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Agustina Bessa-Luís completa hoje 95 anos. Deixo aqui o prefácio que fiz para o livro As Chamas e As Almas, que reúne Crónica do Cruzado Osb. e As Fúrias, dois brilhantíssimos romances que a escritora escreveu no imediato pós-25 de Abril, sobre os tempos da revolução.
A orquestra do imprevisível
«Que gente tinha saído da revolução dos cravos? Os que abriam o coração aos acontecimentos e os que abriam o guarda-chuva.» (Crónica do Cruzado Osb., p. 186)
Quem, porque não fosse ainda nascido ou porque andasse por outras partes, não pôde experimentar o tempo e a singularidade da revolução portuguesa, viverá nestes dois romances todos os acontecimentos e emoções desses anos turbulentos. Em pleno caudal revolucionário, Agustina concebeu um par de ficções nas quais realidade e reflexão fluem em paralelo, conseguindo captar, por dentro, o magma dos sentimentos e das revoltas das diferentes camadas sociais e pensar, por fora – como se pudesse observar a vertiginosa sucessão dos factos a partir de uma curva temporal posterior –, as consequências futuras do que estava a acontecer. Nesta extraordinária capacidade de descrever uma época e de antecipar o seu desfecho, com o rigor daquela isenção a que em literatura se chama compaixão, ou partilha da paixão dos outros, reside a mais imediata qualidade desta obra de inúmeras qualidades. O tempo pousa sobre as palavras escritas como um revelador – mostra o brilho dumas e a irrelevância doutras. Os trinta anos que decorreram sobre estes livros, escritos em tempos de lume, mostram a perfurante capacidade de análise da Escritora – e a força da sua profecia. Um escritor genial é sempre um profeta, um historiador do invisível, alguém que vê a coreografia temporal do espírito humano e consegue imaginar-lhe as configurações futuras, para lá dos concertos actuais do bem e do mal. A precisão dessa profecia dá-nos a medida de eternidade de uma obra; Agustina é já uma autora de todos os futuros – como o foi o Padre António Vieira, o seu único antepassado verdadeiro na História da Literatura Portuguesa, quer pela ousadia de exposição e asserção, quer pela transfiguração da matéria anímica através da acção política ou do sentimento dela.
Nesses anos em que, de repente, como se lê no início de Crónica do Cruzado Osb., «a política ocupava todo o horizonte humano», Agustina conseguiu continuar a radiografar a alma humana – da qual as vestes políticas são sempre e só um epifenómeno, a espuma (às vezes arrasadora) de uma história oculta de sangue e afectos – e perscrutar o desenvolvimento da sociedade, para lá desse cerrado nevoeiro da política. No subconsciente da política está a luta pelo poder, e no inconsciente dessa luta o drama particular da afirmação de si, que envolve o segredo dos sentimentos e da inteligência dos homens e das mulheres. Nunca foi outro o tema – caudaloso, inesgotável – de Agustina, isso que a Escritora inúmeras vezes sintetizou, com uma simpatia rápida, para corresponder à rapidez borbulhante dos jornais, como «as relações humanas». Costuma dizer-se que escreve sobre famílias, e fica tudo sossegado – como se a família fosse um lugar pacífico. O tema incessante de Agustina é o poder, que desvenda como autêntico microscópio da vida humana: na lamela desse microscópio, paixão e ódio, energia e morte, crime e culpa formam uma rede romanesca. Acontece que em Portugal, país pequeno e antigo, o poder aparece sempre profundamente imbricado nesses complicados enredos do sangue a que damos o nome de «família». Agustina afirmou uma vez, à entrada de uma das suas subversivas crónicas: «Eu não gosto de me meter em assuntos de família, mas não há outros». Ironizava sobre a arrumação fácil, e tão frequente, dos seus romances como uma colecção de histórias de grandes famílias do Douro – porque as famílias, e o brilho enigmático do Douro, as brumas do Norte são, na sua obra, apenas o ponto de partida, o lugar familiar de onde se parte para o desconhecido inquietante, o princípio do desassossego.
Só quem nunca leu Agustina pode considerá-la uma «conservadora». Nenhum grande escritor pode ser um «conservador» ou um «revolucionário», porque o que faz um grande escritor é, antes de mais, esse dom de liberdade que não se compadece com classificações. Diz Olga Rodom, na página 266 de As Fúrias: «A liberdade é uma serpente que rasteja como a inveja primeiro, e depois açoita como a vingança». Sim, a liberdade açoita inexoravelmente as limitações mentais de cada época, expondo-as em carne viva. Num dos seus aforismos fulgurantes como haikus, escreve Agustina, na página 343 de As Fúrias: «Os preconceitos são o espírito do tempo mal compreendido». O rótulo de «conservadora» tem limitações às quais a escrita e o pensamento torrencial de Agustina não se acomodam – precisamente, não é uma escrita acomodada às modas da estação, nem um pensamento que se deixe pastorear, e é isso o que, muitas vezes, ainda hoje, não lhe perdoam. Consagram-na para a encarcerarem no sossego dos clássicos, e a escrita de Agustina – desconcertante, sábia, imprevisível – não tem arrumação nem catalogação possível. Onde quer que se abra a página, uma frase nos incendeia e nos leva a pensar o mundo de novo. Num texto belíssimo, Maria Velho da Costa descreve Agustina como «menina total e raciocinante» («Maria Agustina, a trânsfuga», revista Egoísta, Fevereiro 2007). É preciso ter um pensamento vigoroso, indomável, para conseguir pôr ordem e justiça no tempo de uma revolução. Não há nada de anti nem pró-revolucionário nestes romances – há a busca do entendimento das causas e das consequências, uma análise que não poupa os «novos feudais» da revolução («novos feudais» que ela define, em versão actualizada ao início do milénio, no seu mais recente romance, o prodigioso A Ronda da Noite) como nos velhos feudais da ditadura. O tom sentencioso da sua escrita conduz também os espíritos mais ligeiros a catalogações apressadas – ela revela verdades profundas, mas essas verdades não são portáteis e adaptáveis ao politicamente ou espiritualmente correcto em curso, transporatndo antes uma visão aguda, de uma lucidez extrema, sobre a natureza humana, com todos os seus paradoxos e contradições. Por isso Agustina pode parecer cruel como a verdade, ou audaciosamente conservadora como uma criança; tem a consciência cortante de que o ser humano muda menos do que julga, e teve sempre – sobretudo nos tempos de maior agitação – a coragem de não o esquecer, e de o declarar. Agustina não fornece respostas, amplia as perguntas – escava e escavaca as evidências. Silvina Rodrigues Lopes descreveu cirurgicamente os efeitos deste labor: «a escrita [de Agustina] produz um pensamento indeterminado, simultaneamente inteligência contagiante, revelação que interfere na formação do leitor e abertura de múltiplas hipóteses, também elas sem outra legitimação que não seja a que adquirem na sua própria prática» (Agustina Bessa Luís – As Hipóteses do Romance, Asa, 1992, p. 302).
Estes dois romances compõem, de facto, uma obra única, o romance da revolução desde o seu arranque militar, masculino, táctico e frontal, aos seus desenvolvimentos políticos, femininos, estratégicos e sub-reptícios. Logo no início de Crónica do Cruzado Osb., escreve: «A revolução do 25 de Abril não mudara o fundo do complexo humano. Esbarrara mesmo com esse fulcro de inútil consciência das coisas, uma espécie de neurose da queixa, de expiação, talvez. O sangue de muitos povos alimentava o carácter racial da contradição; celtas garridos e sombrios iberos existiam em oposição no contexto da natureza provinciana e que pesava em todos os actos da vida comum e privada» (p. 30). Mais adiante, dirá que a revolução tocava «alguma coisa de mais profundo, talvez a extinção do medo milenário, do desprezo por si próprio», e simultaneamente verifica como «no campo das profissões grassava já a baixa manobra para obter lugares, assegurá-los no futuro mercê duma fluidez de compromissos» (p. 48). A justa serenidade da Escritora mantém-se imune à atmosfera convulsiva da época – o ponto final de Crónica do Cruzado Osb. data de 7 de Maio de 1976. O decidido esculpir de uma justiça visceral que constitui a força motriz do entendimento agustiniano conduz-nos através deste romance que vai organizando a desorganização revolucionária, do inicial período de festa e ruptura com o medo, à fase do «terror branco» em que se prenderam ao desbarato «inimigos verdadeiros ou fictícios», e ao progressivo nascimento de um «socialismo de ballet, pleno de fugas, suspensões, saltos e trémulos». Cáustica, a Escritora escalpeliza as diversas camadas da burguesia: «Toda essa gente cometeu a vulgaridade de se incomodar com a revolução, mais pelo facto de ela os ignorar, do que porque realmente ela os podia perder. (...) O primeiro movimento de muitos burgueses foi o de se adaptarem a uma atitude de vanguarda» (p. 44). Quanto ao revolucionário Movimento das Forças Armadas (vulgo, MFA), define-o numa frase: «Gente interessante, radiosa, que julgava o povo um público e a vida política uma actividade temperamental». E acrescenta, de imediato: «Mas o povo, e o povo português em especial, não concederia a ninguém a sua confiança. Se o fizesse, seria o mesmo que abdicar da sua parte de liberdade autenticamente permissível. A desconfiança é a única vantagem do povo sobre as minorias que o conduzem» (p. 48). Sobre as campanhas de alfabetização, escreve: «Achavam que saber coisas, estar cevados de conhecimentos, gordo de títulos, pletórico de razões, era a maneira de libertar as pessoas, de as tornar úteis e felizes. Não reparavam que a cultura assim ministrada não passava de uma nova superstição. Que o sexo, a física nuclear e o estudo dos clássicos ficavam tão obscuros como dantes, se não fossem respeitados como fenómenos independentes de qualquer versão vitoriosa; pois a obscuridade de todas as coisas só se dissipa quando o elementar delas se atinge – e o elementar delas é a relação entre elas e o homem» (p. 86). Sobre a desilusão inevitável, escreve: «As revoluções são tão incertas, que basta fazê-las triunfar para vermos quanto nos decepcionam. Isto, que parece efeito dum pensamento difícil, o povo sabe-o; e o povo português sabe-o primeiro do que qualquer outro. É uma raça privilegiada para entender o que não compreende» (p. 147).
Seria útil que se autonomizasse a constante indagação de Agustina em torno da identidade portuguesa num volume específico, de forma a que a sua arquitectura filosófica se pudesse observar como o edifício clarividente que efectivamente é. Eduardo Prado Coelho afirmou um dia, com uma inteligência exacta (em A Noite do Mundo, INCM, 1988), que o génio de Agustina não é o de um «maître à penser» mas o de uma «pensée sem maître» – e esse pensamento sem rédea nem dono desafia-nos tanto e tão desabrigadamente que chega a encandear-nos. Servido por uma escrita minuciosa e opulenta – «uma tapeçaria, mas dum género especial, aberta», como já em 1964 Eduardo Lourenço a definia (O Tempo e o Modo, nº 22, 1964) – , esse pensamento atinge-nos intermitentemente como uma espada de sol demasiado forte. As personagens movem-se através dos seus romances como nuvens piedosas que nos protegem do sol abrupto da sabedoria de Agustina, mediadoras de infinitos, deusas de algibeira, precárias e pecadoras, tentando aconchegar-nos à intempérie desse pensamento extra-lúcido. Há um inacabamento voluntariamente esperançoso nos romances de Agustina; fechada a última frase, a vida daquelas pessoas continua, o que significa que continuam ao nosso lado, animando-nos a prosseguir sem o temor dos desenlaces. A profusão de micro-enredos e o desfibramento de protagonismos prende-nos ao longo de todas as páginas, e suaviza-nos o esforço de apreensão do pensamento profundo e profundamente livre da Escritora. Nos romances de Agustina, precisamente porque movidos por um democrático sentido de compaixão ou justiça, dilui-se a noção de personagem secundária; todas as figuras têm o seu momento de intervenção essencial – é isso o que de imediato torna os seus livros sedutores e acessíveis a leitores intuitivos e não-iniciados. Muitas vezes, aliás, esses leitores não-formatados entendem-na melhor do que os académicos puros, precisamente porque a escrita de Agustina parte de um contrato de autenticidade, de uma aceitação serena da contradição humana e de uma prática de indomável liberdade. Como escreveu Fernando Pinto do Amaral, «o que interessa à sua voz é ir abrindo portas, deixando a cada um a decisão de as transpor, quando e como quiser» (Uma «Incerteza Apaixonada», Diário de Notícias, 3 de Novembro de 2006).
Agustina Bessa-Luís herdou a curiosidade insaciável, a possante capacidade de trabalho e a força genuína de Camilo Castelo Branco – mas levou muito mais longe esses dotes, tornando-se uma espécie de super-Camilo. Teixeira de Pascoaes explicou que, nos livros de Camilo, «chegamos sempre à luta entre as forças espontâneas do ser e a lei que as subordina à sociedade. Tal luta é a mesma sociedade a fixar-se em formas inertes de encontro à acção renovadora do espírito» (O Penitente, Assírio& Alvim, 1985, p.85). Esta afirmação adequa-se igualmente à ficção agustiniana – que suplanta a de Camilo no que se refere à experiência abissal das paixões humana e ao entendimento desassombrado da dimensão caótica dos seus desejos. É verdade que, pelo menos à tona dos factos, a autora de Prazer e Glória terá experimentado menos vicissitudes morais e materiais do que o autor de Memórias do Cárcere. Mas o que sabemos da experiência do sofrimento alheio? Virginia Woolf meditou muito sobre a dose certa de raiva necessária a um escritor – não demasiada, para não obscurecer a justiça genérica da escrita, nem inexistente, para não amolecer a inspiração. Escrevemos sempre contra um silêncio ou uma submissão; em última análise, o génio globalizador de Agustina é, pura e simplesmente, da ordem do dom, ou do milagre – inexplicável. Podemos apenas congratular-nos com essa sua capacidade, absolutamente única, de nos dar a ver o movimento do mundo inteiro através das peripécias de uma série de famílias do Douro. Mais do que uma extraordinária criadora de aforismos, Agustina é uma artista da parábola. Os seus romances resistem a sínteses castradoras: para sermos fiéis ao enredo de Crónica do Cruzado Osb. teríamos de contar uma bateria de pequenas histórias, para lá do fio existencial desse Josué Silva que, em plena revolução, «magoado com uma desgraça que afinal se baseava no mau uso da sua juventude – ele fora saneado do jornal onde ocupava um cargo na redacção» decide escrever «uma sátira muito viva e espirituosa, e também mal-intencionada» a que deu o nome de Crónica do Cruzado Osb., declinação contemporânea da crónica de Osborne, militar inglês que assistiu ao cerco de Lisboa em 1147.
A obra de Agustina tem essa característica, cada vez mais rara e preciosa, de abrir os seus salões, descontraidamente, ao convívio com obras e temas de outras eras, actualizando-os. Num tempo em que Cícero é citado sem ter sido lido e os plágios entre vizinhos se disfarçam de homenagens, Agustina distingue-se também por essa ciência do diálogo, tão erudita quanto despretensiosa. Crónica do Cruzado Osb. é um romance invulgar na obra de Agustina, porque é um romance macho; não só circula em torno de personagens masculinas, como tem uma mecânica narrativa organizada, cartesiana, quase espartana. Desenvolve-se claramente como um romance de ideias – a tal ponto que seria possível descolá-lo da narrativa e reconstrui-lo, à margem dela, como um ensaio sobre a Revolução. Ensaio que vem ao encontro do Portugal de hoje: «Basta que se promulgue a austeridade na economia, que se exponha o sudário das adversidades a suportar, para que a revolução sofra um retrocesso. Os governantes hábeis costumam usar deste meio para, directa ou indirectamente, culpar s massas e assim obterem delas uma certa docilidade. A litania da penitência sempre procurou obstáculo à contestação, É assim no campo religioso e é assim no campo político (p. 96)». Ensaio que não deixa pedra sobre pedra: «Não é possível mudar nada enquanto a luta constar apenas de um rolamento de lugares de vítimas e carrascos. Abrir todas as prisões tem que significar destruir as prisões, e não conservá-las à ordem de outros poderes» (p. 135). Romance da candura armada e da iniciação à política, Crónica do Cruzado Osb. elabora o perfil do amor idealizado, abstracto, que marca a História do Masculino, de Platão aos nossos dias. É a crónica do orgulho, sobre o qual a Escritora reflecte longamente, virtude máscula que interrompe a vida, enredando-a em estratégias equívocas, quase sempre fatais.
As Fúrias surgem, um ano mais tarde, como contraponto íntimo, veemente, à crónica de estrada da Revolução representada pelo autor de Osb. e pelos seus pares. Neste romance de «pessoas em contra-luz», «cheias de trevas», como explica a Autora (p. 362), observamos os efeitos da revolução social no interior das casas e dos corações, e, em particular, as consequências da fúria desencadeada nos corações das mais improváveis mulheres – as grandes burguesas como as pequenas proletárias, que de repente desatam a falar e a agir por conta própria, contra as novas como contra as velhas convenções e expectativas. Habituámo-nos a ver a emancipação social e política das mulheres como um mero processo legal e de conquista de direitos – mas Agustina desmonta implacavelmente o paternalismo superficial das ideias feitas sobre as emancipações, mostrando-nos mulheres que, sob o vendaval da liberdade, se entregam aos seus desejos mais ocultos, rejeitando qualquer definição emancipatória exterior, da ordem do masculino. Perpassa por todas as páginas deste livro a aragem de um erotismo intenso, convulso, enigmático, um clima de «desintegração erótica» nascido da força carnal, subitamente descoberta, das mulheres, que se erguem contra «o mau romantismo dos tempos». Ao orgulho masculino da primeira fase da revolução, descrita em Crónica do Cruzado Osb., segue-se agora o tempo feminino da vingança: «as mulheres estavam entregues a esse espírito de vingança que não tinha como barreira o esteticismo dos homens capaz de produzir uma acção política e nacional» (p. 299).
Mitologicamente, as Fúrias nascem das gotas de sangue que caem sobre a Terra durante a castração de Urano. Ou são filhas de Hades e Perséfone, localizadas entre as sombras. São as forças de retribuição: Aleto, a ira incessante, Tisifone, a retaliação, e Megera, o ciúme. No romance de Agustina, este feminino incandescente é representado, antes de mais, pela velha Olga, que decide chamar a revolução para dentro de casa (uma casa com trinta quartos e dois salões de festas), e convocar a ocupação, em vez de se defender dela. Nesta altiva Olga que decide comandar e estabelecer as regras da invasão da sua casa pelo povo, encontramos muito da própria Agustina: «Olga não tinha a menor ideia de que agia democraticamente, nem isso lhe interessava; a política não interferira nos seus costumes, porque eles derivavam directamente da sua condição, duvidosa de resto, de espectadora (...) Olga não tinha qualquer academismo de pensamento nem disposição revolucionária. Em diversas situações da vida fora incontestavelmente quase uma marginal. (p. 237). «Havia nela uma propensão para derrubar o passado, para o esvaziar do seu conteúdo mais sagrado; e isto a par de uma aparente fidelidade aos costumes que ela respeitava com uma certa pretensão racista, uma certa abundância de programas. Mas no fundo odiava a sua escola de merecimento, o seu padrão de elegância, cada um dos objectos que lhe ensinavam a amar» (p. 247). Também em Ofélia, filha de Olga, se detecta a maneira de olhar da própria Escritora: «não impressionava senão por uma espécie de atenção, como a das aves de presa; uma maneira certeira de ver tudo quanto se move e se desloca numa paisagem, seja um ramo que de súbito se desprende, seja uma pista animal e fugaz» (p. 294). A outra filha de Olga, Mimosa, ocupará o lugar de terceira Fúria; mecenas de uma espécie de asilo para intelectuais pobres, com «um gosto pela instabilidade» e tendo «por arquétipo uma virgem de Fátima vestida pelo Dior (...) saboreava os equívocos como pastéis e deleitava-se a provar as contradições desses belos recuperadores da pátria» (p. 269). O olhar e o passo destas três mulheres marca a narrativa dos anos em que a revolução se diluiu na habitualidade, desfigurando-se, humanizando-se, criando um novo mundo, em muitos aspectos idêntico ao anterior, e em muitos outros – imperceptíveis e determinantes – irreversivelmente distinto.
Juntos, estes dois romances compõem um extradordinário vitral do período revolucionário português. Num tempo em que as livrarias se entopem dessa falsidade redundante a que se chama «romance histórico» – a História nunca é só uma, e todo o romance digno do nome é uma formulação da História –, a ressurreição destas duas obras que nos oferecem a memória poliédrica do tempo inaugural da democracia, com o pressentimento certeiro das luzes e sombras que hoje ela desenha, e com a profecia do que continuamente a excede e corrói, é absolutamente fundamental. As palavras que a Escritora usaria, poucos anos depois destes dois romances, para definir a escrita epistolar da protagonista em Fanny Owen (1979), assentam-lhe como uma luva: «Não só escrevia com extraordinária correcção, como imprimia às palavras um fogo devorante, não pelo que elas significavem etimologicamente, mas pela sua escolha e aliança especial. Era como um jogo perfeito, sonoro, insensato e invulnerável, essa escrita produzida como por um anjo cego, cujos valores não fossem equiparados aos humanos» (p. 94). Nestes livros aprendemos tudo o que há para aprender sobre a nossa História contemporânea – e, sobretudo, apreendemos o que incessantemente nos escapa, ouvimos a voz dos silêncios, mágoas e sonhos desfeitos que a História e as histórias apagam. Porque na escrita de Agustina convergem todas as iluminações e misérias humanas, o segredo das maiores e menores almas, o dizível e o indizível, o tempo e a eternidade.
Maio 2007