A última viagem de comboio
É uma daquelas ideias soltas que nos assalta de vez em quando: a dada altura teremos feito algo pela última vez sem o sabermos, de tal forma que o mais provável é nem nos lembrarmos de tal ocasião por o seu momento não ter sido memorável. Lembramo-nos de inúmeras vezes em que brincámos na rua, em que saímos para o bar do costume, em que juntámos o grupo todo para um serão de conversa nas noites quentes de Verão - mas não nos lembramos do momento exacto em que o fizemos pela última vez.
Em Setembro assinalarei os vinte anos da minha vinda do Alentejo para Lisboa. Foram quase duas décadas a fazer viagens regulares de comboio entre a capital do país e a minha pequena aldeia natal no interior Sul. No primeiro par de anos que cá passei, o percurso era feito da estação da aldeia até ao Barreiro, sendo então a travessia do rio concluída de barco (e ainda apanhei os velhos barcos, apesar de ter beneficiado da transição para os catamarãs mais modernos). Era o tempo do extinto Inter-Regional que percorria toda a linha do Sul desde a margem do Tejo até à margem do Guadiana em Vila Real de Santo António. Esse comboio ainda tinha carruagens com compartimentos, que eu e os meus amigos por vezes conseguíamos ocupar nas idas para baixo (para cima não tínhamos hipóteses, claro). Às Sextas e aos Domingos o comboio enchia-se de rapazes e raparigas de dezoito, dezanove, vinte anos - estudantes da universidade e tropas no serviço militar. Hoje serão menos, uns e sobretudo outros.
No seguimento do Euro 2004, da travessia ferroviária do Tejo e da electrificação da Linha do Sul, vimos o "comboio da ponte" matar o Inter-Regional - com a ligação entre as estações centrais de Lisboa e o Pinhal Novo concretizada, a CP colocou automotoras eléctricas a fazer o percurso entre esta localidade do distrito de Setúbal e Faro, com automotoras mais antigas a assegurar as restantes ligações no Algarve. Não me lembro ao certo de quanto tempo durou esta solução, mas lembro-me bem de como acabou - com a CP a mudar os comboios para horários menos convenientes, até eliminar as ligações por uma "falta de procura" mais auto-inflingida do que qualquer outra coisa. E assim morreram pela segunda vez dezenas de pequenas estações e de diminutos apeadeiros - primeiro quando as instalações foram encerradas por falta de pessoas, e depois, em definitivo, quando os comboios deixaram de lá parar. Quem deles precisasse teria de se deslocar para longe - Alcácer do Sal, Grândola, Funcheira, Messines - para apanhar o Intercidades. No meu caso, o destino era a Funcheira, esse velho entroncamento votado à irrelevância pela desertificação inexorável do interior alentejano e pelo fim quase criminoso da ligação ferroviária a Beja, a nossa bela e longínqua capital de distrito. Há 30 anos podia ir e vir - como fui e vim, tantas e tantas vezes - de comboio da aldeia para Beja; uma das minhas memórias mais antigas é dos campos infinitos de girassóis que o comboio atravessava, um mar amarelo lindíssimo a contrastar com o azul profundo do céu alentejano. Não sei sei ainda se cultivam girassóis algures entre Ourique e Beja; mas se houver, ninguém os poderá apreciar da janela do comboio.
Quis a sorte, ou uma rara insistência dos presidentes das Juntas de Freguesia da minha região, que a estação da minha aldeia conhecesse uma ressureição parcial. Afinal, a Funcheira fica ainda no concelho de Ourique, e ficava mal a uma empresa pública como a CP, paga por todos nós, ter comboios a passar pelo maior concelho em território do país - Odemira - sem lá fazer uma única paragem. A estação não reabriu, claro - na minha memória ainda guardo a imagem da antiga bilheteira onde o Sr. Marques vendia os pequenos rectângulos de cartão coloridos que davam acesso ao comboio, bilhetes a sério, nada dos talões de compra que hoje em dia passam por bilhetes em todo o lado, dos comboios aos cinemas; essa porta está definitivamente fechada -, mas o comboio voltou a parar lá. E assim a viagem de quarenta quilómetros que o meu Pai fazia para me ir buscar à Funcheira às Sextas-feiras (e mais quarenta quilómetros para me ir levar, necessariamente) foi reduzida para um breve passeio de dois quilómetros da porta de casa à estação. Mais conveniente seria difícil.
Mas essa conveniência foi-se desvanecendo, sobretudo com a degradação do serviço da CP. Em cerca de quinze anos de Intercidades tenho a sensação de que as carruagens continuam a ser as mesmas, apenas mais e mais sujas (vi coisas inacreditáveis nestes anos, e fiz viagens em condições impensáveis para um país com pretensões de desenvolvimento). Os atrasos são constantes, e de há cinco meses para cá sempre que quis ou precisei de ir à terra vi-me condicionado por greves. Percebo os motivos, e apoio - o direito à greve é fundamental. Mas nesta fase da minha vida, e sobretudo da vida dos meus pais, não posso mais ficar dependente dos humores de uma empresa pública tão essencial como mal gerida.
Os bilhetes que fotografei não terão sido da última viagem que eu e a Ana fizemos de comboio até à nossa terra - não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, por um ou outro motivo, recorreremos de novo ao Intercidades. Mas marcam a última viagem regular de comboio entre a Lisboa onde (ainda) vivemos e as aldeias onde crescemos, e das quais saímos há mais de vinte anos. Voltámos no Domingo, conversámos sobre o fim-de-semana, sobre a semana que se avizinhava, lemos em silêncio durante um bocado - a minha companhia de leitura foi o canadiano Peter Watts e o estimulante Echopraxia. Terei saudades daquelas duas horas e quinze minutos (fora atrasos) de pouca-terra-pouca-terra a ler, a escrever, a ver o meu belíssimo Alentejo a passar para lá das janelas. Também por isso faço questão de me lembrar desta última viagem.