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Delito de Opinião

O peru é para o Natal

Maria Dulce Fernandes, 26.12.21

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Da varanda da casa dos meus pais em Belém a vista era deslumbrante, um autêntico postal de Lisboa, com a Ponte sobre o Tejo a surgir altaneira na ponta esquerda, a Torre de Belém a brilhar no fundo do lado oposto e o rio a espelhar tranquilo a verdejante banda de lá. Dali seguíamos muitos barquinhos da carreira na sua rota que parece de brincadeira entre a estação de Belém e a Trafaria ou o Porto Brandão, contávamos os contentores nas mega-embarcações, tentávamos  imaginar o faustoso interior dos grandes paquetes de viagens e, chegadas as andorinhas e o viçar primaveril, assistíamos ao longe, em cada Abril, à bênção dos bacalhoeiros. Era uma tradição do nosso país, despedirmo-nos dos barcos engalanados que partiam para os gelos do setentrião em busca do Fiel Amigo que, acessível a todas as bolsas, abundava seco e salgado em inúmeras despensas portuguesas.

Sendo durante muito tempo o herói da gastronomia nacional, o bacalhau esteve presente desde que me lembro na mesa da nossa consoada, cozido com as batatas, as cenouras, os nabos e as couves e transformado em Roupa Velha no dia seguinte, sempre consumida antes do galo corado.

Tentando sempre manter a tradição familiar, falhámos redondamente ao tentar transmitir o gosto pelo bacalhau à nossa descendência, mais carnívora e menos paciente com os pescados e respectivas espinhas, incapaz de se deliciar com os prazeres gelatinosos de uma cabeça de garoupa cozida, por exemplo.

Concediam a consoada, mas para o Almoço de Natal acordou-se cozinhar peru.

Bicharoco gringo de carne seca se por descuido, o peru tem que ter truque para ficar dourado, suculento e saboroso. Já não sendo necessária a decapitação após bem borracho e a depena, encomenda-se no talho um macho encorpado com cinco ou seis quilos e com extra miúdos para o arroz. Depois de lavado, chamuscado e limpo dos “canos” das penas, fica a marinar num recipiente grande, de modo a poder ficar totalmente coberto com a marinada.

Coloco sal a gosto, sumo de 2 laranjas grandes, sumo de 2 limões grandes também,  no mínimo 200 ml de cada. Parto 4 laranjas e 4 limões às rodelas. Parto 4 cebolas aos oitavos e junto 2 cabeças de alhos esmagadas. Os temperos são a gosto na quantidade: junto 8 estrelas de anis, 8 folhas de louro, 12 cravinhos inteiros, 4 paus de canela, uma colher de sopa de pimenta em grão e uma colher de sopa de cardamomo. Não ponho pimentas frescas por causa das crianças mas o meu pai punha. Acrescento um litro e meio de aguardente bagaceira forte e meia garrafa de vermute. Junto tudo ao peru na panela e adiciono água até cobrir. Marino o bicharoco durante 24 horas.

No dia de Natal, toca a acordar com o cantar do galo. Limpa-se o animal da marinada. Enche-se a panela com água e sal, põe-se ao lume até ferver e dá-se um “entalão” ao bicho durante cerca de dez minutos. É mais um truque para acelerar o processo, já que um bom peru necessita de uma hora por quilo para ficar bem assado.

Num copo de varinha mágica, coloco 8 alhos, uma colher de sobremesa de colorau, meia colher de chá de cominhos, meia colher de chá de cravinho em pó, uns borrifos de noz moscada, o sumo de uma laranja, o sumo de um limão, uma colher de sopa de banha, 50 ml de azeite, 50 ml de vinho branco, 20 ml de vinho do Porto, uma colher de sopa de mel, trituro tudo num creme pastoso e reservo.

Unta-se o peru com margarina ou manteiga amolecida e vai ao forno quente. Ligo o meu forno para o peru a 190°. Assim que começar a ganhar cor, pincela-se com o creme anteriormente preparado, tarefa a repetir durante todo o processo de assadura. Quando começar a dourar, para não queimar, cobre-se com folha de alumínio. É um processo moroso e que requer alguma paciência.

No final, coa-se e engrossa-se o molho que fica no tabuleiro. Se ficar muito ácido podemos juntar açúcar, caramelo, xarope de ácer…

Normalmente fica um espectáculo.

Sirvo com um belo arroz de miúdos, castanhas assadas no molho e esparregado. Não costumo rechear.