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Delito de Opinião

Aprender até morrer

Maria Dulce Fernandes, 25.08.24

Hoje aprendi que o governo talibã do Afeganistão, além  de obrigar as suas mulheres a vestir a roupa da cama para que os homens não incorram em tentação, "aconselha" também, e pelo mesmo motivo,  as mulheres a "evitar o som em público ou a voz elevada, incluindo cantar, recitar, ou falar em microfones".

Umas sussurram enquanto os outros zurram, pois quem por lá manda são as vozes de burro.

É assim, aprender até morrer...

 

Ainda o Dia Internacional da Mulher

Pedro Correia, 09.03.23

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No Afeganistão:

O brutal regime de Cabul discrimina as mulheres de todas as idades, começando pelas mais jovens, impedidas de frequentar o ensino secundário e universitário. Os casamentos forçados e as violações são frequentes no Afeganistão, onde a camarilha talibã tomou o poder em Agosto de 2021. Após 20 anos de inédita liberdade neste país, as mulheres voltaram a ser banidas da política: até esse Verão, preenchiam 27% dos assentos parlamentares. Hoje não são autorizadas a usar transportes públicos excepto na companhia de um homem da sua família. Em regra, só podem sair de casa devido a assuntos urgentes, mas terão de usar burca. Activistas dos direitos das mulheres são sistematicamente detidas e agredidas nas esquadras policiais. O Ministério dos Assuntos Femininos deu lugar ao Ministério da Propagação da Virtude e da Prevenção do Vício.

 

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No Irão:

O brutal regime de Teerão discrimina as mulheres, tratando-as como cidadãs de segunda classe. Permite a violência contra mulheres e tolera a exploração sexual de meninas. Prende, multa e açoita mulheres por aparecerem em público sem cobrir os cabelos com o véu islâmico. Reprime ferozmente as activistas pelos direitos das mulheres. Pune desproporcionalmente as mulheres no sistema judicial. Nega às mulheres todas as oportunidades políticas e económicas. Favorece os homens em detrimento das mulheres nas lei de família e sucessões. As mulheres que forem apanhadas de cabelo descoberto e roupas consideradas "imorais" podem ser presas durante dois meses pela Polícia da Moralidade criada após a implantação da ditadura teocrática, em 1979. Em alternativa, o código penal iraniano prevê que recebam «até chicotadas».

Constituições do Mundo (11)

Afeganistão: Constituição de 2004

Pedro Correia, 26.02.23

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«O Afeganistão é uma República Islâmica independente, unitária e com um Estado indivisível.»


«A sagrada religião do Islão é a religião da República Islâmica do Afeganistão. Seguidores de outros credos são livres de praticar os seus rituais religiosos dentro dos parâmetros da lei.»

 

«No Afeganistão nenhuma lei pode contradizer os princípios e as normas da sagrada religião do Islão.»

 

Artigos 1.º, 2.º e 3.º da Constituição da República Islâmica do Afeganistão

Os nossos tradutores no Afeganistão

jpt, 25.08.21

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Nunca quis botar sobre o Ministério da Defesa, é uma área de que nada sei e algo opaca (e assim o deve ser). E sobre a saída do Afeganistão nada digo, pois também nada sei, apenas lamento o processo. Mas ouço na televisão que o governo português se prepara para trazer alguns afegãos que trabalharam com o destacamento português (são referidos tradutores, mas possivelmente haverá outros). E cada um terá o direito de vir acompanhado pela esposa. Sendo explicitado que por "apenas uma esposa", no caso de serem indivíduos em casamentos poligínicos. Ou seja, terão que optar por uma delas. E pelos respectivos filhos, decerto.
 
Ora esta decisão extravasa completamente os assuntos da tutela e são totalmente inaceitáveis. Presumo que virá a ser acolhida pelo silêncio do mundo dos "identitaristas", os que cultuam as Filomenas Cautelas e quejandas. Mas que fique bem explícito para os socratistas, os do governo português e os intelectuais genderísticos, sempre ávidos de usarem "identidades" para sacarem recursos do Estado e nisso incapazes de criticar os santos do PS: diante da poliginia a única posição legítima é defender a total igualdade de direitos de todas as esposas e das suas proles. E esta decisão do governo português - independentemente da sua efectividade -, é uma barbárie (uso o termo de modo consciente), uma sobrevivência ignorante do pior da evangelização de séculos atrás. Em pleno 2021 um paroquialismo de sacristia. Uma vergonha.

Cabul, Agosto de 2021

Pedro Correia, 18.08.21

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Saigão, 1975: a história repete-se

 

É fatal, nestas ocasiões: vejo mil tudólogos a poisar nas pantalhas declarando-se especialistas em temas internacionais - e no drama do Afeganistão em particular. Não tardam a aparecer os relativistas militantes, sugerindo que devemos respeitar as «diferenças culturais» e o direito de cada povo a eleger os seus representantes. Como se alguém tivesse eleito ou viesse a eleger a turba talibã. Como se não houvesse o dever moral, da nossa parte, de declarar criminoso todo o poder que pretende legitimar-se à margem dos direitos humanos, exibe a todo o momento a supremacia dos canhangulos e transforma a palavra divina em instrumento de terror.

Nestes instantes, nunca faltam à chamada aqueles que, instalados no conforto ocidental, concentram as suas críticas no Ocidente. Por ter inaugurado no Afeganistão um «Estado falhado». Para desfazer dúvidas, basta no entanto perguntar aos afegãos se preferiam viver nesse «Estado falhado» que lhes trouxe inédita liberdade durante 20 anos - correspondendo a uma geração inteira - ou se preferem viver agora novamente sob o domínio cavernícola dos talibãs.



Nem é preciso perguntar. Eles - e elas, sobretudo - estão a responder há semanas, abandonando o país em massa. Como podem. Por vezes sem levarem mais nada senão a roupa que têm vestida.

Quem não consegue fugir, teme o pior.

Como a estudante universitária que alude às «faces hediondas dos homens que odeiam mulheres»: já são eles a mandar de novo. Ou a juíza que desempenhou estas funções durante dez anos e se confessa apavorada perante a perspectiva de se abrirem as portas das prisões cheias de reclusos a reclamar vingança.

Não há lugar para elas - nem para muitas outras - nas evacuações de emergência que prosseguem há 72 horas, com cada um a tratar de si, deixando para trás a multidão de heróis quotidianos que concretizaram vinte anos de frágil mas efectiva liberdade no Afeganistão. Já hoje, um avião militar australiano levantou voo de Cabul com apenas 26 pessoas tendo espaço para transportar 128.

Caso para perguntar: ninguém mais merecia ir a bordo?



Quanto a Joe Biden, nada de novo. Reedita o triste papel desempenhado por Gerald Ford em 1975, em Saigão, e Jimmy Carter em 1980, em Teerão. Limita-se a repetir, com menos poder de síntese, o que Henry Kissinger declarou há 46 anos, a propósito do Vietname caído às mãos dos comunistas: «A boa notícia é que a guerra terminou. A má notícia é que a perdemos.»

Mais do mesmo. O actual inquilino da Casa Branca terá direito a um belo rodapé nos futuros manuais de história.

Sobre o Afeganistão

jpt, 18.08.21

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Sobre esta coisa do Afeganistão deparo-me com vários conhecedores da situação. Desde um ex-deputado e agora candidato em Loures pelo BE que surge no reflexo típico de culpabilizar o Ocidente, cujos governos "bombardeiam (...) governos progressistas". Para outros - decerto que "progressistas" - aquilo é ab ovo culpa dos EUA, pois descobrem que estes apoiaram a guerrilha anti-soviética [note-se que há um já velho filme sobre isso, "Charlie Wilson's War" (Jogos do Poder) com o actual Jimmy Stewart, o grande Philip Seymour Hoffman e a divindade Julia Roberts, não estando assim estes investigadores a dar-nos grandes novidades]. Mas nenhum desses aborda os motivos da invasão soviética, decerto que por os considerarem irrelevantes.
 
Muitos, até não interseccionalistas, lamentam o destino das mulheres afegãs - mas poucos (não leio sequer um) se preocupa com a gente afegã qual eu. Outros, mais interseccionalistas e nisso paladinos da etnicização de Portugal e restante pérfido Ocidente, anunciam que o decadente governo afegão pró-ocidental descurou uma etnia (os pastós), deixando assim entender que a etnicidade é algo problemática, mas estarão certos que apenas nos longínquos vitimizados transeuropeus. Outros ainda, que leio há anos defendendo o status quo luso, apontam que a derrocada do poder de Cabul se prendeu a ter sido muito corrupto, assim anunciando que - decerto que apenas fora de Portugal - a corrupção estatal enfraquece as vias democráticas. E outros ainda, de recorte mais intelectual, concluem que os ocidentais nada percebem sobre o Afeganistão.
 
Continuo a crer que está (quase) tudo nos livros, e só lamento não ter a militância, a disciplina e, acima de tudo, a inteligência para ler o que me falta e, acima de tudo, reler o que me fez. Enfim, daquilo que me passou pela frente deixo um aviso e uma memória: o aviso, superficial, é sobre o que virá aí naquelas bandas. Será de ler "As Novas Rotas da Seda" do Frankopan. Quem o ler poderá fazer postais no FB, e nos blogs. E, alguns, até irão à TV botar faladura.
 
A memória, que é a coisa importante: está tudo no "O Americano Tranquilo" (há várias edições portuguesas) de Graham Greene (1955). Li-o aos 16 anos e descobri-me Thomas Fowler. Não como alter ego, como acontece nas leituras juvenis. Mas como reconhecimento, num "eu sou este gajo". Ainda hoje me surpreendo como me conheci tão cedo. Reli-o três vezes até aos 25 anos e não mudei de ideias. Depois aos 40s e sorri, na comprovação desse reconhecimento. Quando for à capital, às estantes do meu pai, relerei de novo, agora quase aos 60, usando este exemplar paterno, aquele com o qual descobri Fowler (jpt). Não me dará para postais de FB ou de blog. Mas, claro, e como sempre, dá-me para encolher os ombros diante dos convictos a la carte.

Afeganistão, o país esquecido

Alexandre Guerra, 16.08.18

Quando os conflitos militares saem da agenda mediática, instala-se a sensação junto da opinião pública de que foram resolvidos ou atenuados. Se isso pode ser verdade em muitos casos, outros há em que o que acontece é puro esquecimento ou desinteresse da comunidade internacional face a realidades que perduram no terreno, por vezes, com mais intensidade. É isto precisamente que se está a passar no Afeganistão, uma guerra intestina mortífera, que continua a opor os taliban ao frágil Estado central.

 

Só nos últimos dias, os fundamentalistas islâmicos tentaram tomar de assalto a importante cidade de Ghazni, capital da província com o mesmo nome, envolvendo-se em confrontos com as forças de segurança, que provocaram, pelo menos, a morte de cerca de 100 polícias e 20 civis. Os combates continuam, embora as autoridades afegãs informem que a situação está controlada. Sabe-se também que na Sexta-feira (9) “conselheiros” americanos estacionados no Afeganistão foram para o local ajudar os militares afegãos e que aviões norte-americanos lançaram ataques aéreos, matando cerca de 140 insurgentes taliban. É importante lembrar que, formalmente, desde 2014, a intervenção bélica massiva dos EUA terminou no Afeganistão, tendo ficado para trás apenas cerca de nove mil soldados militares americanos para dar formação e apoio técnico às forças de segurança afegãs.

 

Seja como for, o New York Times, que tem um corresponde no Afeganistão, escrevia que quase todas as zonas suburbanas de Ghazni e as áreas rurais da província estão nas mãos dos taliban. Ghazni fica a 140 quilómetros a sudoeste de Cabul e a sua importância é estratégica, já que fica a meio da autoestrada que liga a capital afegã à segunda maior cidade do país, Kandahar. Entretanto, na Segunda-feira à noite (13), na mesma altura em que decorria a tentativa de ocupação de Ghazni, os taliban levavam a cabo uma outra operação no norte do Afeganistão, ao tomarem de assalto uma base militar na província de Faryab, matando 17 soldados. Os taliban informaram que muitos dos soldados da base Camp Chinaya se renderam, sendo que as autoridades desconhecem quantos foram feitos reféns.

 

Estes dois acontecimentos circunscrevem-se apenas nos últimos dias, mas, a verdade é que o Afeganistão continua a ser dilacerado quase diariamente pela violência taliban, mesmo depois de as forças nacionais terem assumido o comando militar das últimas regiões do país onde, até então, estavam os soldados internacionais. Estava-se em Junho de 2013 e um ano depois, o então Presidente Barack Obama retirava o grosso do contingente americano do Afeganistão, deixando apenas os tais nove mil soldados “conselheiros” no terreno. Chegava ao fim a presença internacional naquele país no âmbito da guerra declarada à al Qaeda e aos taliban, após os atentados de 11 de Setembro de 2001. No entanto, todos os aliados estavam cientes de que o fim da missão no Afeganistão não correspondia a qualquer sentimento de euforia. Pelo contrário, o conflito estava num impasse e se era verdade que o Governo central era agora pró-ocidental e “amigo”, o país permanecia a “ferro e fogo”, com os insurgentes a reconquistarem áreas significativas.

 

Quando Donald Trump chegou ao poder, não deixou de perceber essa evidente realidade, embora, primeiramente, a sua preocupação estivesse focada no Estado Islâmico (ISIS), tendo, por isso, lançado em Abril de 2017 a “mãe de todas as bombas” sobre um complexo de cavernas na província Nangarhar, no leste do Afeganistão. O objectivo não eram os taliban, mas sim os terroristas do ISIS, numa altura em que se falava que este grupo estava a ganhar espaço no Afeganistão e a concorrer directamente com os taliban pelo controlo e influência naquele país.

 

Os alarmes terão soado em Washington, mas rapidamente se percebeu que quem fazia valer a sua força no Afeganistão eram os taliban, como historicamente sempre tinha acontecido. Com o ISIS na mira, a Casa Branca tinha toda a estratégia focada para a Síria e Iraque, ficando o Afeganistão numa situação incerta, com Trump apenas a admitir que podia reforçar o número de soldados naquele país. Aliás, a 18 de Junho de 2017, o título de uma notícia do New York Times era revelador do desnorte face à estratégia a ser seguida: As US Adds Troops in Afghanistan, Trump’s Strategy Remains Undefined.

 

Trump não tem sido claro em relação ao Afeganistão, mas já disse que uma retirada total dependerá sempre das condições no terreno. Retirada, essa, que, para já, parece estar muito distante, já que Washington voltou a reforçar a sua presença militar no Afeganistão, intensificando o número de soldados americanos no terreno para dar “advise” às forças de segurança afegãs. Também os ataques aéreos norte-americanos aumentaram, especialmente contra as plantações de ópio, uma importante fonte de receita para os taliban. Convém sublinhar que, segundo o Office for Drugs and Crime’s das Nações Unidas (UNODC), a produção de ópio aumentou 87 por cento no ano passado. Um número impressionante, porque significa, por um lado, que a estratégia americana anti-narcóticos não está a resultar e, por outro, que os taliban vão tendo cada vez mais receitas para financiar a sua guerra.

 

Quem estiver atento às pequenas notícias que vão saindo na imprensa internacional, constatará que, dezassete anos depois do início da operação Enduring Freedom, não passa uma semana em que a insurreição taliban não faça mortes e feridos no Afeganistão. De acordo com os dados disponíveis, cerca de um terço do país está dominado pelos taliban, a produção de ópio aumenta e a corrupção está instalada no Governo central. Realisticamente, não há perspectivas de melhoria e muito menos um modelo que possa devolver estabilidade àquele país. Ironicamente, a última vez que o Afeganistão teve paz, era dominado pelos taliban do mullah Omar, onde a sharia imperava e um senhor chamado Osama bin Laden teve total liberdade para montar uma estrutura terrorista complexa e sofisticada.

 

Hoje, nenhum líder mundial o assume, mas o Afeganistão é uma causa perdida. Nada correu como se esperava e, numa determinada óptica, o país está pior do que, por exemplo, estava em 2000. É uma afirmação dura, mas é a realidade, que aliás se pode aplicar a outros países que foram alvo de intervenções militares desastrosas, como o Iraque, a Líbia ou a Síria. O Afeganistão é um assunto que convém ficar “esquecido” das agendas mediáticas e políticas, porque, simplesmente, não há solução à vista para resolver a trapalhada que ali foi feita. A revista The National Interest recuperava há semanas umas declarações de Obama, proferidas em 2010, onde este admitia que os EUA tanto podiam ficar no Afeganistão por mais cinco, oito ou dez anos, não por uma questão de estratégia, mas sim por “inércia”. 

 

É um impasse num conflito sangrento, destrutivo e dispendioso. Trump foi surpreendentemente lesto a percebê-lo e “adormeceu” o assunto, sem se comprometer com grandes medidas, mas ciente de que seria preciso fazer algo, nomeadamente, aquilo que nunca ninguém quis fazer… negociar com o inimigo. No dia 23 de Julho, no Qatar, uma alta responsável do Departamento de Estado esteve reunida com quatro líderes taliban. Foi o primeiro encontro entre as partes em sete anos. Também o Presidente afegão Ashraf Gani já percebeu o quadro todo, tendo no passado dia 27 de Junho publicado um artigo de opinião no New York Times onde, de forma peremptória e bem audível, dizia: “I Will Negotiate With Taliban Anywhere” (curiosamente, Mário Soares, animal político da escola realista, tinha há uns anos referido que qualquer solução minimamente credível para o Afeganistão teria que passar por uma negociação com os taliban. Na altura, não só não foi levado a sério, como chegou a ser gozado pelos “especialistas” e líderes da nossa praça).

 

Quase dezassete depois dos atentados de 11 de Setembro, o Afeganistão voltou a ser um país esquecido. Deixou de estar no topo das prioridades da comunidade internacional e da agenda mediática. Obama, antes, e Trump, agora, resignaram-se ao “status quo” afegão, de autêntico falhanço na destruição dos taliban e na reconstrução de um país dilacerado. Neste momento, num gesto de quase desespero, mas ao mesmo tempo de algum realismo, resta a possibilidade de negociar com o inimigo. E por isso é que é importante que o Afeganistão continue a ser um tema “esquecido”, porque a humilhação é pesada.  

 

Publicado originalmente no site do Público.