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Delito de Opinião

Ler (13)

No centenário de Agustina (1922-2022)

Pedro Correia, 15.10.22

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Faz hoje cem anos, nascia Agustina Bessa-Luís. Uma das nossas mais importantes prosadoras do século XX - com Aquilino Ribeiro, José Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago e António Lobo Antunes.

Há exactamente dez anos, vivia ela ainda, escrevi aqui umas linhas indignadas com a forma como o seu espólio literário estava a ser tratado. Reclamei contra a editora que à época a representava - sua chancela durante décadas, que mudara de proprietário pouco antes - e considerei indigno da grande autora esse tratamento que a afastava de antigos e novos leitores: «Não há títulos seus em livros de bolso, a preços acessíveis. E, muito pior, a assumida divulgação das suas obras completas não passou afinal de um projecto abortado.»

Agustina morreu em Junho de 2019, aos 96 anos, sabendo que a sua obra voltara a ser acarinhada. Com nova editora - a Relógio d'Água, de Francisco Vale - e sua filha, Mónica Baldaque, cuidando com esmero do legado da mãe. Nos anos mais recentes, vários títulos há muito fora do mercado regressaram às livrarias, em versões valorizadas por impecável grafismo e capas apelativas. E, mais importante ainda, com notáveis prefácios escritos de propósito para a ocasião. Aliás até já originaram uma obra adicional: O Livro dos Prefácios à Obra de Agustina Bessa-Luís (2022). Se pudesse recomendar um, que serve de admirável introdução à leitura do conjunto dos seus romances, sugeria o que António Barreto (duriense, como ela) escreveu para As Pessoas Felizes

As obras vêm ressurgindo a um ritmo regular - não apenas as mais consagradas, desde logo esse marco do romance português que é A Sibila - mas outras que já só estavam disponíveis em bibliotecas, públicas e privadas. Aguardo ainda, por exemplo, a reedição de A Crónica do Cruzado OSB (1976). 

 

Mas o que hoje quero sublinhar é o pulsar da vida que se extrai das páginas redigidas por Agustina. Visão, audição, olfacto, paladar e tacto estão sempre presentes - seja em paisagens campestres, seja em quadros de matriz urbana; seja em cenas contemporâneas, seja em digressões pelo passado, mais próximo ou mais longínquo. 

As suas personagens desfrutam sem remorsos dos prazeres da mesa - facto raro na literatura portuguesa.

Basta ler este delicioso excerto de Fanny Owen

«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»

Ou este, de Os Incuráveis

«Na lareira havia sempre essas caldas que se remexem com uma gadanha, se fazem correr do alto com uma colher de pau e esperam a massa das marmeladas ou de chila; ou é a canja que recoze cheia de olha amarela, ou o caldo de cinza onde se banham as passas, ou o cozimento de vinho do Porto onde se temperam fiambres.»

Ou este ainda, de As Pessoas Felizes

«A casa dos Torri era, senão pantagruélica, pelo menos duma abundância flamenga. Os almoços de domingo impressionavam pela fartura, e Góia Torri constituía um espectáculo a comer grandes quantidades de trutas, perdizes, lebres e vitela assada. Havia quem se introduzisse na sala de jantar com o pretexto de dar um recado, só para a ver servir-se de feijão-branco com orelheira.»

Sem as raquíticas côdeas de pão omnipresentes em dezenas de obras dos seus confrades das letras. 

 

Tenho a certeza que Agustina gostaria de ser evocada assim, neste dia do seu centésimo aniversário: como alguém que fez da literatura uma celebração da vida.

O que é outra forma de enaltecer a arte.

Falar muito e comer quase nada

Pedro Correia, 04.07.19

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Já aqui expressei a minha perplexidade pelo facto de haver tão escassas descrições de lautos manjares na literatura portuguesa. Perplexidade tanto maior quanto é sabido que gostamos de comer e encontramos uma apreciável variedade de opções gastronómicas no País, viajemos para onde viajarmos dentro das nossas fronteiras. Às vezes parece-me que os nossos escritores consideram o tema um assunto menor. Ou, para ser mais directo, que não apreciam mesmo os prazeres da mesa. Podemos percorrer a obra inteira de vários autores sem depararmos com um único repasto memorável. 

Há excepções, claro, e bem notáveis. Mas, certamente não por acaso, são aquelas que todos conhecemos - com destaque para a inesquecível ceia proporcionada a Jacinto na sua primeira noite em Tormes. 

 

Foi, portanto, com imenso agrado que deparei há dias com uma apetecível refeição descrita por Agustina Bessa-Luís na terceira e última parte do seu romance Fanny Owen. Abriu-me o apetite, confesso. De tal modo que não resisto a partilhar convosco esse excerto:

«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»

 

Caramba, uma descrição destas até dá gosto. Sobretudo por ser tão rara nas nossas pomposas letras, jamais propícias a trocar a sala pela cozinha. Falta-nos um Rex Stout, falta-nos um Georges Simenon, falta-nos um Vázquez Montalbán - escritores que não tinham complexos em demonstrar a sua paixão pela arte culinária. Ao contrário do que sucede na literatura portuguesa, em que muito se fala e quase nada se come.

Mais um motivo para aqui lhe deixar a minha vénia grata enquanto seu leitor muito atento, Dona Agustina. 

A revolução anterior

Pedro Correia, 22.06.19

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Há livros assim, capazes de nos seduzir só pela frase de abertura. Já aconteceu com qualquer de nós, leitores. E não faltam exemplos clássicos – desde o Quixote aos Cem Anos de Solidão, passando pela Metamorfose, de Kafka. Aconteceu-me com este romance de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1975, quando o nosso país, em trânsito da ditadura para a democracia, se abeirou da guerra civil.

«Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos e sabemos que o dia seguinte é fundamental para que os nossos desejos se cumpram.» Assim começa este livro quase ignorado à época em que surgiu. Compreende-se porquê: Portugal estava imerso em acontecimentos convulsos, a História escrevia-se dia a dia, às vezes hora a hora, qualquer rastilho poderia alterá-la num rumo ou noutro. Restava pouca disponibilidade mental – e até física – para reflectir sobre as subtis transformações sociais ocorridas nas décadas que haviam ficado para trás.

As Pessoas Felizes é um romance em que Agustina rende homenagem ao seu Porto adoptivo, trespassando-o com olhar arguto, capaz de distinguir uma vasta gama de luzes e sombras nesse burgo que «sacrifica o maravilhoso ao necessário». Enquanto presta tributo a Tolstoi, um dos seus escritores de eleição. O próprio título do livro constitui, aliás, paráfrase das também célebres linhas iniciais de Anna Karénina: «As famílias felizes parecem-se todas umas com as outras; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.»

 

O enredo é por vezes sugerido só em esboço. Os diálogos são esparsos, servindo quase sempre para sublinhar o que o rasto descritivo já determinara pela pena da narradora omnisciente, que tudo ouviu, tudo observou e foi capaz até de decifrar os mais impenetráveis pensamentos de personagens que vão surgindo a um ritmo imparável e tão depressa chegam como partem. Esta forma de narrar com um recurso estilístico deliberadamente anacrónico presta afinal homenagem ao romance clássico do século XIX, tornada aqui ainda mais evidente na intertextualidade com a obra-prima de Tolstoi, cerca de vinte vezes citada.

A modernidade, como é usual na ficção de Agustina, irrompe na profusão de aforismos e parábolas que se integram no fluxo narrativo e a todo o momento lhe travam o passo, orientando-o até com frequência noutra direcção. Alguns leitores sentir-se-ão desencorajados a prosseguir perante esta torrente de pensamentos que quase funcionam como um livro dentro deste livro desprovido de capítulos. Outros poderão perder-se na propositada diluição dos fios cronológicos que parece resultar de lembranças desenroladas de supetão. Agustina, com a sua peculiar arte de escrita, não atrai pela facilidade: seduz por ser complexa. Mesmo que incomode quem não se reveja na sua tendência por vezes irritante de etiquetar no colectivo: «As mulheres instalam-se na infelicidade; os homens vivem-na, mesmo quando menos a aceitam.»

 

Mundo de aparências

 

As Pessoas Felizes surge agora em terceira edição (a segunda foi de 2006, ainda com a chancela Guimarães), valorizada por um esclarecido prefácio de António Barreto, que em poucas palavras capta o essencial da obra, escrita em grande parte antes do 25 de Abril e concluída a 7 de Outubro de 1974 (anotação final da própria Agustina), atribuindo-lhe um carácter premonitório. «A revolução é o coroar de um processo de mudança, mais do que o seu começo», escreve Barreto, lembrando os seus conturbados tempos de deputado constituinte, no auge do processo revolucionário, quando este livro o iluminou sobre a erosão da atmosfera social que entrara em declínio muito antes da queda do Estado Novo. Aqui simbolizada na plácida burguesia portuense, envolta no seu mundo de aparências, amarrada a convencionalismos atávicos, aparentemente desprovida de conflitos interiores.

A protagonista, Manuela Torri, simboliza essa era de mutação social que precedeu a ruptura política – na sua atribulada relação com o clã familiar, no seu desprezo pelas «burguesas de clausura», na sua indizível nostalgia pela quinta do Douro que lhe ficara impressa nas memórias mais remotas. Ainda vigorava o salazarismo e já «a mudança andava no ar, enquanto tudo parecia minuciosamente preservado».

Num Porto-metáfora-do-País de algum modo tocado pela predestinação: nestas páginas vigora um determinismo que impregna os lugares e contagia as pessoas. Não por acaso, “sempre” e “nunca” são advérbios que parecem fascinar a escritora: Agustina utiliza-os imoderadamente. E “destino” é a palavra que encerra o romance. Completa-se o ciclo: a felicidade estava condenada a esfumar-se.

 

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As Pessoas Felizes, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d' Água, 2019). 184 páginas.
Classificação: ***
 
 
Publicado originalmente no jornal Dia 15

Há muitas coisas belas na terra

Pedro Correia, 14.05.19

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Às vezes é quanto basta. Abrimos um livro, lemos a frase inicial e logo ela nos agarra, despertando-nos a atenção para ler as frases seguintes, sem desgrudar da obra até ao fim.

Alegro-me cada vez que me acontece. Sucedeu há dias, ao abrir um exemplar do romance As Pessoas Felizes, de Agustina Bessa-Luís, em boa hora regressado aos escaparates no âmbito do lançamento da obra completa da grande escritora que tem vindo a ser conduzido por Francisco Vale na editora Relógio d' Água.

«Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos e sabemos que o dia seguinte é fundamental para que os nossos desejos se cumpram.» Começa assim, da melhor maneira, este romance de Agustina, muito menos (re)conhecido do que merece. 

Superado o primeiro teste, logo avanço na leitura. Um grande escritor avalia-se, desde logo, pela sua capacidade de nos seduzir pela palavra, sua ferramenta de eleição. É o caso de Agustina. Tal como sucede com Jorge de Sena, na magnífica frase de arranque do seu Sinais de Fogo: «Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.º ano dos liceus.»

Ou Cardoso Pires, n' O Anjo Ancorado: «Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento.» Ou Vergílio Ferreira, nesse fabuloso romance intitulado Alegria Breve: «Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher?»

Saber escrever, saber captar a atenção de quem nos lê - eis o desafio supremo, ao alcance de poucos. Aprendamos com os mestres da palavra a trabalhá-la. Como se fosse terra fértil lavrada por um camponês, como se fosse pedra esculpida por um escultor, como se fosse filigrana nas mãos de um ourives.

Escrever é muito mais do que alinhavar palavras. Como durante anos ensinei aos meus estagiários em jornalismo, para escrever bem nada melhor do que ler muito. Enquanto leitores, aprendamos com quem sabe. Com Camus, que nos introduz no reino mágico da ficção - «a mentira através da qual se diz a verdade». Com Simenon, que em apenas três palavras nos transmite uma das melhores lições: «Escrever é cortar.»

Para escrever bem, há que apelar à sensibilidade e ao intelecto em simultâneo, o que não está ao alcance de qualquer um. Como Agustina demonstra na obra que nos foi legando. «Há qualquer coisa de premonitório neste romance. Pelos costumes das pessoas, pelos sentimentos, pelas relações entre parentes e familiares, percebe-se que já muita coisa mudou ou está em mudança antes mesmo de a revolução acontecer», observa António Barreto no prefácio à novíssima reedição d' As Pessoas Felizes.

Há muitas coisas belas na terra. E algumas experiências sem substituição possível, como o prazer único que só a leitura nos proporciona. Ao rasgar-nos horizontes e ao elevar-nos vários palmos acima do chão.

Agustina

Pedro Correia, 15.10.18

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Agustina Bessa-Luís, romancista maior da língua portuguesa, nasceu faz hoje 96 anos. Será motivo para celebração na intimidade familiar a que se recolheu e é seguramente motivo para todos nós, seus leitores, lhe desejarmos votos de felicidade pessoal, certos como estamos de se tratar de alguém que ainda em vida já cruzou o portal da perenidade – algo que muitos ambicionam mas raros alcançam.

Alberto Luís

Patrícia Reis, 14.11.17

Morreu Alberto Luís, advogado, marido de Agustina Bessa-Luís. Casados desde 1945, eram um casal especial. A Agustina gosta de contar que colocou um anúncio no jornal para encontrar um marido, uma "pessoa culta". Tinha decidido que aquele que, ao abandonar a sala onde a entrevista se faria, olhasse para trás, seria o escolhido. Alberto Luís foi à entrevista com uns amigos, também candidatos (diz-se que teria sido uma aposta) e olhou para trás. Casaram. Durante anos e anos, Alberto Luís foi quem passou à máquina os textos de Agustina, ela que tem uma letra miúda e escreve a azul.

Na Egoísta fizemos um número especial dedicado

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 à Agustina do qual me orgulho muito. Alberto Luís foi incansável na ajuda que me prestou então. Publicámos os pequenos desenhos, retratos, que foi fazendo da escritora. Chamava-lhe sempre Maria Agustina. Eu gostei de os ver juntos das poucas vezes que tive esse privilégio. Que descanse em paz.

Celebrar Agustina

Inês Pedrosa, 15.10.17

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Agustina Bessa-Luís completa hoje 95 anos. Deixo aqui o prefácio que fiz para o livro As Chamas e As Almas, que reúne Crónica do Cruzado Osb. e As Fúrias, dois brilhantíssimos romances que a escritora escreveu no imediato pós-25 de Abril, sobre os tempos da revolução. 

 

A orquestra do imprevisível 

 

«Que gente tinha saído da revolução dos cravos? Os que abriam o coração aos acontecimentos e os que abriam o guarda-chuva.» (Crónica do Cruzado Osb., p. 186)

 

         Quem, porque não fosse ainda nascido ou porque andasse por outras partes, não pôde experimentar o tempo e a singularidade da revolução portuguesa, viverá nestes dois romances todos os acontecimentos e emoções desses anos turbulentos. Em pleno caudal revolucionário, Agustina concebeu um par de ficções nas quais realidade e reflexão fluem em paralelo, conseguindo captar, por dentro, o magma dos sentimentos e das revoltas das diferentes camadas sociais e pensar, por fora – como se pudesse observar a vertiginosa sucessão dos factos a partir de uma curva temporal posterior –, as consequências futuras do que estava a acontecer. Nesta extraordinária capacidade de descrever uma época e de antecipar o seu desfecho, com o rigor daquela isenção a que em literatura se chama compaixão, ou partilha da paixão dos outros, reside a mais imediata qualidade desta obra de inúmeras qualidades. O tempo pousa sobre as palavras escritas como um revelador – mostra o brilho dumas e a irrelevância doutras. Os trinta anos que decorreram sobre estes livros, escritos em tempos de lume, mostram a perfurante capacidade de análise da Escritora – e a força da sua profecia. Um escritor genial é sempre um profeta, um historiador do invisível, alguém que vê a coreografia temporal do espírito humano e consegue imaginar-lhe as configurações futuras, para lá dos concertos actuais do bem e do mal. A precisão dessa profecia dá-nos a medida de eternidade de uma obra; Agustina é já uma autora de todos os futuros – como o foi o Padre António Vieira, o seu único antepassado verdadeiro na História da Literatura Portuguesa, quer pela ousadia de exposição e asserção, quer pela transfiguração da matéria anímica através da acção política ou do sentimento dela.     

         Nesses anos em que, de repente, como se lê no início de Crónica do Cruzado Osb., «a política ocupava todo o horizonte humano», Agustina conseguiu continuar a radiografar a alma humana – da qual as vestes políticas são sempre e só um epifenómeno, a espuma (às vezes arrasadora) de uma história oculta de sangue e afectos – e perscrutar o desenvolvimento da sociedade, para lá desse cerrado nevoeiro da política. No subconsciente da política está a luta pelo poder, e no inconsciente dessa luta o drama particular da afirmação de si, que envolve o segredo dos sentimentos e da inteligência dos homens e das mulheres. Nunca foi outro o tema – caudaloso, inesgotável – de Agustina, isso que a Escritora inúmeras vezes sintetizou, com uma simpatia rápida, para corresponder à rapidez borbulhante dos jornais, como «as relações humanas». Costuma dizer-se que escreve sobre famílias, e fica tudo sossegado – como se a família fosse um lugar pacífico. O tema incessante de Agustina é o poder, que desvenda como autêntico microscópio da vida humana: na lamela desse microscópio, paixão e ódio, energia e morte, crime e culpa formam uma rede romanesca. Acontece que em Portugal, país pequeno e antigo, o poder aparece sempre profundamente imbricado nesses complicados enredos do sangue a que damos o nome de «família». Agustina afirmou uma vez, à entrada de uma das suas subversivas crónicas: «Eu não gosto de me meter em assuntos de família, mas não há outros». Ironizava sobre a arrumação fácil, e tão frequente, dos seus romances como uma colecção de histórias de grandes famílias do Douro – porque as famílias, e o brilho enigmático do Douro, as brumas do Norte são, na sua obra, apenas o ponto de partida, o lugar familiar de onde se parte para o desconhecido inquietante, o princípio do desassossego.

         Só quem nunca leu Agustina pode considerá-la uma «conservadora». Nenhum grande escritor pode ser um «conservador» ou um «revolucionário», porque o que faz um grande escritor é, antes de mais, esse dom de liberdade que não se compadece com classificações. Diz Olga Rodom, na página 266 de As Fúrias: «A liberdade é uma serpente que rasteja como a inveja primeiro, e depois açoita como a vingança». Sim, a liberdade açoita inexoravelmente as limitações mentais de cada época, expondo-as em carne viva. Num dos seus aforismos fulgurantes como haikus, escreve Agustina, na página 343 de As Fúrias: «Os preconceitos são o espírito do tempo mal compreendido». O rótulo de «conservadora» tem limitações às quais a escrita e o pensamento torrencial de Agustina não se acomodam – precisamente, não é uma escrita acomodada às modas da estação, nem um pensamento que se deixe pastorear, e é isso o que, muitas vezes, ainda hoje, não lhe perdoam. Consagram-na para a encarcerarem no sossego dos clássicos, e a escrita de Agustina – desconcertante, sábia, imprevisível – não tem arrumação nem catalogação possível. Onde quer que se abra a página, uma frase nos incendeia e nos leva a pensar o mundo de novo. Num texto belíssimo, Maria Velho da Costa descreve Agustina como «menina total e raciocinante» («Maria Agustina, a trânsfuga», revista Egoísta, Fevereiro 2007). É preciso ter um pensamento vigoroso, indomável, para conseguir pôr ordem e justiça no tempo de uma revolução. Não há nada de anti nem pró-revolucionário nestes romances – há a busca do entendimento das causas e das consequências, uma análise que não poupa os «novos feudais» da revolução («novos feudais» que ela define, em versão actualizada ao início do milénio, no seu mais recente romance, o prodigioso A Ronda da Noite) como nos velhos feudais da ditadura. O tom sentencioso da sua escrita conduz também os espíritos mais ligeiros a catalogações apressadas – ela revela verdades profundas, mas essas verdades não são portáteis e adaptáveis ao politicamente ou espiritualmente correcto em curso, transporatndo antes uma visão aguda, de uma lucidez extrema, sobre a natureza humana, com todos os seus paradoxos e contradições. Por isso Agustina pode parecer cruel como a verdade, ou audaciosamente conservadora como uma criança; tem a consciência cortante de que o ser humano muda menos do que julga, e teve sempre – sobretudo nos tempos de maior agitação – a coragem de não o esquecer, e de o declarar. Agustina não fornece respostas, amplia as perguntas – escava e escavaca as evidências. Silvina Rodrigues Lopes descreveu cirurgicamente os efeitos deste labor: «a escrita [de Agustina] produz um pensamento indeterminado, simultaneamente inteligência contagiante, revelação que interfere na formação do leitor e abertura de múltiplas hipóteses, também elas sem outra legitimação que não seja a que adquirem na sua própria prática» (Agustina Bessa Luís – As Hipóteses do Romance, Asa, 1992, p. 302).

         Estes dois romances compõem, de facto, uma obra única, o romance da revolução desde o seu arranque militar, masculino, táctico e frontal, aos seus desenvolvimentos políticos, femininos, estratégicos e sub-reptícios. Logo no início de Crónica do Cruzado Osb., escreve: «A revolução do 25 de Abril não mudara o fundo do complexo humano. Esbarrara mesmo com esse fulcro de inútil consciência das coisas, uma espécie de neurose da queixa, de expiação, talvez. O sangue de muitos povos alimentava o carácter racial da contradição; celtas garridos e sombrios iberos existiam em oposição no contexto da natureza provinciana e que pesava em todos os actos da vida comum e privada» (p. 30). Mais adiante, dirá que a revolução tocava «alguma coisa de mais profundo, talvez a extinção do medo milenário, do desprezo por si próprio», e simultaneamente verifica como «no campo das profissões grassava já a baixa manobra para obter lugares, assegurá-los no futuro mercê duma fluidez de compromissos» (p. 48). A justa serenidade da Escritora mantém-se imune à atmosfera convulsiva da época – o ponto final de Crónica do Cruzado Osb. data de 7 de Maio de 1976. O decidido esculpir de uma justiça visceral que constitui a força motriz do entendimento agustiniano conduz-nos através deste romance que vai organizando a desorganização revolucionária, do inicial período de festa e ruptura com o medo, à fase do «terror branco» em que se prenderam ao desbarato «inimigos verdadeiros ou fictícios», e ao progressivo nascimento de um «socialismo de ballet, pleno de fugas, suspensões, saltos e trémulos». Cáustica, a Escritora escalpeliza as diversas camadas da burguesia: «Toda essa gente cometeu a vulgaridade de se incomodar com a revolução, mais pelo facto de ela os ignorar, do que porque realmente ela os podia perder. (...) O primeiro movimento de muitos burgueses foi o de se adaptarem a uma atitude de vanguarda» (p. 44). Quanto ao revolucionário Movimento das Forças Armadas (vulgo, MFA), define-o numa frase: «Gente interessante, radiosa, que julgava o povo um público e a vida política uma actividade temperamental». E acrescenta, de imediato: «Mas o povo, e o povo português em especial, não concederia a ninguém a sua confiança. Se o fizesse, seria o mesmo que abdicar da sua parte de liberdade autenticamente permissível. A desconfiança é a única vantagem do povo sobre as minorias que o conduzem» (p. 48). Sobre as campanhas de alfabetização, escreve: «Achavam que saber coisas, estar cevados de conhecimentos, gordo de títulos, pletórico de razões, era a maneira de libertar as pessoas, de as tornar úteis e felizes. Não reparavam que a cultura assim ministrada não passava de uma nova superstição. Que o sexo, a física nuclear e o estudo dos clássicos ficavam tão obscuros como dantes, se não fossem respeitados como fenómenos independentes de qualquer versão vitoriosa; pois a obscuridade de todas as coisas só se dissipa quando o elementar delas se atinge – e o elementar delas é a relação entre elas e o homem» (p. 86). Sobre a desilusão inevitável, escreve: «As revoluções são tão incertas, que basta fazê-las triunfar para vermos quanto nos decepcionam. Isto, que parece efeito dum pensamento difícil, o povo sabe-o; e o povo português sabe-o primeiro do que qualquer outro. É uma raça privilegiada para entender o que não compreende» (p. 147).

Seria útil que se autonomizasse a constante indagação de Agustina em torno da identidade portuguesa num volume específico, de forma a que a sua arquitectura filosófica se pudesse observar como o edifício clarividente que efectivamente é. Eduardo Prado Coelho afirmou um dia, com uma inteligência exacta (em A Noite do Mundo, INCM, 1988), que o génio de Agustina não é o de um «maître à penser» mas o de uma «pensée sem maître» – e esse pensamento sem rédea nem dono desafia-nos tanto e tão desabrigadamente que chega a encandear-nos. Servido por uma escrita minuciosa e opulenta – «uma tapeçaria, mas dum género especial, aberta», como já em 1964 Eduardo Lourenço a definia (O Tempo e o Modo, nº 22, 1964)  – , esse pensamento atinge-nos intermitentemente como uma espada de sol demasiado forte. As personagens movem-se através dos seus romances como nuvens piedosas que nos protegem do sol abrupto da sabedoria de Agustina, mediadoras de infinitos, deusas de algibeira, precárias e pecadoras, tentando aconchegar-nos à intempérie desse pensamento extra-lúcido. Há um inacabamento voluntariamente esperançoso nos romances de Agustina; fechada a última frase, a vida daquelas pessoas continua, o que significa que continuam ao nosso lado, animando-nos a prosseguir sem o temor dos desenlaces. A profusão de micro-enredos e o desfibramento de protagonismos prende-nos ao longo de todas as páginas, e suaviza-nos o esforço de apreensão do pensamento profundo e profundamente livre da Escritora. Nos romances de Agustina, precisamente porque movidos por um democrático sentido de compaixão ou justiça, dilui-se a noção de personagem secundária; todas as figuras têm o seu momento de intervenção essencial – é isso o que de imediato torna os seus livros sedutores e acessíveis a leitores intuitivos e não-iniciados. Muitas vezes, aliás, esses leitores não-formatados entendem-na melhor do que os académicos puros, precisamente porque a escrita de Agustina parte de um contrato de autenticidade, de uma aceitação serena da contradição humana e de uma prática de indomável liberdade. Como escreveu Fernando Pinto do Amaral, «o que interessa à sua voz é ir abrindo portas, deixando a cada um a decisão de as transpor, quando e como quiser» (Uma «Incerteza Apaixonada», Diário de Notícias, 3 de Novembro de 2006). 

         Agustina Bessa-Luís herdou a curiosidade insaciável, a possante capacidade de trabalho e a força genuína de Camilo Castelo Branco – mas levou muito mais longe esses dotes, tornando-se uma espécie de super-Camilo. Teixeira de Pascoaes explicou que, nos livros de Camilo, «chegamos sempre à luta entre as forças espontâneas do ser e a lei que as subordina à sociedade. Tal luta é a mesma sociedade a fixar-se em formas inertes de encontro à acção renovadora do espírito» (O Penitente, Assírio& Alvim, 1985, p.85). Esta afirmação adequa-se igualmente à ficção agustiniana – que suplanta a de Camilo no que se refere à experiência abissal das paixões humana e ao entendimento desassombrado da dimensão caótica dos seus desejos. É verdade que, pelo menos à tona dos factos, a autora de Prazer e Glória terá experimentado menos vicissitudes morais e materiais do que o autor de Memórias do Cárcere. Mas o que sabemos da experiência do sofrimento alheio? Virginia Woolf meditou muito sobre a dose certa de raiva necessária a um escritor – não demasiada, para não obscurecer a justiça genérica da escrita, nem inexistente, para não amolecer a inspiração. Escrevemos sempre contra um silêncio ou uma submissão; em última análise, o génio globalizador de Agustina é, pura e simplesmente, da ordem do dom, ou do milagre – inexplicável. Podemos apenas congratular-nos com essa sua capacidade, absolutamente única, de nos dar a ver o movimento do mundo inteiro através das peripécias de uma série de famílias do Douro. Mais do que uma extraordinária criadora de aforismos, Agustina é uma artista da parábola. Os seus romances resistem a sínteses castradoras: para sermos fiéis ao enredo de Crónica do Cruzado Osb. teríamos de contar uma bateria de pequenas histórias, para lá do fio existencial desse Josué Silva que, em plena revolução, «magoado com uma desgraça que afinal se baseava no mau uso da sua juventude – ele fora saneado do jornal onde ocupava um cargo na redacção» decide escrever «uma sátira muito viva e espirituosa, e também mal-intencionada» a que deu o nome de Crónica do Cruzado Osb., declinação contemporânea da crónica de Osborne, militar inglês que assistiu ao cerco de Lisboa em 1147.

A obra de Agustina tem essa característica, cada vez mais rara e preciosa, de abrir os seus salões, descontraidamente, ao convívio com obras e temas de outras eras, actualizando-os. Num tempo em que Cícero é citado sem ter sido lido e os plágios entre vizinhos se disfarçam de homenagens, Agustina distingue-se também por essa ciência do diálogo, tão erudita quanto despretensiosa. Crónica do Cruzado Osb. é um romance invulgar na obra de Agustina, porque é um romance macho; não só circula em torno de personagens masculinas, como tem uma mecânica narrativa organizada, cartesiana, quase espartana. Desenvolve-se claramente como um romance de ideias – a tal ponto que seria possível descolá-lo da narrativa e reconstrui-lo, à margem dela, como um ensaio sobre a Revolução. Ensaio que vem ao encontro do Portugal de hoje: «Basta que se promulgue a austeridade na economia, que se exponha o sudário das adversidades a suportar, para que a revolução sofra um retrocesso. Os governantes hábeis costumam usar deste meio para, directa ou indirectamente, culpar s massas e assim obterem delas uma certa docilidade. A litania da penitência sempre procurou obstáculo à contestação, É assim no campo religioso e é assim no campo político (p. 96)». Ensaio que não deixa pedra sobre pedra: «Não é possível mudar nada enquanto a luta constar apenas de um rolamento de lugares de vítimas e carrascos. Abrir todas as prisões tem que significar destruir as prisões, e não conservá-las à ordem de outros poderes» (p. 135). Romance da candura armada e da iniciação à política, Crónica do Cruzado Osb. elabora o perfil do amor idealizado, abstracto, que marca a História do Masculino, de Platão aos nossos dias. É a crónica do orgulho, sobre o qual a Escritora reflecte longamente, virtude máscula que interrompe a vida, enredando-a em estratégias equívocas, quase sempre fatais.

         As Fúrias surgem, um ano mais tarde, como contraponto íntimo, veemente, à crónica de estrada da Revolução representada pelo autor de Osb. e pelos seus pares. Neste romance de «pessoas em contra-luz», «cheias de trevas», como explica a Autora (p. 362), observamos os efeitos da revolução social no interior das casas e dos corações, e, em particular, as consequências da fúria desencadeada nos corações das mais improváveis mulheres – as grandes burguesas como as pequenas proletárias, que de repente desatam a falar e a agir por conta própria, contra as novas como contra as velhas convenções e expectativas. Habituámo-nos a ver a emancipação social e política das mulheres como um mero processo legal e de conquista de direitos – mas Agustina desmonta implacavelmente o paternalismo superficial das ideias feitas sobre as emancipações, mostrando-nos mulheres que, sob o vendaval da liberdade, se entregam aos seus desejos mais ocultos, rejeitando qualquer definição emancipatória exterior, da ordem do masculino. Perpassa por todas as páginas deste livro a aragem de um erotismo intenso, convulso, enigmático, um clima de «desintegração erótica» nascido da força carnal, subitamente descoberta, das mulheres, que se erguem contra «o mau romantismo dos tempos». Ao orgulho masculino da primeira fase da revolução, descrita em Crónica do Cruzado Osb., segue-se agora o tempo feminino da vingança: «as mulheres estavam entregues a esse espírito de vingança que não tinha como barreira o esteticismo dos homens capaz de produzir uma acção política e nacional» (p. 299).     

         Mitologicamente, as Fúrias nascem das gotas de sangue que caem sobre a Terra durante a castração de Urano. Ou são filhas de Hades e Perséfone, localizadas entre as sombras. São as forças de retribuição: Aleto, a ira incessante, Tisifone, a retaliação, e Megera, o ciúme. No romance de Agustina, este feminino incandescente é representado, antes de mais, pela velha Olga, que decide chamar a revolução para dentro de casa (uma casa com trinta quartos e dois salões de festas), e convocar a ocupação, em vez de se defender dela. Nesta altiva Olga que decide comandar e estabelecer as regras da invasão da sua casa pelo povo, encontramos muito da própria Agustina: «Olga não tinha a menor ideia de que agia democraticamente, nem isso lhe interessava; a política não interferira nos seus costumes, porque eles derivavam directamente da sua condição, duvidosa de resto, de espectadora (...) Olga não tinha qualquer academismo de pensamento nem disposição revolucionária. Em diversas situações da vida fora incontestavelmente quase uma marginal. (p. 237). «Havia nela uma propensão para derrubar o passado, para o esvaziar do seu conteúdo mais sagrado; e isto a par de uma aparente fidelidade aos costumes que ela respeitava com uma certa pretensão racista, uma certa abundância de programas. Mas no fundo odiava a sua escola de merecimento, o seu padrão de elegância, cada um dos objectos que lhe ensinavam a amar» (p. 247). Também em Ofélia, filha de Olga, se detecta a maneira de olhar da própria Escritora: «não impressionava senão por uma espécie de atenção, como a das aves de presa; uma maneira certeira de ver tudo quanto se move e se desloca numa paisagem, seja um ramo que de súbito se desprende, seja uma pista animal e fugaz» (p. 294). A outra filha de Olga, Mimosa, ocupará o lugar de terceira Fúria; mecenas de uma espécie de asilo para intelectuais pobres, com «um gosto pela instabilidade» e tendo «por arquétipo uma virgem de Fátima vestida pelo Dior (...) saboreava os equívocos como pastéis e deleitava-se a provar as contradições desses belos recuperadores da pátria» (p. 269). O olhar e o passo destas três mulheres marca a narrativa dos anos em que a revolução se diluiu na habitualidade, desfigurando-se, humanizando-se, criando um novo mundo, em muitos aspectos idêntico ao anterior, e em muitos outros – imperceptíveis e determinantes – irreversivelmente distinto.    

         Juntos, estes dois romances compõem um extradordinário vitral do período revolucionário português. Num tempo em que as livrarias se entopem dessa falsidade redundante a que se chama «romance histórico»  – a História nunca é só uma, e todo o romance digno do nome é uma formulação da História –, a ressurreição destas duas obras que nos oferecem a memória poliédrica do tempo inaugural da democracia, com o pressentimento certeiro das luzes e sombras que hoje ela desenha, e com a profecia do que continuamente a excede e corrói, é absolutamente fundamental. As palavras que a Escritora usaria, poucos anos depois destes dois romances, para definir a escrita epistolar da protagonista em Fanny Owen (1979), assentam-lhe como uma luva: «Não só escrevia com extraordinária correcção, como imprimia às palavras um fogo devorante, não pelo que elas significavem etimologicamente, mas pela sua escolha e aliança especial. Era como um jogo perfeito, sonoro, insensato e invulnerável, essa escrita produzida como por um anjo cego, cujos valores não fossem equiparados aos humanos» (p. 94). Nestes livros aprendemos tudo o que há para aprender sobre a nossa História contemporânea – e, sobretudo, apreendemos o que incessantemente nos escapa, ouvimos a voz dos silêncios, mágoas e sonhos desfeitos que a História e as histórias apagam. Porque na escrita de Agustina convergem todas as iluminações e misérias humanas, o segredo das maiores e menores almas, o dizível e o indizível, o tempo e a eternidade.

 

Maio 2007

Celebrar Agustina

Inês Pedrosa, 15.10.16

Agustina Bessa-Luís faz hoje anos. Das saudades que tenho dela, das suas palavras, do seu carinho, daquela sua gargalhada que vale mil bibliotecas, não sei falar, nem vêm ao caso. O melhor presente que se pode oferecer a um escritor é ler os seus livros. Deixo aqui o texto que publiquei no Expresso, em 1999, sobre o romance A Quinta-Essência  (Guimarães,1999), uma das muitas obras-primas que Agustina nos ofereceu.  

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Em que consiste a Quinta-Essência? Agustina dá-nos uma primeira aproximação ao enigma a páginas 67/68: « As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. Daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto a Quinta-Essência, a região do fogo e do amor. Mas é muito raro que alguém possa atingir essa última metamorfose.» Todo o universo agustiniano circula em torno dessa incandescência sobrenatural; este romance, porque se situa em Macau, infinita roleta em que se cruzam Ocidente e Oriente, ilumina de forma particular a demanda dessa espécie de Graal interior.

No aparente lugar do protagonista ( porque em Agustina todos os protagonismos são ilusórias aparências) temos um homem que parte para Macau movido pelo abstracto sentido da vingança: despojado da sua casa, dos seus bens e da sua família pela revolucionária lei das Ocupações, decide, uma década depois, ferir o capitão que a assinara, através da filha ilegítima que o mesmo deixara em Macau. Puro pretexto para fugir à sua própria sombra, que o mesmo é dizer, para se afundar nos abismos dela. Chama-se Pessanha, este homem que gosta de impressionar as mulheres ao ponto de para isso se tornar catedrático em ciências humanas, com a candura cerebral que muitas vezes assiste aos grandes imorais. Chegado a Macau, afasta-se desse seu nome, que substitui pelo outro, de pior historial, de Santos Pastor, de modo a que o fantasma do Pessanha poeta se desimagine dele. Mas Camilo Pessanha sobrevoa o seu destino, entranha-se-lhe na memória da pele à medida que o seu caminho pelas portas da China se torna irreversível.

Na origem dessa irreversibilidade está o amor que se revela a José Carlos Pessanha através de Iluminada, a filha do seu inimigo. Um amor praticamente impossível, a que siara Debra, a pequenina e férrea avó chinesa de Iluminada, concede um breve tempo de floração, para que a vida lhe sobreviva nos ritos das estações. «Sempre é pouco para o amor», diz ela, e pouco mais diz. Nesta frase resume a quinta-essência do encontro de José Carlos e Iluminada.      

«Ela sabia, por tradição muito antiga, que o amor não estava ao alcance dos mortais. Conheciam os ritos do sexo, as paixões que tornam os homens assassinos ou profetas, ou que os levam a viver nos mais áridos desertos. Mas a quinta-essência era-lhes vedada. Se assim não fosse, viviam eternamente, o que é grave infracção às leis que pesam sobre o mar Morto e sobre o qual Satanás tem grande poder.»( p.211).

Não é de sexo que se trata – embora o sexo seja tratado com um desassombro e um rigor de acupunctura, tocando todos os equívocos da sua afirmação actual, incluindo o caso da «descarada e encantadora menina Lewinsky» neste livro especificamente oriental de Agustina – mas da melancolia do conhecimento que o acende.«A quinta-essência, de que os chineses conhecem a cadeia perfeitamente combinada, atribui ao sexo um meio de atingir a divina longevidade. Mas é tão subtil o seu uso e fundamental a sua harmonia, que poucos conseguem obter algo mais do que o prazer.»(pp. 217-218) Trata-se do intratável: o amor, palavra devorada pelo quotidiano mediático da civilização ocidental. Trata-se, por conseguinte, de deslocar a palavra para lhe desocultar a luz afogada e lhe entender a voz, através das frinchas de outra civilização. «A quinta-essência consumava-se na memória do encontro que não é da carne, mas das profundas faculdades da inteligência comum. Nada era mais galante do que o viver tal companhia. E, estando separados, se encontravam no enigma.» (p. 257).

A história de José Carlos e Iluminada desenha-se com sublime delicadeza sobre o manto imenso dos mistérios da História próxima e distante de Portugal e da China, não só porque o jogo das interrogações infinitas amplia os limites e a sapiência do amor, mas sobretudo porque no mundo de Agustina o tempo é o menor dos escultores, o burocrata de serviço às modas que ofuscam para a terrível contemporaneidade da natureza humana, por todos os séculos dos séculos. Já em 1964, a propósito de Os Quatro Rios, Eduardo Lourenço definia a escrita de Agustina Bessa-Luís como «uma tapeçaria, mas dum género especial, aberta». ( in O Tempo e o Modo, nº 22).«”A vida é feita de arrumações de coisas que não são nossas” – pensou Iluminada. Pensamentos que muito antes de nós já comoveram alguém e que estão em toda a parte, no vento, na água, no sol. Uma vez encontrados, a quinta-essência destaca-se como um ponto brilhante no universo e tudo volta ao seu lugar.»( p.248).

 

A Quinta Essência.jpgA expressão aforística, que neste romance atinge um grau de autêntico esplendor, prende-se, não com uma exibição compulsiva de autoridade individual, como certas leituras ligeiras frequentemente sugerem, mas com esta impessoalidade profunda que, como sublinhou Silvina Rodrigues Lopes num dos seus penetrantes estudos sobre a escritora,«(...)produz um pensamento indeterminado, simultaneamente inteligência contagiante, revelação que interfere na formação do leitor, e abertura de múltiplas hipóteses(...)» ( Agustina Bessa Luís – As Hipóteses do Romance, Asa, 1992, p. 30). Sob um estilo aparentemente clássico, a autora estilhaça todas as regras convencionais da criação de personagens e de desenvolvimento da acção: as personagens – em particular os homens - são intrinsecamente virtuais ( imprevisíveis, permeáveis, porosas), a acção deixa-se contaminar pelas múltiplas recriações da memória de acções anteriores, a citação vicia e vigia inconscientemente o tecido íntimo do devir. Como o par de apaixonados deste romance, a escritora pensa sem temor nem repouso no pensável e no impensável, arriscando saltar no escuro todos os muros até hoje estabelecidos. Nesse sentido, Agustina foi post-moderna avant la lettre.

A ousadia deste romance que investiga as semelhanças entre portugueses e chineses, o encontro entre Ocidente e Oriente, prepara-o para atravessar, numa intocável fórmula de beleza, o milénio que vem aí – como O Sonho no Pavilhão Vermelho de Cao Xueqin atravessou o mar do tempo até chegar a Agustina, que fez do autor um onomatopaico e próximo «amigo Joaquim» e da saudade desse sonho oriental a pedra de toque desta portentosa declinação das idades do amor eterno. 

Selecção Nacional -1

Inês Pedrosa, 02.07.16

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"Só é estável o que nos parece perecível. Busco, volto, abandono e chamo de novo. É isto amor. Trago no meu seio irmãos e horas, luzes, palavras, mitos; o caldeiro cheio de corações humanos onde cozem as suas ervas as feiticeiras do tempo; a roça e a espada, a flor e a poeira. Isto é amor. Quem pode obstar a esta torrente, quem vem, com pé leviano e peca sombra, interceptar o sentido dalguma coisa que nasce no seio do seu próprio sentido? Vou, volto, danço de roda das trípodes e das fogueiras, devasso os corações lívidos dos vivos e o seu frágil comércio sentimental. E percebo que tudo o que foi criado muda, que a alma corre como o vento em busca da sua guarida que é por momentos alguém, depois um projecto, uma dor do lado esquerdo ou o jornal da manhã, o dinheiro, a fama ou o desdentado riso dum mendigo. Que são romances? Histórias fingidas, presenças estudadas, um coro de actividades morais, a burocracia da personalidade. Não é tempo talvez de tais jogos mais ou menos argutos e meditabundos. Cada voz reclama a sua parte de luz, não há heróis, já que tão bem sabemos que o convívio com eles se torna funesto e nos absorve. Cada voz está só e é única, e é contra o coração dos outros, vertiginosamente, que ela ressoa."

Agustina Bessa-Luís, A Muralha, 1957, pp 38-39.

Agustina

Adolfo Mesquita Nunes, 15.10.12

Poucos escritores se bastam com o nome próprio, privilégio de quem se senta à nossa mesa nos Domingos que não são de festa. Sabemos que alguém é da casa quando o nome se antecipa a tudo o resto. Vem aí a Agustina. Estou a ler Agustina. Agustina é da nossa casa, portuguesa porque o seu (fora de) tempo é demasiado português para ressoar devidamente em casas estrangeiras. E se digo Agustina, e não a obra de Agustina, é porque sei, e ela também, que muitos dos que a admiram confessadamente nunca lhe leram uma linha. Bastava ouvi-la, travessa arguta desconcertante fulminante, para a sentirmos nossa. Agustina, como o tempo no fado da Argentina Santos, fica, ficará sempre, enquanto nós nos contentamos com estar de passagem.     

 

Comecei a lê-la na faculdade, com a Sibila, e nunca mais parei, até à Ronda da Noite, com paragens pelas bermas, sempre sem saber porquê. Talvez porque haja ali um qualquer (fora de) tempo em que encontro uma ordem para o que sinto. E há sempre um riso, não muito óbvio, que se ouve enquanto nos deixamos levar pelos aforismos ou no momento em que uma personagem – são sempre as personagens, nunca os seus actos ou factos – nos passa a comandar, que me comove e desafia. E não sei resistir ao riso, nunca soube.  

 

Parabéns, Agustina.  

Parabéns, Agustina

Pedro Correia, 15.10.12

 

É uma data marcante para a cultura portuguesa: Agustina Bessa-Luís faz 90 anos e, embora doente, encontra-se entre nós. A melhor prenda de aniversário que lhe poderíamos dar hoje seria ler algumas das muitas páginas que nos legou em mais de meia centena de livros. Lamentavelmente, isso quase só pode acontecer recorrendo a edições antigas, em certos casos mesmo apenas junto de alfarrabistas: a nossa maior escritora viva deixou de ter uma editora à medida do seu prestígio. Não há títulos seus em livros de bolso, a preços acessíveis. E, muito pior, a assumida divulgação das suas obras completas não passou afinal de um projecto abortado.

A história, relatada com minúcia aqui, devia envergonhar quem lhe fez promessas que não cumpriu. No fundo, envergonha-nos a todos. Por ser este também, de alguma forma, um certo retrato de Portugal - um país que nunca soube apreciar devidamente os seus talentos.

Parabéns, Dona Agustina. Eu vou lê-la hoje, dê por onde der.