Há mulheres a mais?
Às sextas-feiras o meu apreciado amigo Luís Aguiar-Conraria escreve no Expresso e eu andava há que tempos a concordar com o que diz.
Preocupante: Luís é, confessadamente, de esquerda, coitado, e eu sou uma pessoa sensata.
Isto estava-me a parecer um indicador de que das duas, uma: ou ele deslizava imperceptível e saudavelmente para o lado bom do espectro político ou a terceira idade começava a cobrar o seu preço, afectando-me negativamente as circunvoluções cerebrais.
Mas hoje o mundo reconstruiu-se ordenadamente e nesta coluna o asneirol irrompe, pujante.
É o caso que uma lei (que desconhecia) exige, para o pessoal dirigente na Administração Pública, que cada sexo tenha uma representação mínima de 40% e que haja alternância sexual, e esta intromissão aberrante aplica-se aos órgãos directivos da Universidade. Ora, Luís encabeça uma lista concorrente a um órgão, mas, zás, tem uma mulher a mais. E há outras listas, uma concorrente desta e duas para outro órgão, com igual problema: mulheres, na Universidade do Minho, há avonde – são dois terços dos professores e, parece, a maioria nos alunos e nas licenciaturas. O mesmo sucede na magistratura, na medicina e j’en passe.
Um ponto prévio: não fui ler a lei (não tenho excessiva paciência para remexer no lixo, isto é, na engenharia social imposta contranatura em legalês de provável má factura) mas, se bem transcrita, fala em sexo, não em género, o que levanta interessantes problemas: se dissesse género em vez de sexo bastaria a candidata que Luís obedientemente substituiu na lista declarar-se homem desde pequenina e logo o problema ficaria resolvido. Aparentemente, em Braga os gajos são gajos e as gajas gajas, o que indicia um insuficiente progressismo.
Nas outras listas a substituição é mais significativa: são várias as mulheres que têm de dar o lugar a homens.
Coisa curiosa: quem encabeça as candidaturas para o Conselho da Escola e o Conselho Científico não pode escolher, para a sua equipa, os que reputa melhores, porque é obrigado a ter a adequada proporção de pénis e vaginas. E, parece, o desprezo por aqueles órgãos colegiais é tão grande, e a fé nas competências próprias tão pequena, que estas pessoas são peças intermutáveis – na realidade tanto faz uns como outros, o que é preciso é que nas reuniões não fale toda a gente com voz fininha, ou grossa.
Como se justifica isto? É que, diz Luís, “o desequilíbrio a favor das mulheres pode simplesmente ser o reflexo de haver discriminação em outras carreiras mais aliciantes”. Não especifica quais sejam elas, mas não poucas magistradas, inteiradas desta tese, haverão de dizer para os seus botões: devia ter ido para o Exército, onde se pode ir de passeio a missões de paz na Roménia e chegar a major-general com o benefício de dizer asneiras na televisão, ou para as minas, onde pagam muito bem, mas não, são eles que têm estes grandes privilégios. Ai credo, que ele ainda há por aí muito machismo.
Vem a seguir a necessária correcção à lei: como não produziu, nem podia produzir, resultados úteis, elimina-se uma distorção criando outras, que a seu tempo se descobrirão. Revogar é que nunca, que a sociedade perfeita mora no Diário da República, nos próximos tomos.
Mas não fica por aqui o festim. No artigo em questão trata-se de outro tema completamente diferente, que é a possível cooptação para o Tribunal Constitucional de um tresloucado com impecáveis credenciais científicas. O homem parece ser um católico integrista e tem, a respeito da criminalização do abortamento, posições contrárias à lei em vigor e às crenças dominantes. O que diz, embrulhado na retórica académica muito respeitada pelos seus pares, ofende o senso – o meu, pelo menos, e decerto o da maioria das pessoas.
Sucede porém que não há nenhuma razão para pensar que no Tribunal Constitucional não cabem juristas cujos pontos de vista se afastam das soluções consagradas na lei. Se fosse assim a condição de comunista, que é a de, fatalmente, alguns juízes, dado ser uma doença disseminada em todas as categorias da população, como a rinite crónica, precludiria a escolha de magistrados com aquela afecção. O que não apenas nunca sucedeu como ao excelente Luís não ocorreria manifestar-se contra a escolha de um magistrado comunista no caso de este ter publicado escritos em que tivesse defendido, por exemplo, que Zelensky é um agente do imperialismo ianque.
Convém lembrar que o juiz não faz, apenas interpreta, a lei. E mesmo sendo ingenuidade pensar que as convicções pessoais não afectam o pendor da interpretação, é um injustificado processo de intenção supor que um jurista honesto, na condição de juiz, é capaz de decidir contra legem. Depois, o que todo este arraial esconde é um facto simples: em Portugal pode ser-se um troglodita se se for de esquerda e até as portas do Conselho de Estado se abriram para acolher um Torquemada das ideias boazinhas como frei Anacleto Louçã. O caramelo é de direita? Temos a burra nas couves: aqui d’el-rei que a democracia está em perigo.