou seja, aceitando o desafio. Procurando, portanto, a nossa nova identidade" — Francesco Alberoni, A Amizade, 1984 

 

Não é a primeira vez que a nossa vida pública é confrontada com um caso em que alguém é chamado a colaborar com o Estado, neste caso através do gabinete do primeiro-ministro, sendo levantadas dúvidas sobre o tipo de colaboração, a forma de vinculação e a relação existente entre convidante e convidado.

Nos dias que correm, num país e num mundo assolado por sucessivos casos de corrupção, burlas, aproveitamento ilegítimo de cargos de poder em benefício próprio, do partido, de amigos, de confrarias e até de seitas que funcionam à margem de qualquer controlo político-democrático, longe de qualquer escrutínio, onde se movimentam múltiplos e milionários interesses, alguns de origem e objectivos obscuros, é natural que muita gente se questione sobre a colaboração que tem vindo a ser dada por Diogo Lacerda Machado ao primeiro-ministro António Costa.

É natural, mas também é desejável que numa democracia tudo o que interessa aos seus destinatários e possa bulir com o interesse público seja devida e rigorosamente escrutinado. O que, evidentemente, não dá qualquer autoridade moral a quem protegeu os amigalhaços e a camarilha para vir agora dizer que "se possa confundir uma relação pessoal com uma relação institucional e contratual”. 

Tal como aconteceu noutros casos, o problema que está em causa não é só de legalidade. Também é de ética, de transparência e de confiança nas instituições e nos seus agentes.

Que o primeiro-ministro, o actual ou qualquer outro, necessite de se rodear de pessoas da sua confiança para levar a cabo as tarefas que se propôs, as que são necessárias para salvaguarda dos interesses nacionais ou cumprir o programa de Governo que a Assembleia da República aprovou, não causa qualquer rebuço aceitá-lo. Como também é normal que numa democracia não baste à mulher de César ser séria e parecer séria. É também preciso que o que transpareça para a opinião pública, para além de uma mulher saudável e fisicamente atraente, seja uma relação sã, séria e salutar.

Não tenho dúvidas nenhumas, nunca as tive, quanto à honradez ou a seriedade do primeiro-ministro ou de Diogo Lacerda Machado. Conheço-os há anos suficientes para as poder atestar. Mas este facto, ou a amizade existente entre eles ou aquela que eu próprio lhes possa ter, não se confunde com a exigência de escrutínio e de transparência da nossa vida política.

Sabe-se que o Estado tem quadros cada vez menos qualificados em diversas áreas. Porque os seus técnicos são mal pagos, como o são os políticos. Só que não será por causa disso que as tarefas que se lhes impõem podem deixar de ser realizadas com seriedade e competência, sob pena de passarmos a vida, enquanto cidadãos e contribuintes, a sermos enganados por meia dúzia de burocratas ou de trapaceiros, consoante o pelouro, que vão aproveitando a sua incompetência e irresponsabilidade para se irem safando e criando as PPP’s que a todos nos enterram. As mesmas que hipotecaram o futuro de várias gerações de quadros qualificados, muitos obrigados a viverem e trabalharem no estrangeiro para poderem manter condições dignas de sobrevivência e valorização profissional e académica.

Mas é igualmente verdade que a democracia e a república não se esgotam nas leis. E é na forma como o poder é encarado, assumido e exercido, no modo como se faz a política, como as regras são ou não são cumpridas, que é possível julgar os actos de governo e as acções dos agentes políticos.

A transparência, tal como já antes o afirmei em relação a outros governos, não é uma palavra vã. E tão importante como ela é o que está acima dela e das leis: o compromisso ético. Numa democracia adulta o respeito por uma ética pessoal, política e de governo implica que seja esse o primeiro juízo a ser efectuado por quem escrutina. E é sobremaneira importante que o que tem de ser feito o seja em termos tais que seja tão transparente que até aos mais cépticos e aos mais mal intencionados não seja possível levantar-se a mais pequena dúvida sobre o que foi feito, como foi feito e com base em que pressupostos se fez. Foi isto que falhou no caso da contratação de Diogo Lacerda Machado.

Não vale a pena discutir se um tipo pode ou não trabalhar pro bono ou a receber uma quantia simbólica pelos valiosos e competentes — o Diogo merece que isto seja dito — que prestou ou pode vir a prestar. Todos sabemos que se pode trabalhar à borla, não só no voluntariado, e que nem todos são mercenários ou arrivistas ignorantes sedentos de poder e de dinheiro. A educação, o sentido de responsabilidade, a ética e a noção do dever não se compram, embora haja muitas “escolas” a vendê-las. Aquelas são coisas que se aprendem, que se cultivam e que se interiorizam porque nos são úteis ao longo de toda a vida.

Por isso mesmo, qualquer que seja a leitura que possa ser feita do passado próximo, mas também do mais distante, estiveram bem os que exigiram ver toda esta situação esclarecida. Espero que isso seja feito. Estou certo que o será rapidamente. E quero acreditar que situações de falta de transparência não se voltarão a verificar.

 

A amizade é um valor intemporal, uma projecção da alma de cada um, um pilar da vida e da confiança em nós próprios e nos que nos rodeiam. É também um valor que deve ser protegido e estimulado, mas que em matéria de assuntos de Estado deverá estar sempre abaixo deste e das sua leis e regulamentos. E todos estes devem subordinar-se a regras éticas e de transparência que são fundamentais para a confiança na democracia e nos homens que a fazem.

 

Em política há emoções, há sentimentos, há pessoas, há regras. Para alguns há, felizmente, ainda valores. Mas também deve haver inteligência e bom senso. A amizade, essa, coloca-se noutro patamar. Convém ter isso sempre presente porque qualquer amigo o compreende. Para que não se comprometa a amizade, para não nos comprometermos aos olhos dos que servimos comprometendo a imagem das instituições que servimos. Preservando, em especial, a confiança em quem em nós confiou. Tornando mais firme o compromisso ético a que estamos obrigados no serviço aos outros. Criando riqueza que não pode ser avaliada em acções, cotada em bolsa ou pendurada na lapela do casaco.

 

(Visto de Macau, em Cascais)

Da importância de ser amizade

Patrícia Reis, 21.07.14

A melhor forma de amor é a amizade, é quase banal dizer ou escrever, mas talvez não seja tanto assim.

Quantas vezes pensamos nós nos amigos? Quantas vezes telefonamos para saber deles e não contar a nossa vidinha?

Quantas vezes é que somos mesmo amigos: sentados à mesa, a partilhar uma refeição, a rir, perdidos no tempo, sem noção das horas, petiscando pedaços de pão (ou, muito melhor, pedras de Santiago)?

Este sábado, com o miúdo-quase-homem, uma amiga e apenas nós, o meu marido e eu, corremos tudo: política, sexualidade, direitos e deveres, histórias mal contadas, acontecimentos de vida marcantes.

E, quando a nossa amiga falou da avó Joana, os olhos ficaram do tom mais profundo do mar e o nosso coração encolheu, viemos à superfície e sobrevivemos na conversa. Por amor. Por amizade. Por estarmos todos com os telemóveis desligados. Sem preocupações de monta. Das oito da noite até quase às quatro conversámos.

Caramba, uma conversa é tão importante!

E tudo foi recíproco. Nada foi dito a medo, com formalidade.

Quando é assim, posso garantir, é um privilégio.

da fragilidade da amizade

Patrícia Reis, 17.12.13

Há uma amiga que se fará à estrada, rumo a Faro, para se "despedir do homem que foi a grande referência da sua vida".

O pai.

Estou tão longe, o céu está carregado de nuvens, não se vêem os morros, as favelas parecem presépios e a ideia está tão gasta que me mete pena só de a escrever.

Ser amigo é cuidar. É estar. É ouvir. Ser amigo é saber ser amigo. É perceber a fragilidade do outro e dizer-lhe que é uma rocha. É mostrar-lhe as brechas quando se sente uma rocha. Ser amigo é difícil, a mais complexa forma de amor. A melhor.

A minha amiga vai perder o pai.

No ano passado, perdi o meu avô. Outros perderam amigos, familiares, filhos, vizinhos. É a vida, dizem.

É pena que a vida seja isto.

A última viagem do José Alberto

Pedro Correia, 26.05.13

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Julgo que foi o único colega de profissão com quem estive em cinco continentes. Desde logo em Lisboa, onde chegou a ser um dos profissionais mais qualificados da RTP. Os nossos caminhos profissionais cruzaram-se depois em Macau, onde dirigiu os canais de rádio e televisão da TDM. Mais tarde, reencontrei o José Alberto de Sousa em Nova Iorque, onde desempenhava as funções de conselheiro da missão permanente de Portugal junto das Nações Unidas e vivia do outro lado do estuário do Hudson, já em Nova Jérsia. Encontrámo-nos de novo em Cabo Verde, quando ele ali chefiava a delegação da RTP África, e em Díli, onde era assessor da administração da Rádio e Televisão de Timor-Leste.

Era um gentleman, capaz de estabelecer os consensos mais improváveis, sem nunca sentir a necessidade de levantar a voz. Um excelente pivot televisivo, aparentemente imperturbável mesmo nas situações de maior stress. Um homem com uma curiosidade insaciável, sempre disponível para conhecer diferentes lugares e diferentes culturas, e que mesmo quando exerceu cargos directivos nunca se fechava na redoma dos gabinetes.  Um bon vivant, que sabia aproveitar como poucos o lado solar da vida. Um boémio à moda antiga, capaz de cultivar a conversa à mesa como forma de arte. Um daqueles, cada vez mais raros, para quem a amizade era um posto. Por isso há hoje inúmeros amigos, nos mais diversos locais, a lamentar a sua morte - tão precoce e para mim, que nem o sabia doente, tão inesperada.

Despeço-me dele, como tenho a certeza de que gostaria, com esta morna na voz do Ildo Lobo que escutámos num dos nossos jantares na cidade da Praia. Quando havia muitos amanhãs no horizonte e a Morte era uma dama distante a que nenhum de nós sonhava passar cartão.

 

E a estrela do 41º aniversário da revolução líbia foi...

Rui Rocha, 22.02.11