Rui de Carvalho como protagonista da peça O Santo e a Porca (1971)
Lembro-me quando o vi pela primeira vez: num folhetim televisivo, antepassado das telenovelas, exibido pela RTP no final da década de 60. Chamava-se Gente Nova, ele era o pai. O filho era o António Feio, que todo o País conhecia então por Luisinho, o nome da personagem.
Fixei-lhe o nome: Rui de Carvalho. Um senhor de voz pausada e dicção perfeita. Dois ou três anos depois, era eu ainda miúdo, vi-o ao vivo no já desaparecido Teatro Laura Alves, na baixa lisboeta. Interpretava uma peça teatral intitulada O Santo e a Porca, do dramaturgo brasileiro Ariano Suassuna.
Nunca esqueci a intensidade e a autenticidade daquele desempenho, marcas de um grande actor nos mais diversos registos – do drama à comédia, dos textos clássicos aos contemporâneos. Interpretando Molière, Shakespeare, Tennessee Williams, Bernard Shaw, Anton Tchekov, D. Francisco Manuel de Melo, Eça de Queirós, Thomas Bernhard, Friedrich Durrenmat, Natália Correa e José Cardoso Pires - alguns entre muitos nomes ilustres da literatura de todos os tempos.
Acompanhei, como tantos de nós, o seu papel de protagonista, incarnando o empresário agrícola Gonçalo Marques Vila na Vila Faia – primeira telenovela da RTP, que em 1982 rompeu com merecido sucesso o monopólio brasileiro no género. Ele já tinha sido pioneiro como intérprete do Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente – primeira peça teatral transmitida pela televisão, a 11 de Março de 1957. Fui seguindo o seu percurso televisivo até ao recente Bem-Vindos a Beirais, também no canal público, em que compunha a figura de Viriato Montenegro, o aristocrata da aldeia.
Admirei-o em aparições no cinema, com destaque para a sua magnífica interpretação como médico do Instituto de Oncologia no filme Domingo à Tarde, realizado em 1966 por António de Macedo. Voltei a vê-lo no palco em 1998, desta vez no estúdio do Teatro Nacional, dando corpo a um inesquecível Rei Lear, marco cimeiro da arte da representação.
Conheci-o pessoalmente no final da década de 80, quando convivemos em amáveis cavaqueiras ao serão enquanto hóspedes da Pousada de Mong-Há, em Macau, numa temporada que ali passou. Acompanhado de D. Ruth, a mulher por quem se apaixonou quando ambos frequentavam o Conservatório de Lisboa, na década de 40, e com quem permaneceu casado até à morte dela, há dez anos. Formavam um daqueles raros casais em que a harmonia e a cumplicidade se detectam nos mais singelos gestos do quotidiano.
Parece estar connosco desde tempos imemoriais. Não admira: estreou-se no teatro profissional ainda adolescente, corria o ano de 1942, quando António Silva, Maria Matos, Beatriz Costa e Vasco Santana pontificavam nos palcos. Ele trabalhou com todos esses gigantes do teatro português. E foi mestre de três gerações de actores. Sempre sem pose de vedeta, com aquela humildade que caracteriza os verdadeiros artistas.
“Não sou um talento. Admito que tenho jeito e alguma experiência e isso dá a tal coisa parecida com talento. Mas talento genial tem a Eunice Muñoz. Eu tenho jeito. Isto é tudo efémero”, dizia numa entrevista concedida em 2010 ao Correio da Manhã.
Rui Alberto Rebelo Pires de Carvalho, que usa Ruy de Carvalho como nome artístico, é um dos escassos compatriotas que gozam do estatuto de unanimidade nacional. Merece-o. Fez por isso com muito trabalho, imensa perseverança e fervorosa dedicação ao ofício que escolheu. Sem nunca fazer batota, como todos lhe reconhecemos. Na vida do palco e no palco da vida.
Rui de Carvalho, nascido a 1 de Março de 1927, festeja hoje 90 anos.