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Delito de Opinião

Reflexão do dia

Pedro Correia, 13.03.24

«Uma das regiões que, comparativamente, mais contribui para o crescimento do PIB, via actividade turística [o Algarve], é uma das mais abandonadas do País. Abaixo de Sines, há um dermatologista… em part-time. A primeira pedra do novo hospital do Algarve já foi lançada, pelo menos, quatro vezes. Centros de saúde e maternidades fecham a eito e serviços encerram com base em critérios inexplicáveis. Não há rede de transportes dignas desse nome. A A22 é a única via verdadeiramente transitável que atravessa a região, mas décadas de reivindicações para acabar com as portagens foram ignoradas por sucessivos governos. Atravessa-se a fronteira e vê-se a diferença. E os algarvios, empobrecidos, tornados criados dos residentes estrangeiros que fizeram disparar o preço da habitação, vivem com o credo na boca do emprego sazonal. E os que encontraram um pé de meia no alojamento local sentem-se, agora, ameaçados pelas políticas hostis do Governo.»

 

Filipe Luís, na Visão

Uma certa forma de governar

Pedro Correia, 14.10.21

Será que Alvito existe?

Pedro Correia, 09.11.20

Estado de emergência, uma vez mais. Direitos, liberdades e garantias fortemente condicionados. Recolher obrigatório de segunda a sexta entre as 11 da noite e as cinco da manhã, ao fim de semana entre as 13 horas e as cinco da matina. Como bem alerta a Ordem dos Advogados, estas medidas que nos encerram em casa aos sábados e domingos são uma «fortíssima restrição do direito ao repouso e descanso dos trabalhadores». Na prática, o Governo autoriza os portugueses a sair de casa só para trabalhar. Partindo do princípio de que é mais fácil apanhar o vírus a caminhar na rua do que fechado num comboio ou num autocarro. «Não conheço nenhum caso comprovado, conhecido em Portugal, de transmissão do vírus Covid-19 em transporte colectivo», declarou há dias o pitoresco ministro do Ambiente e da "Acção Climática", espécie de Professor Pardal neste Executivo.

Todos quantos estão sem trabalho, por terem perdido o emprego ou terem visto falir o seu negócio, ficam agora duplamente discriminados. Apetece rumar ao Algarve, onde não se aplica o estado de emergência - excepto no concelho de São Brás de Alportel. Ou migrar para Alvito, único concelho de Portugal continental onde nunca foi registado um caso de Covid-19. Mas será que Alvito existe?

Quando cai a noite

Pedro Correia, 03.09.20

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A roda andava ali, a namorar-me há vários dias. Passava pela feira popular, junto à marina de Lagos, e aquelas luzes tocavam-me de nostalgia: serão após serão, aumentava a vontade de dar uma voltinha. Como um irresistível regresso aos carrosséis da infância.

 

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Por imediata associação de ideias, senti-me remetido ao Prater, em Viena - àquela roda gigante onde foi rodada uma cena crucial de um dos meus filmes favoritos: O Terceiro Homem, com Orson Welles e Joseph Cotten. Recordo a emoção de me sentar numa daquelas cabinas que figuram na história do cinema, com o célebre parque de diversões a diminuir de tamanho aos nossos olhos enquanto a roda ia girando com deliberada lentidão.

 

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Tal como aqui. Sem a magnífica partitura de Anton Karas em fundo, mas com uma visão soberba desta cidade algarvia que me acolhe como se estivesse em casa. Vista de vários ângulos. Desde logo o da marina, que ganha um encanto muito especial quando cai a noite.

 

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O ângulo inverso não é menos atraente. Com a ribeira pronta a desaguar no oceano, ali bem próximo, e a sensual urbe perseguindo-a nesta rota - orgulhosa dos seus pergaminhos históricos, consciente do fascínio que continua a exercer sobre os forasteiros. Mesmo em tempo de sustos pandémicos. 

Voltei a pôr os pés no chão com refrescante alegria. Nada de especial tinha acontecido, apenas isto: durante uns minutos, senti-me miúdo outra vez.

Elas, eles e as máscaras

Pedro Correia, 01.09.20

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Diálogo entre duas mulheres em férias algarvias:

- A minha máscara cheira a merda.

- Credo! Porque é que não a deitas fora?

- Era o que faltava, andar a comprar máscaras. Tenho muito mais em que gastar o meu dinheiro.

 

.....................................................................

 

Diálogo entre dois homens em férias algarvias:

- Ontem, ali no urinol, mijei na máscara. Levava-a na mão, estava distraído e não reparei.

- E o que fizeste?

- Tive que a pôr na cara mesmo assim. Sabes que eles não nos deixam andar sem máscara aqui no hotel.

- Mas não a lavaste antes?

- Olha, nem me lembrei disso.

Tão boas praias aqui tão perto

Pedro Correia, 30.08.20

Algumas das mais belas praias do País encontram-se também entre as mais desconhecidas dos portugueses. Situam-se no Barlavento algarvio, entre Lagos e Sagres, e (salvo honrosas excepções) quase nunca ouvimos falar delas.

Basta reparar nos telediários: cada vez que algum alude ao Algarve, em geral e abstracto, só nos mostra imagens de Quarteira, Vilamoura ou Albufeira. É preciso ser muito ignorante para presumir que a nossa região mais meridional pode sentir-se representada por aquelas povoações.

 

Confesso-me cada vez mais rendido aos encantos desta zona costeira, que tenho percorrido com atenção e vagar nesta segunda quinzena de Agosto.

Aproveito para partilhar convosco alguns postais (fotos minhas) destas praias que merecem ser visitadas. Cada qual com o seu charme, cada qual com o seu encanto.

Se ainda não as conhecem, visitem-nas assim que puderem. Espero que gostem.

 

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Praia Dona Ana (Lagos)

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Praia de Porto de Mós (Lagos)

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Praia de Burgau (Vila do Bispo)

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Praia de Cabanas Velhas (Vila do Bispo)

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Praia da Salema (Vila do Bispo)

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Praia do Zavial (Vila do Bispo)

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Praia da Ingrina (Vila do Bispo)

De boca bem tapada

Pedro Correia, 28.08.20

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Passeio nas ruas de Lagos, onde me desloco pela segunda vez neste Verão. Mais gente por estes dias, mas confirma-se a tendência: muito menos turistas do que no ano passado. Tanto em terra como sobre as águas, fluviais ou marítimas.

Cruzo-me com um número crescente de pessoas, na rua, usando máscaras. Devem confundir o Algarve com a Madeira, onde - aí sim - as autoridades forçam a utilização permanente de máscara em todos os locais públicos ao ar livre, exceptuando (por enquanto) praias e piscinas.

 

Não falta, no entanto, quem utilize aquilo só como enfeite. Transportando-a na testa, no queixo, na orelha, no ombro, no pulso, no cotovelo, onde calha. Para andar assim, não será melhor ficar guardada?

No passeio público, junto à ribeira de Bensafrim, cruzo-me com um pai e dois filhos pequenos: vão todos de máscara encarnada, com o símbolo do Benfica. Sinto-me como espectador de um Carnaval antecipado.

 

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Bem à portuguesa, na hora de comer, formam-se filas. Todos acorrem à mesma hora aos mesmos locais. Largas dezenas de pessoas - sem manterem distância de segurança - amontoam-se, aguardando vez, à porta de estabelecimentos como a Casa do Prego e a Adega da Marina.

Chegam a esperar mais de uma hora por um lugar em espaços apinhados, onde a comida é de uma banalidade confrangedora, quando existem, ali bem perto, muitos restaurantes com melhor ementa e espaço disponível.

 

Nunca hei-de entender estes comportamentos. Mais risíveis só as pessoas que vou vendo, de toalha estendida no areal da Meia Praia, também de máscara posta: devem imaginar que a brisa marítima transporta o vírus.

Reparo num par de namorados caminhando de mão dada à beira-mar. Vão ambos mascarados, como se receassem contaminação mútua. Até o amor cede passo à disciplina sanitária, mesmo na idade em que a líbido comanda a vida.

Também se beijarão de máscara? Não me custa imaginar tal coisa. Em tempo de pandemia, todas as precauções são poucas.

 

O maior dilema ocorre na hora de comer. Creio ter chegado a hora de o Presidente da República fazer um apelo aos criativos da indústria portuguesa, incentivando-os a conceber uma máscara com fresta removível na zona labial para permitir a rápida ingestão de alimentos sem necessidade de retirar o famigerado adereço. Portugal registaria a patente e mostraria ao mundo como se faz.

Poderia chamar-se Máscara Marcelo, em merecida homenagem ao cidadão português que transporta aquilo há mais tempo e durante mais tempo. Foi, aliás, o primeiro a correr sagazmente para casa, encerrando-se durante duas semanas em voluntária quarentena doméstica, enquanto quase todos andávamos por aí, à vontadinha, expostos à codícia do Covid.

Ele é que a sabe toda, vou pensando entre dois mergulhos. A praia continua desafogada - sinal evidente de que o inquilino de Belém permanece longe daqui.

 

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Não conseguiram melhor que isto?

Pedro Correia, 19.08.20

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Há muito que me espanto com a absoluta falta de talento revelada pelos nossos compatriotas quando decidem atribuir nomes aos estabelecimentos comerciais. É como se a imaginação e o bom gosto entrassem subitamente em greve por tempo ilimitado. 

Eis um exemplo: o que levará alguém a dar um nome destes a um restaurante, situado numa das artérias mais movimentadas do centro de Lagos? Sou incapaz de vos dizer se é ou não poiso recomendável. Pelo mais óbvio dos motivos: passo à distância quando encontro um charco.

Psicodrama à mesa

Pedro Correia, 18.08.20

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"Os portugueses sabem comer bem e apreciam boa comida." Oiço esta frase desde sempre e há muitos anos que a contesto.

Penso cada vez mais o contrário. E tenho a prova por estes dias. Janto num dos restaurantes que servem melhor peixe e marisco em Lagos. Fica junto à lota, os frutos do mar desembarcam praticamente do barco para a cozinha.

Aqui só como peixe, devo confessar. Apesar disso, nas mesas em redor escuto insistentes pedidos de gente a suplicar por "bitoque" e "picanha". O que me deixa estarrecido.

 

Há dois dias, um miúdo malcriado pôs-se a fazer birra, dizendo que só comia piza. Com palavrinhas doces, os pais procuravam convencê-lo que ali não havia disso: o "melhor" que se arranjava era um hambúrger.

Ao fim de muito tempo, lá acabaram num consenso: o puto acedeu mas o pai da criancinha teve de implorar por um prato "cheio de batatas fritas" para calar o palerma do filho. Que daqui a uns anos andará obeso e a competir no campeonato nacional do colesterol.

 

Enquanto este psicodrama decorria, eu degustava um petisco bem algarvio: barriga de atum, acompanhada com batata cozida e salada mista, temperada a meu gosto. Pensando: a instrução gastronómica faz parte da educação integral. Os pais que começam por falhar aqui, acabam por falhar em quase tudo.

Depois são capazes de culpar tudo e todos: o Estado, o Governo, os partidos, os políticos, sei lá o quê.

Mas a culpa é só deles - e dos péssimos exemplos que dão aos filhos.

Férias sem testes nem máscaras

Pedro Correia, 13.08.20

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Praia de Burgau

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Na praia do Camilo

 

Enfim "desconfinado" (um dos nossos habituais eufemismos em jeito português suave), escolhi local de férias.

Dei prioridade aos Açores: quero conhecer a ilha de Santa Maria, antigo sonho meu, reforçado pela leitura recente de Crime em Ponta Delgada, romance (que recomendo) do meu amigo Francisco José Viegas. Azar: logo se lembrou o Governo Regional presidido pelo socialista Vasco Cordeiro de decretar testes obrigatórios ao novo coronavírus a todos os passageiros desembarcados do continente. Alguns destes supostos "empestados" chegaram a permanecer três dias compulsivamente encerrados em quartos de hotel em Ponta Delgada, sem possibilidade de rumar a outras ilhas, enquanto aguardavam os resultados dos testes.

Mudei de planos. E olhei então para a Madeira, mais concretamente para Porto Santo - onde existe uma das cinco ou seis mais belas praias portuguesas. Só lá estive uma vez, há mais de uma década: seria a ocasião ideal para regressar. Mas também aqui tudo se alterou: o Governo Regional presidido pelo social-democrata Miguel Albuquerque lembrou-se então de decretar o uso obrigatório da máscara nos espaços públicos do território insular, incluindo os que desfrutamos ao ar livre. Alguém com um módico bom senso vai de férias para andar o tempo todo de máscara arriscando pagar multas de 30 euros por ser visto sem ela? Não conheço ninguém, com excepção do Presidente da República, mesmo que tal medida - nunca aplicada no continente - suscite polémica entre os constitucionalistas.

 

Desisti, portanto. Vim para o Algarve, sem testes nem máscara ao ar livre. Um Algarve muito mais "desconfinado" do que o de 2019. Com muito menos turistas estrangeiros, alguns quase de todo ausentes - como os ingleses, os norte-americanos ou os canadianos. Mas, até por isso, com preços mais convidativos e mais espaço para manter distância física (não "distanciamento social", expressão absurda, que não é nem jamais pode ser regra sanitária) em relação a vizinhos de hotel, de apartamento, de praia ou de piscina. 

Fixei-me em Lagos. E tenho andado pelas praias das imediações, com destaque para a belíssima Burgau, que nos sugere um recorte da costa adriática. Mas também a praia do Camilo, com restaurante acoplado. E, claro, a icónica Meia Praia, onde há sempre lugar para todos - é de uma extensão só comparável a Montegordo ou ao quase vizinho Alvor.

Isto sim, é "desconfinamento". Enquanto o senhor Cordeiro e o senhor Albuquerque, regedores das ilhas, desesperam com falta de turistas, incluindo os continentais: só podem queixar-se deles mesmos. Que lhes faça bom proveito.

 

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Lagos ao anoitecer

O País do trabalho sem direitos

Pedro Correia, 17.07.19

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Férias no Algarve. São 18.30 quando chego a um dos meus restaurantes favoritos, sem marcação prévia. Em busca do peixe bem grelhado de que tanto gosto. 

Atende-me um empregado que bem conheço. Hoje [ontem] parece-me pouco satisfeito.

- Que se passa? - pergunto.

- Falta de folgas. Cansaço. Dias após dias sem folgar.

- Mas ontem [segunda-feira] estiveram fechados, aliás como é costume...

- Sim, mas foi o último dia. O patrão acaba de avisar-nos que durante os próximos dois meses não teremos folgas. Até 15 de Setembro estaremos sempre a funcionar.

- E vão ter alguma compensação financeira por isso?

- Nem mais um cêntimo. É pegar ou largar, disse ele.

- E ele nega-vos mesmo a folga semanal?

- Sim. Ainda tentámos que no desse meia folga, ao menos isso. Mas recusou.

 

Eis um quadro que se vai multiplicando por esse Algarve fora. Acumulam-se os clientes, acumula-se a receita, acumulam-se os lucros - e diminuem os direitos dos trabalhadores, a começar pelo mais básico: o direito ao descanso.

Até Deus, que é omnipotente, descansou ao sétimo dia. Estas entidades patronais, julgando-se num mundo em que são elas a ditar as leis, arrogam-se no direito de explorar até ao tutano quem lhes presta serviço. É o caso deste restaurante, que tem um número fixo de empregados: em vez de reforçar os quadros nos meses de maior afluência de público, adequando a oferta à procura com o recrutamento de trabalhadores temporários, estica ao máximo os recursos de que dispõe, insuficientes nesta quadra, negando-lhes contrapartidas remuneratórias ou as mais que justas folgas de compensação.

Às sete da tarde, as duas salas estão cheias e começa a formar-se fila à porta para jantar. Os empregados correm de mesa em mesa: já ao almoço ocorreu algo semelhante e terão pelo menos mais três horas seguidas neste ritmo frenético.

 

Não é difícil fazer uma estimativa perante tal afluência, multiplicando comensais diários por custo médio de refeição: a meio da semana, neste estabelecimento, já a despesa estará coberta. A partir daí, tudo é lucro. O problema é que estes patrões - que adoram intitular-se "empresários" - mostram pressa em matar a galinha dos ovos de ouro. São cada vez mais frequentes os casos de cozinheiros e empregados de mesa que, cansados de tanta exigência a tão baixo preço, procuram vias profissionais alternativas. 

Tenho um amigo, proprietário de três restaurantes em Lisboa sempre cheios, que se queixa disto mesmo:

- Eles deixam de aparecer, muitas vezes nem avisam. Temos de improvisar tudo, transferindo pessoal de um estabelecimento para outro às vezes em cima da hora de abertura.

- Porque é que vocês não lhes pagam mais? - indago.

- Eh pá, sabes, a vida está difícil para todos...

 

Segue-se o habitual rosário de queixumes da parte de quem prospera a olhos vistos mas só pretende dividir escassas migalhas desses dividendos. Em Lisboa como no Algarve.

Mesmo em férias, vou pensando: eis o País que não mora nas estatísticas nem na propaganda do "Portugal positivo". O País do lucro máximo de alguns à custa dos direitos mínimos de muitos. O País onde é possível trabalhar dois meses sem sequer meio dia de folga diária, quase em regime de servidão feudal. O País do trabalho sem direitos a que partidos que tanto invocam a "classe trabalhadora", como o BE e o PCP, fecham os olhos neste quarto ano contínuo de "geringonça".

Foi para subsidiar patrões como estes que o Governo Costa/Centeno decretou logo no início uma das medidas mais demagógicas de que há memória em anos recentes: a redução da taxa do IVA na restauração. Os restaurantes não baixaram preços nem recrutaram gente: limitaram-se a ampliar as margens de lucro. Enquanto o Estado via diminuir quase 400 milhões de euros a receita fiscal neste sector, que logo tratou de compensar por outras vias, esmifrando os do costume - nós, os contribuintes - com a maior carga tributária de sempre: 35,4% do produto interno bruto.

 

Pela primeira vez, confesso, não apreciei o peixe grelhado que comi aqui.

Poetisa, pitonisa

Pedro Correia, 20.03.19

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Eis-me em Lagos. E a caminho da Meia Praia, num final de Inverno que mais parece início de Verão, deparo com esta placa. Homenageando justamente uma das maiores escritoras portuguesas de todos os tempos. E também justamente aqui, pois Sophia está profundamente ligada a Lagos, onde compôs alguns dos seus mais belos poemas.

Gosto desta homenagem. E gosto também que a placa toponímica a designe por "poetisa", reabilitando assim este belo substantivo feminino agora escorraçado do discurso cultural dominante, que designa homens e mulheres pela palavra poeta, na reiterada tentativa - que em certos casos deriva para obsessão ideológica - de esbater diferenças de género. 

Há palavras que me tocam muito. Uma delas é precisamente poetisa - que rima com pitonisa. Agrada-me vê-la exposta a quem passa, nesta Rua Sophia de Mello Breyner Andresen, em Lagos. Onde hoje vejo «a luz mais que pura sobre a terra seca», como a autora do Livro Sexto escreveu, aqui bem perto, há mais de meio século. 

Um país de artistas sem igual

Sérgio de Almeida Correia, 27.07.18

"Apesar de não haver, no currículo de Luís Gomes a indicação de trabalho que o classifique para este projecto, a Câmara Municipal de Faro garante que o trabalho que desenvolveu enquanto edil da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António mostram que "é alguém sem igual na questão do planeamento e urbanismo""

 

Sim, concordo, "é alguém sem igual". Basta ver o vídeo, ouvir a música e apreciar o estilo. 

Espero que depois o Presidente da Câmara Municipal de Faro não se esqueça de organizar uma bacalhoada e mandar um convite a Rui Rio. Ele adora o género.

Carlos Silva e Sousa

Sérgio de Almeida Correia, 23.02.18

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 (créditos: Sul Informação)

Esta tarde, no final de mais uma viagem, entrei no terminal do aeroporto e desactivei o modo de voo. Liguei o telemóvel e a notícia caiu de chofre. Fulminante como um raio vindo sabe-se lá de onde. Desta vez não houve tempo para nada. Nem um abraço. Apenas distância.

Conheci-o por intermédio de um casal de amigos comuns que haviam sido seus contemporâneos em Coimbra, na Faculdade de Direito. Há muito que me falavam dele, mas nunca se proporcionara. E quando nos conhecemos foi pelas razões mais estúpidas.

Eu era arguido. Um fulano que exercia (ou exerce) funções no MP, usando o seu soslaio olhar, formalmente correctíssimo, deduzira contra mim uma acusação. Devido ao modo, note-se, como o mandato fora exercido num processo findo. Por puro acinte, o que quem gere a corporação na altura não conseguiu vislumbrar. Não sei se ainda será assim, mas naquele tempo aconteceu.

Daquela vez calhara-me a mim. Acusado de difamação, se bem me recordo. Na contestação, como se impunha, mais a mais estando em causa um fulano que fora acusado de desde a década de Oitenta — altura em que teria aí uns cinco anos de idade — ter participado na constituição de uma associação criminosa, eu fora duro para com a instituição a que ele pertencia, verberara o simulacro de investigação que havia sido conduzido pelas polícias e, como não podia deixar de ser, fora contundente durante o julgamento para com quem patrocinara aquele espectáculo. Quando esse julgamento chegou ao fim, e o meu constituinte foi absolvido das magnas acusações que sobre si impendiam, sobrou para mim.

Houve quem tomando as dores de terceiros se tivesse queixado, para assim se desencadear o processo contra mim, o advogado. E eu lá tive que me ir defender, entrar em despesas, incómodos e chatices, pois claro.

De imediato recebi o apoio do então Bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, logo depois seguido pelo do seu sucessor. E no meu julgamento lá estiveram arroladas como testemunhas, entre outras, um magistrado do MP, entretanto jubilado, aquele que foi o juiz-presidente do tribunal colectivo no tal julgamento do sujeito que fora o meu constituinte — que foi lá para dizer que sim, que era verdade, que eu tinha sido advogado naquele processo, que o meu constituinte fora absolvido e que o vertido nas peças processuais, onde descobriram a pretensa ofensa depois do processo concluído, até fora depois confirmado no acórdão final —, mais o presidente do Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, o meu estimado António Cabrita, e mais uns quantos, entre companheiros de profissão, colegas de curso e amigos.

No dia das alegações finais o senhor procurador que me acusara resolveu não aparecer. Envergonhou-se. Quem veio em representação do MP foi um magistrado mais jovem, novo na comarca, que não acompanhara o processo nem o julgamento, mas que tendo lido o processo e sabendo da prova que havia sido produzida teve a hombridade de pedir logo a minha absolvição. Fui, evidentemente, absolvido. E na sentença lá estava, preto no branco, a afirmação de que fizera, é certo, uma defesa veemente, dentro dos limites, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas, actuando como qualquer “bom advogado” se comportaria se colocado perante a mesma situação. Isto é, perante a falsidade, o agravo, em suma, fazendo um uso adequado da toga e dos instrumentos jurídicos, pugnando pela justiça, com arrojo, com dignidade, com frontalidade.

Naturalmente que fiquei satisfeito com o que se apurou. E com dúvidas não fiquei de que, apesar das despesas e dos incómodos por que passei, essa decisão honrou a magistratura portuguesa, reconhecendo o profissionalismo e a seriedade do mandato exercido.

O meu advogado nesse processo, logo a seguir à instrução e por impedimento do primeiro mandatário e nosso comum amigo que o indicara, acabou por ser o Carlos Silva e Sousa, que embora acompanhado pelo Paulo Freitas fez todo o julgamento e as alegações finais. Podia perfeitamente ter recusado o patrocínio. E tinha todas as razões para isso. Era um homem muito ocupado, com uma vida profissional intensíssima, desdobrando-se entre o trabalho no escritório, no partido e na autarquia, sem esquecer os assuntos ligados ao(s) consulado(s). Além de que na altura não me conhecia de lado nenhum e o processo era uma estopada. Nem no dia da leitura da sentença me deixou pagar-lhe o almoço.

Graças a esse episódio por que passei — triste no início, feliz na conclusão — ficámos amigos. Depois disso fiz vários julgamentos em Albufeira. O Carlos tinha aí o seu escritório, do outro lado do Tribunal e da Câmara Municipal. Na altura, creio, já era também o Presidente da Assembleia Municipal. Não obstante, estive com ele muitas vezes. Arranjou sempre tempo para tomar um café comigo, para dois dedos de conversa, para discutir a actualidade política, muito embora soubesse que eu na altura era activo numa agremiação concorrente. Comentava, ria-se, piscava o olho, puxava de um cigarro. E sorria, o Carlos sorria muito, serenamente (entre homens de bem não é a política nem o futebol que os separa porque o carácter é mais forte, é o carácter que os motiva e cria laços).

Foi assim com o Carlos Silva e Sousa. Falou-me dos seus vinhos, das propriedades para os lados de Tavira e da Fuzeta, do processo de regeneração das vinhas, do seu amor à terra e ao que esta produzia, do seu gosto em andar de botas aos fins-de-semana, campo fora, sem preocupações, sentindo os cheiros que chegavam avermelhados na imensidão do azul e da serra. O Carlos Silva e Sousa produziu alguns magníficos néctares. Um dia encontrei-o num pequeno expositor da Feira de São Brás, promovendo os vinhos que ele próprio produzia. Lá estivemos à conversa. Perguntava-me pelos amigos comuns que não via há anos. Comprei-lhe umas caixas de vinho, que o filho me ajudou a transportar até ao carro. Ficámos de combinar uma almoçarada, na quinta dele, com mais alguns. Acabou por nunca se proporcionar.

Ainda nos encontrámos nalgumas outras ocasiões. Tomávamos um café, às vezes, quando eu ia a Albufeira, subia a escada, do outro lado da rua, e passava pelo escritório dele. Ocupado como era raramente estava. E eu também não podia ficar à espera. Falávamos à distância. O abraço ficava adiado. Até hoje. Quando me chegou a notícia do seu falecimento.

O Carlos Silva e Sousa era um tipo de uma correcção extrema, com um humor corrosivo, de sorriso sempre aberto, de uma disponibilidade total para o trabalho, aliando a argúcia e a inteligência do advogado com o equilíbrio e o bom senso dos bons juízes, talvez fruto da herança paterna. Hoje perdemos todos. O Algarve perdeu um cidadão exemplar. E eu fiquei a dever um abraço ao Carlos Silva e Sousa. Um abraço fraterno. De gratidão. A um homem de bem. Um grande abraço.

José César

Sérgio de Almeida Correia, 26.01.18

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Quando eu era miúdo, a minha Mãe metia-me no comboio, no final de cada ano lectivo, e ele esperava por mim em Faro, para me levar para uns dias de férias junto ao mar. Isso foi no tempo em que a Ilha de Tavira não tinha campistas, nem parques de campismo, não havia rádios aos altos berros, nem restaurantes de hambúrgueres. Os pais dele tinham uma casa na ilha. Como marinheiro que fora, embarcado e com várias voltas ao mundo na "Sagres", levou-me a velejar e à pesca. Foi com ele que apanhei salmonetes à noite, burriés, e mergulhei pela primeira vez no azul profundo do Algarve. Deu-me a conhecer a Meia Praia, Santa Luzia, as Quatro Águas, Sagres. Tantos locais, tantos mares que para mim eram novidade. Foi logo no primeiro Verão a seguir ao 25 de Abril. Depois continuou nos anos seguintes. Uma vez, à noite, enquanto os adultos jantavam, fui mordido por um cão pastor dos Pirenéus. Quis fazer do bicho cavalo e ele não gostou. Levou-me de chata pela ria, até Tavira, para uma freira me coser. Dessa vez passei o resto das férias de castigo, de perna e braço entrapados. Via-me jogar futebol na praia, todos os dias, com os mais velhos, achava-me graça, e por causa disso passou a tratar-me por "Beckenbauer", em homenagem à grande estrela da selecção alemã e do Bayern de Munique. Eu sempre achei que seria mais o velho Müller, ou o Eusébio, pois gostava de marcar golos. Para mim, no início da minha adolescência, ele era uma espécie de Jacques Cousteau com sotaque algarvio, com a pele muito tisnada. Conhecia toda a gente, miúdas giras, todos o conheciam. "Agora vamos ali tomar um café, vou apresentar-te um borrachinho!". O "borrachinho" tinha mais vinte anos do que eu. Elas riam-se e ele gozava com a minha timidez. Foi ele que me apresentou o Dentinho e o Brito da Mana. Eram parceiros no mergulho. Eu era o primo. Tomava conta do barco e das garrafas de mergulho. Nesse tempo, ele fazia de tudo um pouco, um verdadeiro artista. Cozinhava, decorava cafés, pintava painéis, quadros, fazia barcos em miniatura. Ainda era casado com uma prima minha, que entretanto partiu e de quem, por força de circunstâncias várias, viria a divorciar-se. Já  a viver com outra pessoa disse-me que fora casado com uma senhora. Gostava muito dela. E tinha um Giannini 1000, de cor roxa, com uma risca branca a meio, carro que comprara ao Cônsul do Reino Unido no Algarve. E também um MG branco, descapotável, com o qual os dois fazíamos a EN125 entre Faro e Tavira. Às vezes, já adulto e a viver fora de Portugal, encontrava-o em casa da minha Mãe. Aparecia nos aniversários dela. Estive muitos anos sem ir ao Algarve, décadas, deixei de o ver, de com ele conviver. Um dia regressei ao Algarve. Acabei por ir viver para Faro, reencontrei-o. Tratou de me fazer o papel e os novos cartões de visita na tipografia onde estava a trabalhar. Ainda estivemos juntos algumas vezes, mas já então era um homem triste, muito diferente daquele que conheci. E tínhamos vidas e interesses diferentes. A vida tinha-lhe pregado algumas partidas. Só vestia de preto e branco, usava um brinco de ouro, como os piratas, e a aliança no polegar. Um excêntrico bem educado, simpático, com um incrível sentido de humor, que pintava, decorava e também gostava de poesia, chegando inclusivamente a publicar alguns livros, na esteira da senhora sua Mãe, poetisa algarvia. Ainda me ofereceu dois com dedicatória. Nos últimos anos andava adoentado, mal dos olhos, e ia de quando em vez a Coimbra. Para "fazer a revisão", como ele me dizia sempre com algum humor quando me encontrava junto à Pontinha. Nos últimos anos perdemos o contacto. Víamo-nos de quando em vez, sempre ali para os lados da Rua de Santo António. Perguntava-me pelo Alfa e pelos tios. Tínhamos vidas diferentes. Também ele foi, à sua maneira, um homem livre. Nunca lhe pagarei os dias e noites de liberdade que me proporcionou, nem a forma como me deu a conhecer o mar do Algarve e a Ria Formosa. Soube há pouco que a vida voltou a pregar-lhe mais uma partida. Foi a última. O José César faleceu ontem a caminho de Coimbra. Tiveram de parar o comboio. Em Santiago do Cacém. Já não chegou a tempo de mais uma revisão. Oxalá que tenham para ele, lá em cima, um lugar com vista para o areal da praia de Faro. E para a ria. Para que ele possa continuar a ver o Sol esconder-se todas as tardes, vermelho fogo, para os lados do Ancão. Ele merece-o.

Para encher a barriga

Pedro Correia, 29.06.14

 

Manhã muito cedo, já o pescador veio aviado. Traz um carregamento de peixe que vai amanhando e atirando para um grande balde. Com gestos mecânicos e expeditos, serve-se da faca para lhes retirar as vísceras, que deposita ali, nas águas plácidas da ria. As incisões são feitas a bom ritmo e com precisão cirúrgica: não tarda, o balde vai enchendo.

O homem prossegue a tarefa, imperturbável. Está descalço, de pés plantados na ria, calças de ganga arregaçadas. Esquarteja ferreiras e besugos que daqui a poucas horas estarão estendidos nas grelhas.

O sol já se ergueu acima da linha dos telhados, o calor aumenta, a faca prossegue o seu curso na mão direita do homem, seco e tisnado. Há um frenesim de gaivotas em seu redor: disputam as vísceras dos peixes numa atmosfera de solene algazarra. As mais possantes afastam a concorrência à força de bicadas, o alarido de umas depressa atrai as atenções de outras que logo se aproximam.

Mas não parece haver necessidade de lutas: o petisco chega para todas.

 

Da marginal de Cabanas, uma senhora pergunta ao pescador a como lhe vende o peixe. O homem informa-a sem sequer a olhar nem abrandar o ritmo: extrai as entranhas, lava o peixe e atira-o para o balde.

A senhora aproxima-se, interessada, já de nota na mão.

"Eu quero aquele maior para encher a barriga", diz-lhe, apontando com o dedo. O peixe recém-pescado salta do balde para um saco de plástico em poucos segundos. O homem prossegue o seu labor, imperturbável. As gaivotas navegam à sua volta, como se fossem patos num inquieto alvoroço. A senhora regressa à marginal em passo pausado por força conjugada da idade e do calor.

Espreita o saco: o peixe é grande. O almoço de hoje está garantido, amanhã logo se vê.

Coisas verdadeiramente importantes

Pedro Correia, 06.08.13

"Uma praga de melgas está a perturbar as férias dos turistas na zona de Armação de Pera, no Algarve. Os insectos surgem normalmente à noite e estão a suscitar queixas quer dos turistas quer dos próprios empresários e comerciantes. Queixas enviadas tanto para as autarquias como para as autoridades da saúde."

Lançamento de uma notícia que hoje preencheu sete minutos do Jornal da Tarde, da RTP