Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

A última viagem de comboio

João Campos, 01.05.23

É uma daquelas ideias soltas que nos assalta de vez em quando: a dada altura teremos feito algo pela última vez sem o sabermos, de tal forma que o mais provável é nem nos lembrarmos de tal ocasião por o seu momento não ter sido memorável. Lembramo-nos de inúmeras vezes em que brincámos na rua, em que saímos para o bar do costume, em que juntámos o grupo todo para um serão de conversa nas noites quentes de Verão - mas não nos lembramos do momento exacto em que o fizemos pela última vez.

Em Setembro assinalarei os vinte anos da minha vinda do Alentejo para Lisboa. Foram quase duas décadas a fazer viagens regulares de comboio entre a capital do país e a minha pequena aldeia natal no interior Sul. No primeiro par de anos que cá passei, o percurso era feito da estação da aldeia até ao Barreiro, sendo então a travessia do rio concluída de barco (e ainda apanhei os velhos barcos, apesar de ter beneficiado da transição para os catamarãs mais modernos). Era o tempo do extinto Inter-Regional que percorria toda a linha do Sul desde a margem do Tejo até à margem do Guadiana em Vila Real de Santo António. Esse comboio ainda tinha carruagens com compartimentos, que eu e os meus amigos por vezes conseguíamos ocupar nas idas para baixo (para cima não tínhamos hipóteses, claro). Às Sextas e aos Domingos o comboio enchia-se de rapazes e raparigas de dezoito, dezanove, vinte anos - estudantes da universidade e tropas no serviço militar. Hoje serão menos, uns e sobretudo outros.

No seguimento do Euro 2004, da travessia ferroviária do Tejo e da electrificação da Linha do Sul, vimos o "comboio da ponte" matar o Inter-Regional - com a ligação entre as estações centrais de Lisboa e o Pinhal Novo concretizada, a CP colocou automotoras eléctricas a fazer o percurso entre esta localidade do distrito de Setúbal e Faro, com automotoras mais antigas a assegurar as restantes ligações no Algarve. Não me lembro ao certo de quanto tempo durou esta solução, mas lembro-me bem de como acabou - com a CP a mudar os comboios para horários menos convenientes, até eliminar as ligações por uma "falta de procura" mais auto-inflingida do que qualquer outra coisa. E assim morreram pela segunda vez dezenas de pequenas estações e de diminutos apeadeiros - primeiro quando as instalações foram encerradas por falta de pessoas, e depois, em definitivo, quando os comboios deixaram de lá parar. Quem deles precisasse teria de se deslocar para longe - Alcácer do Sal, Grândola, Funcheira, Messines - para apanhar o Intercidades. No meu caso, o destino era a Funcheira, esse velho entroncamento votado à irrelevância pela desertificação inexorável do interior alentejano e pelo fim quase criminoso da ligação ferroviária a Beja, a nossa bela e longínqua capital de distrito. Há 30 anos podia ir e vir - como fui e vim, tantas e tantas vezes - de comboio da aldeia para Beja; uma das minhas memórias mais antigas é dos campos infinitos de girassóis que o comboio atravessava, um mar amarelo lindíssimo a contrastar com o azul profundo do céu alentejano. Não sei sei ainda se cultivam girassóis algures entre Ourique e Beja; mas se houver, ninguém os poderá apreciar da janela do comboio.

Quis a sorte, ou uma rara insistência dos presidentes das Juntas de Freguesia da minha região, que a estação da minha aldeia conhecesse uma ressureição parcial. Afinal, a Funcheira fica ainda no concelho de Ourique, e ficava mal a uma empresa pública como a CP, paga por todos nós, ter comboios a passar pelo maior concelho em território do país - Odemira - sem lá fazer uma única paragem. A estação não reabriu, claro - na minha memória ainda guardo a imagem da antiga bilheteira onde o Sr. Marques vendia os pequenos rectângulos de cartão coloridos que davam acesso ao comboio, bilhetes a sério, nada dos talões de compra que hoje em dia passam por bilhetes em todo o lado, dos comboios aos cinemas; essa porta está definitivamente fechada -, mas o comboio voltou a parar lá. E assim a viagem de quarenta quilómetros que o meu Pai fazia para me ir buscar à Funcheira às Sextas-feiras (e mais quarenta quilómetros para me ir levar, necessariamente) foi reduzida para um breve passeio de dois quilómetros da porta de casa à estação. Mais conveniente seria difícil.

Mas essa conveniência foi-se desvanecendo, sobretudo com a degradação do serviço da CP. Em cerca de quinze anos de Intercidades tenho a sensação de que as carruagens continuam a ser as mesmas, apenas mais e mais sujas (vi coisas inacreditáveis nestes anos, e fiz viagens em condições impensáveis para um país com pretensões de desenvolvimento). Os atrasos são constantes, e de há cinco meses para cá sempre que quis ou precisei de ir à terra vi-me condicionado por greves. Percebo os motivos, e apoio - o direito à greve é fundamental. Mas nesta fase da minha vida, e sobretudo da vida dos meus pais, não posso mais ficar dependente dos humores de uma empresa pública tão essencial como mal gerida.

Os bilhetes que fotografei não terão sido da última viagem que eu e a Ana fizemos de comboio até à nossa terra - não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, por um ou outro motivo, recorreremos de novo ao Intercidades. Mas marcam a última viagem regular de comboio entre a Lisboa onde (ainda) vivemos e as aldeias onde crescemos, e das quais saímos há mais de vinte anos. Voltámos no Domingo, conversámos sobre o fim-de-semana, sobre a semana que se avizinhava, lemos em silêncio durante um bocado - a minha companhia de leitura foi o canadiano Peter Watts e o estimulante Echopraxia. Terei saudades daquelas duas horas e quinze minutos (fora atrasos) de pouca-terra-pouca-terra a ler, a escrever, a ver o meu belíssimo Alentejo a passar para lá das janelas. Também por isso faço questão de me lembrar desta última viagem.

IMG_20230416_195918.jpg

Uma questão maior

João Pedro Pimenta, 01.10.21

Já houve vários resumos às autárquicas, partidárias e locais, já se falou na vitória amarga do PS, na derrota doce do PSD, no esvaziamento da CDU, no CDS que se equilibra em arames, no Bloco que continua sem peso autárquico, nos razoáveis mas demasiado histéricos ganhos do Chega, no voto urbano da IL, no peso dos independentes, mas não vi nenhuma análise profunda aos nomes dos candidatos do Alentejo.

Permitam-me então felicitar, no Alandroal, Aranha Grilo (será entomólogo?), que bateu Saruga Matuto; Pena Sádio, de Estremoz; em Mora, 45 anos de presidência de PCP acabaram com o triunfo de Calado Chuço sobre Fortio Calhau; no Redondo, Fialho Galego soube fazer frente a Palma Grave e Rega Recto; em Vendas Novas, Hortelão Aldeias não logrou a reconquista; já na ducal Vila Viçosa, Ludovico Esperança ganhou a autarquia calipolense fazendo jus ao nome, para desconsolo de Canhoto Consolado e do desventurado Ventura Mila.

Mais para baixo, Mestre Bota mantém Almodôvar e Penedo Efigénio roubou Alvito a Feio Valério; Cuba é bem nacional quando Casaca Português não dá veleidades a Burrica Caniço; o histórico Pita Ameixa permanece em Ferreira do Alentejo e em Moura, apesar dos esforços de Ventura, Floreano Figueira não conseguiu destronar Pato Azedo e igual sorte tiveram André Linhas Rôxas e Fialho Acabado. Ao lado, em Serpa, Véstia Moisão, Efigénio Palma e Torrão Félix tiveram de se conformar com a vitória de Tomé Panazeite.
 
Mais a Norte, em Arronches, Ventura Crespo não deu hipóteses a Moacho Feiteira, Vicente Batuca e Amiguinho Cordeiro. Parabéns a Gonçalo Amanso Pataca Lagem, em Monforte, e lamente-se a derrota de Rosmaninho Bichardo em Nisa.
 
Mesmo não tendo o seu partido ganho a câmara, assistimos ao regresso autárquico do grande poeta elvense Chocolate Contradanças (que será feito de Borrega Burrica, de Campo Maior?). Lamentável a todos os títulos é o triste exemplo de Évora, que voltou a dar o triunfo, embora curto, a Carlos Pinto de Sá, em detrimento de Henrique Eva Sim-Sim e sobretudo de Raul Arromba da Silva Rasga.
 
Um abraço para o Alentejo, com desejos de felicidades aos novos (e velhos) autarcas.

Do Alentejo a Trás-os-Montes

Pedro Correia, 08.03.16

mw-860[1].jpg

Foto Tiago Miranda/Expresso

 

Palavra dada é palavra honrada, como diz o outro.

Lá fui portanto ao lançamento do livro do Henrique Raposo, Alentejo Prometido. Valeu a pena. Estava muita gente na Bertrand das Picoas - precisamente o local onde lancei o meu primeiro livro. Seguramente mais de duas centenas - entre as quais o cardeal-patriarca, D. Manuel Clemente, e o empresário Alexandre Soares dos Santos.

O Henrique chegou a comover-se enquanto fazia alguns agradecimentos, certamente satisfeito por se sentir rodeado de tão vasta "moldura humana", para usar uma expressão popularizada pelos relatores do futebol. Antes dele, apresentando o autor e a obra, falaram o escritor José Rentes de Carvalho e o jornalista Henrique Monteiro, responsável por ter convidado o seu homónimo para colunista do Expresso, já lá vão uns dez anos.

 

Nenhum dos energúmenos que andaram a exibir nas redes sociais imagens do livro a ser queimado ou a lançar impropérios de todo o tipo ao autor apareceu por lá. Houve um protesto, sim, mas com classe e categoria: a dada altura alguns assistentes, devidamente organizados, cantaram um coral alentejano com irrepreensível afinação, retirando-se de seguida entre aplausos de muitos dos presentes. A sessão prosseguiu sem sobressaltos.

Cruzei-me com o Pedro Boucherie Mendes, sportinguista dos quatro costados, e com o Ricardo Araújo Pereira, benfiquista até à medula.

 

Vi muitos outros rostos conhecidos: lá estavam o Alexandre Borges, o Luís Naves, o André Abrantes Amaral, o João Villalobos, o Rodrigo Saraiva, o João Távora. Cumprimentei também o João Vieira Pereira, o Pedro Lomba, o Miguel Morgado, a Helena Nogueira Pinto, a Isabel Goulão, a Sofia Vala Rocha, a Tânia Raposo, o Nuno Costa Santos, a Paula Caeiro Varela, o João Céu e Silva, o Luís Rosa. Felicitei o Pedro Mexia pelo lisonjeiro (e merecido) convite que lhe fez Marcelo Rebelo de Sousa para consultor da Presidência da República na área cultural. Apresentei-me finalmente à Carla Quevedo, colega de tantos anos na blogosfera.

Prometi ao Francisco José Viegas que na quinta-feira estarei no lançamento de outro livro, em que ele será anfitrião. E, claro, também a nossa Ana Margarida Craveiro - esposa do autor - mereceu um cumprimento especial.

2016-03-08 22.42.48.jpg

 

Tratando-se de uma livraria, não podia ter saído de lá sem livros. Trouxe Os Doze Césares, de Suetónio, com tradução de João Gaspar Simões (por sugestão do João Gonçalves), e Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia, de Rentes de Carvalho (por sugestão da Alda Telles). Mais dois títulos para leituras das minhas primeiras férias de 2016, que não vão tardar.

De Suetónio, claro, não foi possível trazer autógrafo. Mas do transmontano Rentes de Carvalho sim. Com extrema simpatia e um vigor notável para um homem de 85 anos, recusou a cadeira que alguém lhe foi buscar e assinou-me o livro ali mesmo, em pé, enquanto trocávamos dois dedos de conversa, com um repórter do canal Q à espera para lhe fazer uma entrevista.

 

Daqui a dois dias o livro será outro. E prometo desde já dar notícia dele.

Paisagens estranhas

Ana Lima, 05.10.12

 

A placa diz “Proibida a passagem a pessoas estranhas”. E é como pessoas estranhas que se  devem sentir os habitantes destas terras. Porque as paisagens que conheceram desapareceram… E as novas paisagens que observam são inacabadas, dificilmente lhes dirão alguma coisa.

Percorremos parte do IP8. Talvez por ser fim de semana, poucos automóveis se encontram. Temos dificuldade em perceber porque não se apostou no alargamento, em alguns troços, desta via e se optou pela construção de uma auto-estrada. Mas o facto é que foi essa a decisão. Estudos, certamente cientificamente válidos, concluíram que se deveria avançar para essa solução que uniria uma cidade com porto (Sines) a uma cidade com aeroporto (Beja).

Terrenos, alguns integrados na Reserva Agrícola Nacional, foram expropriados. Empreitadas e subempreitadas foram preparadas, favorecendo a sustentabilidade e o emprego na região. E as obras começaram. As máquinas abriram caminho, as propriedades foram cortadas ao meio, os viadutos e pontes começaram a despontar, os arqueólogos, nas suas escavações, depararam-se com estruturas interessantes…

E as obras pararam (prevendo-se, apenas, a conclusão de troços entre Sines e Santo André e entre Sines e Santiago do Cacém). A justificação é a de que o tráfego previsto não justifica a construção da auto-estrada, que o aeroporto tem bons acessos (e mais que suficientes para a utilização que tem) e que, desta maneira, se evitam gastos maiores podendo beneficiar-se a conservação e requalificação do IP8. Dada a situação em que se encontra a nossa economia estes são argumentos de peso.

Mas e agora? É que não estamos a falar de projectos no papel. Falamos de milhões de euros gastos. Falamos de quilómetros e quilómetros de paisagem arruinada; de área verde destruída; de terrenos agrícolas, alguns com grande potencial, esventrados; de infra-estruturas iniciadas que, à mercê dos fenómenos meteorológicos, ficarão impróprias para qualquer uso futuro. Falamos de escavações arqueológicas que, ao ficarem a meio, prejudicam as empresas envolvidas e não poderão contribuir para aprofundarmos o conhecimento de um valioso património. Falamos de empresas que viram na auto-estrada uma oportunidade de sobrevivência e que agora pensam no despedimento de trabalhadores. Falamos de aldeias onde os agricultores não poderão estar descansados com medo que o seu gado se perca ao cair em valas; onde os pais terão medo que os seus filhos brinquem nas redondezas, pois o perigo espreita, indiferente a avisos escritos. Falamos de uma área do país que tem visto alguns projectos criarem grandes expectativas que depois não são satisfeitas (Alqueva concretizou apenas uma pequena parte do impacto positivo previsto) deixando a população, cada vez mais, descrente da justeza das decisões que se tomam em nome do desenvolvimento.

Passear nesta bela região, assim tão maltratada, é observarmos um retrato da nossa pobreza, da nossa incompetência, da nossa incapacidade de planearmos, com rigor, intervenções que acabam por ter resultados desastrosos.

O Alentejo merecia melhor.

 

Voz da Planície

Laura Ramos, 30.08.11

 

Nada como uma pausa num monte alentejano para nos devolver a dimensão do tempo.

Nem tão imóvel quanto agora. Nem tão urgente quanto aquele que nos aguarda.

Esta quietude não é deste mundo. O mundo da pam-politização. Das convulsões. Dos impasses da moeda. Da geo-estratégia. Das culturas decadentes e das economias emergentes. Da insegurança. Do medo do futuro. Do pânico da perda.

- Pânico? - Perda? Não. Subitamente, o mundo é isto, aqui, suspenso na relatividade absoluta de uma abóbada celeste descomunal e perfeita, descrevendo um ângulo raso tão nítido, de extremo a extremo, quanto os milhares de estrelas que semeiam este céu sardento.

Larguei o meu Divórcio em Buda (na verdade, e por hoje, estou um pouco farta das confissões de Kristóf, talvez porque me lembrem um pouco a minha própria vida, tão alinhada entre os apelos do desempenho e as contradições do espírito).
Apaguei as lanternas do terraço e assim fiquei, espectadora da noite, perdida nos enigmas do planeta, nos segredos da vida, nas ironias do tempo, que nos verga e devora. E nós sempre sem perceber porque corremos. - Exactamente atrás de quê?

Quedei-me por aqui dois dias, pertinho de Sabóia, escapando ao êxodo de fim do ciclo de férias. Entre manhãs a contemplar esta lonjura, e tardes longas, ardentes de calor, despeço-me do mar e percorro a costa vicentina: Zambujeira, Alteirinhos, Milfontes… Tudo estereótipos. Redime-me apenas o Malhão. E Porto Côvo (sempre).
Mas as águas quentes... que é delas? Nada nos consola quando se regressa do fidalgo aconchego da Ria Formosa.

Acordo ao som de um ruído compassado que vem da porta do meu quarto: o arranhar das patas do meigo labrador branco, que implora por afagos e atenção.

– E quem não pede o mesmo? Apenas demoramos mais, nós, os humanos. O Óscar, esse, adoptou-nos no espaço brevíssimo de um dia (e teria partido connosco para destino incerto).

O espectáculo do céu despareceu agora, à luz do dia. Cedeu o palco ao horizonte, tomado pela planura e pelos maciços de freixos e amieiros.

Sempre que a vida for insuportável, voltarei aqui, ao som e ao verbo da planície.

Para rever a dimensão pequena da nossa circunstância.

E, como o Óscar, acreditar inabalavelmente nas pessoas.

Confiar e rosnar. Guardar e atacar.

 

Regresso às lides com esta voz por dentro.

Azul

João Campos, 07.05.11

 

Frequento desde criança a praia da Zambujeira do Mar. É verdade que não sou grande adepto de "fazer praia", mas a haver uma praia da qual gosto incondicionalmente, é a Zambujeira do Mar. Gosto das escarpas em permanente ameaça de desabamento. Gosto das rochas traiçoeiras que dão acesso a outras pequenas praias, encaixadas nas falésias. Gosto do mar, invariavelmente agressivo (nunca vi aquela praia sem ondulação). Por tudo isso, e por me recordar de aquela praia ser muito suja em tempos não muito distantes, fico muito contente por saber que este ano, a praia da Zambujeira do Mar vai exibir a bandeira azul.

 

(fotografia de cioska, no flickr)