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Delito de Opinião

Lição de vida

Pedro Correia, 03.03.24

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No Monólogo do Vaqueiro, primeira peça exibida na RTP (1957)

 

«A morte é certa, não vale a pena estar a pensar nela. Vivam a vida, vivam, vivam, vivam, vivam e saibam o que fazer com a liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita -- e a democracia também.»

Ruy de Carvalho, anteontem, no dia em que festejou 97 anos. Em palco, como ele mais gosta. Parabéns!

Na morte de Jô Soares

Pedro Correia, 08.08.22

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Quando morre um actor que conhecemos há longos anos, e com quem partilhámos lágrimas e sorrisos, é como se nos desaparecesse uma pessoa de família.

Senti isso na sexta-feira, ao saber da notícia do desaparecimento de Jô Soares. Nesta era das mil graçolas por minuto à solta nas redes sociais, em que o humor se confunde com o sarcasmo mais grosseiro  e se vai perdendo a ironia em transição acelerada, regressei ao tempo em que o grande comediante brasileiro nos fazia rir com a sua graça natural, os seus trocadilhos inteligentes, a sua malícia contida nas entrelinhas. Porque era não apenas actor, mas autor - também literário, e de sucesso, como se comprovou.

Mas o que mais guardo na memória são dois dos seus programas televisivos de início da carreira: O Planeta dos HomensViva o Gordo. Com quadros inspirados na actualidade política, em tempo de ditadura em Brasília, sabendo fintar a censura com inteligência e argúcia. Em quadros que geraram frases depois incorporadas na linguagem comum não apenas no Brasil, mas também em Portugal.

Lembro algumas: «Não me comprometa»; «Tem pai que é cego...»; «Estão mexendo no meu bolso!»

 

Eis outras frases dele, já de fase posterior, quando acumulava a participação em programas televisivos em nome próprio com a escrita de livros sem perder as características que o celebrizaram:

«A comissão faz o ladrão.»

«No Brasil, quando o feriado é religioso, até ateu comemora.»

«Gordo, quando está fazendo dieta, sempre faz a barba antes de se pesar.»

«Em uma coisa os bêbados e os geógrafos têm razão: a Terra gira.»

«O material escolar mais barato da nossa praça é o professor.»

«Era tão azarado que, se quisesse achar uma agulha no palheiro, era só sentar-se nele.»

«Era um sujeito realmente distraído: na hora de dormir, beijou o relógio, deu corda no gato e enxotou a mulher pela janela.»

 

Jô era mais que um intérprete ou humorista: era uma genial criação de si próprio. Soube superar eventuais problemas de imagem, transformando defeito em virtude e assim se tornou ídolo de multidões. Sem ceder à facilidade. Muito menos à ordinarice própria dos ineptos, infelizmente hoje tão em voga.

Com ele ausente, ficamos um pouco mais tristes a partir de agora.

Poitier e Bogdanovich: olhar e ver

Pedro Correia, 08.01.22

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                    Sidney Poitier (1927-2022)                                     Peter Bogdanovich (1939-2022)

 

Morreram dois gigantes do cinema. Um actor (também cineasta) e um realizador (também intérprete) que sempre considerei "muito cá de casa", para pedir emprestada uma expressão que João Bénard da Costa imortalizou nos seus magníficos ensaios sobre a Sétima Arte.

 

Sidney Poitier, falecido anteontem aos 94 anos, foi pioneiro ao quebrar as barreiras raciais numa América ainda segregada. Primeiro actor negro a receber o Óscar para melhor intérprete masculino em Hollywood - por Lírios do Campo, em 1963. Só 40 anos depois houve outro a conseguir o mesmo: Denzel Washington, galardoado pela sua actuação em Dia de Treino

Vi Poitier em vários filmes icónicos. Incluindo Sementes de Violência (Richard Brooks, 1955), ainda no início de uma carreira que se prolongou por meio século, No Calor da Noite (Norman Jewison, 1967) e Adivinha Quem Vem Jantar (Stanley Kramer, 1967), neste contracenando com dois nomes quase lendários da tela: Katharine Hepburn e Spencer Tracy. Sempre com a sua figura austera e elegante, exibindo serenidade.

 

Peter Bogdanovich, que morreu também quinta-feira, aos 82 anos, chegou a ser um dos meus realizadores favoritos. Por filmes como A Última Sessão (1971) e Lua de Papel (1973). Pertencia à geração de George Lucas, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, que sacudiu a poeira acumulada nos velhos estúdios da Califórnia, refrescando e revitalizando o cinema. Logo no seu filme de estreia, Alvos (1968), infelizmente pouco visto nos dias que correm.

Devo-lhe muito não apenas como espectador mas também como leitor. Porque alguns dos melhores textos sobre a Sétima Arte que conheço são dele, reunidos num excelente livro intitulado Pieces of Time, entre nós publicado na década de 80 sob o título Nacos de Tempo, reunindo crónicas e ensaios inseridos originalmente na revista EsquireÉ uma das obras que mais vezes reli. 

 

Nestes tempos destituídos de memória, cheios de celebridades instantâneas que se sucedem à cadência das estações do ano, muita gente não faz a menor ideia quem foram Poitier e Bogdanovich. Ainda em vida, já tinham sido arrumados no sótão das antiguidades. E os filmes a que estão associados tornaram-se em larga medida invisíveis por expiarem um pecado contemporâneo: pertencem a um século que já passou. Não são blockbusters, não induzem ao consumo de pipocas.

Bogdanovich, sobretudo, ensinou-me a diferença entre olhar e ver quando se trata de cinema. Ao recordar, naquela colectânea, cenas dos seus filmes favoritos - que também se tornaram meus.

Por exemplo, em Rio Bravo (Howard Hawks, 1959). John Wayne desce as escadas do gabinete do xerife e dirige-se a uns homens que o procuram. O actor é filmado de trás naquele seu característico jeito de andar, lento e oscilante, enquanto a imagem se suspende por instantes para melhor nos envolver no que ali se passa. Quase sem percebermos, tornamo-nos cúmplices de Wayne, «figura familiar, clássica - inconfundível seja qual for o ângulo - que se move num mundo de ilusão que conquistou em absoluto».

 

É isto o cinema, tão sério como a vida. Por ser indissociável dela.

 

Bye Bye, Claxon

Maria Dulce Fernandes, 31.01.21

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Sábado à noite, era noite de Claxon.

Crime, mistério, sexo, muita acção, violência e um sem-número de alusões à nona arte da nossa juventude, esta fantástica série foi gravada em 35mm com pós-produção cinematográfica, provavelmente a pensar no grande ecrã, quando se ficou por 13 fantásticos episódios televisionados.

O país em 1991 ainda não estava preparado para este tipo de seriado dito de antologia.

António Cordeiro protagonizou o anti-herói Claxon, um detective desorganizado que se movimentava nas sombras da noite e nos meandros do submundo do crime na cidade corrupta. Nas suas quase sempre emocionais investigações, contava com a ajuda inestimável da sua secretária Ruby Tuesday (Margarida Reis) e do enciclopédico repórter Rick Planeta (Ricardo Carriço) que o traziam informado e focado nas averiguações.

Com dezenas de participações especiais, Claxon foi uma série fora de série e considerada uma das melhores ficções nacionais de todos os tempos.

António Cordeiro deixou-nos ontem, vítima de doença prolongada.

Até sempre, Claxon

 

Foto retirada do Google

Sir Sean Connery (1930-2020)

João Sousa, 31.10.20

Não penso ser possível fazer justiça a Sean Connery num par de parágrafos - por isso nem o vou tentar.

Considero a mais eloquente prova do talento de Sean Connery o facto de, apesar de ter sido o primeiro (e para muitos, incluindo este escriba, o melhor) James Bond, ter conseguido que isso fosse apenas uma das alíneas de um invejável currículo. Filmou com grandes realizadores como Sidney Lumet, Brian de Palma, Hitchcock e Spielberg. Representou um personagem de Umberto Eco. Participou em clássicos como Um Crime no Expresso do Oriente; épicos como A Bridge Too Far; bizarrias como Zardoz; pequenas preciosidades como Robin and Marian; falhanços como The Avengers e atrocidades como The League of Extraordinary Gentlemen. No fim disto tudo, recordo muitos grandes filmes, vários maus filmes que ele não conseguiu salvar - mas nenhum que tenha sido mau por causa dele. E possuía a saudável auto-estima para, depois de ter sido este:

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(imagem promocional de Goldfinger)


fazer um filme nestes preparos:

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(Zardoz)

Foi Ulisses, Van Gogh e Patton

Pedro Correia, 07.02.20

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Conheci poucos actores que tenham protagonizado tantas obras-primas dos mais variados géneros - do épico ao negro, da comédia ao drama, do western ao filme de aventuras.

Na tela foi Van Gogh, Ulisses, Doc Holliday, Ned Land, o general Patton. Entrou num dos melhores noirs de sempre (O Arrependido, 1947), na mais genial sátira ao jornalismo (O Grande Carnaval, 1951), numa assombrosa viagem aos bastidores de Hollywood (Cativos do Mal, 1952), numa fabulosa película anti-guerra (Horizontes de Glória, 1957).

Entrou noutras películas inesquecíveis: Carta a Três Mulheres (1949), Algemas de Cristal (1950), História de um Detective (1951), Vinte Mil Léguas Submarinas (1954), Duelo ao Pôr-do-Sol (1961), Duas Semanas noutra Cidade (1962), Sete Dias em Maio (1964) e O Compromisso (1969), entre tantas outras.

Filmou com quase todos os grandes mestres - Vincente Minnelli, Billy Wilder, Elia Kazan, John Huston, Robert Aldrich, Stanley Kubrick, William Wyler, John Sturges, Henry Hathaway, Anthony Mann, Joseph L. Mankiewicz, King Vidor, Stanley Donen, Otto Preminger.

Foi também um homem sem medo, na vida como nos filmes: rompeu com a lista negra de Hollywood que marginalizava profissionais talentosos por motivos políticos, contratando o proscrito Dalton Trumbo como argumentista de Spartacus, longa-metragem que interpretou e produziu em 1960.

A Academia de Hollywood, com a miopia que tantas vezes a caracterizou, nunca lhe concedeu um Óscar em competição. Redimiu-se da falha entregando-lhe uma estatueta honorária em 1996, tinha ele já quase 80 anos.

Débil consolo para aquele que foi o último protagonista da era dourada da Sétima Arte, gigante na tela como inspiração da vida: quando ele se ergue da multidão de escravos e proclama «Eu sou o Spartacus!», gera uma corrente de emoção que leva dezenas de outros a levantar-se para dizer o mesmo. É um dos momentos mais sublimes da história do cinema: vi esta cena pela primeira vez quando tinha 15 anos, assistindo à reposição do filme na BBC. Jamais a esquecerei.

Aos 103 anos, Kirk Douglas acaba de garantir um lugar perpétuo sob as luzes da ribalta: despede-se enfim da vida, abraçando a eternidade. Atento espectador dos seus filmes, um entre incontáveis milhões, daqui lhe presto uma reconhecida e grata homenagem.

 

Leitura complementar:

A one-man Hollywood Mount Rushmore. Um texto de Peter Bradshaw publicado no Guardian em Dezembro de 2016, quando Kirk Douglas celebrou cem anos.

Viva Spacey

jpt, 12.12.17

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Já estive para blogar um texto "Je suis Kevin!" mas censurei-me (enfim, sou pai, que pensaria a minha filha? ...). Mas esta nova notícia é espectacular, gargalhável, obriga-me a botar. Então não é que o mariola foi apalpar o príncipe lá da Sildávia, e no próprio palácio dele ... O gajo é um radical, sem limites. Ou seja, literalmente desbragado. Será até, porventura, um pouco uma bicha louca (eu sei, a expressão é um bocado preconceituosa. Mas é usada também por homossexuais, assim entendo-a legítima). G'anda Kevin! A notícia tem também duas implicações políticas: a primeira, lateral, é um estalo nos pobres monárquicos, sempre ciosos de uma qualquer superioridade das linhagens. Pois é óbvio que um cavalheiro nunca falaria em público de uma coisa destas, quanto mais um genro de rei. Assim mostrando-se qual mero espectador de reality show, como qualquer sub-plebeu. Enfim, o episódio serve para fazer engolir a patetice monárquica.

A segunda é mais actual, pois isto mostra bem o ambiente e a injusteza (e injustiça) do execrável ambiente que vem acontecendo. Um tipo é jovem e lê, por exemplo, uns contos do Tennessee Williams e, apesar de tender para outro lado, acha-os o máximo. Como contos, acima de tudo, mas também como liberdade. Depois envelhece e vê este pérfido retrocesso, como esta horrível coisa que andam a fazer ao Spacey - despedido e até o apagam de filmes, pura censura diante do silêncio da dita "esquerda europeia", sempre tão atenta às censuras e perversões de Hollywood. É de lembrar, isto é um ambiente criado pelo fundamentalismo "genderista" / "identitarista". Em última análise é autofágico (pois cairá em cima dos seus mais acérrimos defensores, vituperando comportamentos ditos "alternativos).  Pois, de facto, a única coisa de que Spacey é acusado é de ser "promíscuo" (palavra que é um programa político, moralista). Foi moral e profissionalmente linchado por razões políticas - por não se ter assumido como homossexual, e como tal ser uma "fraude", disse o primeiro delator. Ou seja, por não integrar as fileiras do movimento político "gay". Nisso acusado de violências morais e físicas, e até pedofilia (a monstruosidade dos nossos dias). Mas de facto o gajo não é mais do que um atrevido, tanto apalpa o tal "príncipe" como diz ao jovem no bar "vamos lá ...". Não assenta o seu (in)comportamento no poder que tem, mas sim no risco (deve ser uma personagem ...). Não é que eu esteja a secundar a abordagem (eu, a quem até o canto do olho se engasga, tímido e corado, quando passa alguma senhora mais apresentável). Mas isto não tem nada de violento ("é a vida", como se diz em inglês) e está provocar a sua lapidação. Pelos radicais homossexuais (em formato autofágico, e nem parece estarem a compreendê-lo). E pelos moralistas mais conservadores. E, apanhando a crista da onda, como se na praia da Nazaré, pelas mais reaccionárias das militantes do "género", excitadas em versão de mera tradução heterossexual deste fascismo, que tudo quer transformar em "assédio". Mas, para além disto tudo, fica o fundamental - isto do sacaninha do Spacey ir lá apalpar o decerto que cagão do pseudo-príncipe. Yes!

Na morte de Jerry Lewis

Pedro Correia, 20.08.17

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Certos actores são inimitáveis: Jerry Lewis era um deles. Vi-o, como qualquer de nós, em dezenas de filmes. Mas também o vi uma vez em palco, já ele andava nos 70 anos. Ninguém diria que tinha essa idade: cantava, dançava, cabriolava com uma energia inesgotável no musical Damn Yankees, de George Abbott, Douglass Wakllop (letra), Richard Adler e Jerry Ross (música), nas tábuas do Golden Gate Theater, em Market Street, no centro de São Francisco.
Ainda hesitei em aguardar por ele à saída, para lhe caçar um autógrafo, ao princípio dessa noite de Setembro de 1996: afinal, Jerry Lewis foi um dos ídolos da minha infância.
 
Mal surgia no ecrã, despertava um festival de gargalhadas nas suas comédias de início de carreira em parceria com Dean Martin. O último filme que rodaram juntos – Pintores e Raparigas, de Frank Tashlin, película de 1955, o mesmo ano em que Damn Yankees estreou na Broadway – é uma obra-prima do género, com a vantagem acrescida de incluir uma esplendorosa Shirley MacLaine, então a dar os primeiros passos no cinema.
Dez anos depois, sempre em registo de comédia, o actor nascido com o nome de Joseph Levitch a 16 de Março de 1926, em Newark, Nova Jérsia, protagonizou um dos raros filmes que me fizeram rir até às lágrimas: Boeing, Boeing, hilariante longa-metragem sobre troca de identidades realizada por John Rich em que Jerry se revelava no auge das suas magníficas capacidades como comediante.
Mas talvez o seu melhor filme tenha sido afinal um drama: O Rei da Comédia, de Martin Scorsese (1983), ao lado de Robert de Niro. A Academia de Hollywood podia e devia ter-lhe dado um Óscar por esse trabalho que desmontava com implacável lucidez os frágeis mecanismos do sucesso televisivo. Nada feito: os académicos costumam torcer o nariz a actores oriundos do reino da comédia, esse género que teimam em considerar menor. Pelo mesmíssimo motivo, nem um gigante como Chaplin conseguiu uma estatueta com clássicos como Luzes da Cidade ou O Grande Ditador.
 
Naquele dia, acabei por trocar o autógrafo de Jerry Lewis pelo de Suzanne Vega, que actuava a curta distância, na Virgin, também em Market Street. Improvisando um recital com uma simples viola na mão e um ar doce, quase tímido, como se pedisse desculpa pela súbita fama de que gozava.
Confesso: gosto de ver o meu nome escrito por ela na dedicatória que me deixou no disco Nine Objects of Desire, que tem uma canção deliciosa: World Before Columbus, com uma letra que rapidamente memorizei: "If your love were taken from me / Every color would be black and white / It would be as flat as the world before Columbus / That's the day that I lose half my sight // If your life were taken from me/ All the trees would freeze in this cold ground / It would be as cruel as the world before Columbus / Sail to the edge and I'd be there looking down."
 
Mas ainda hoje me arrependo de não ter esperado antes por Jerry Lewis à porta dos actores no Golden Gate.
 
Texto reeditado em homenagem a Jerry Lewis, hoje falecido aos 91 anos

Groucho: o marxismo resiste

Pedro Correia, 19.08.17

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Groucho Marx morreu faz hoje 40 anos. Ninguém diria: o grande actor norte-americano (1890-1977) parece mais vivo que nunca. Não apenas nos seus filmes, alguns deles geniais (Os Grandes Aldrabões, Uma Noite na Ópera, Um Dia nas Corridas), mas na própria linguagem do dia-a-dia, impregnada de citações dele. Tão ou mais frequentes do que as do outro Marx, o Karl.

Todos teremos as nossas frases favoritas de Groucho. Deixo aqui as minhas dez, com a minha vénia à memória deste inconfundível protagonista da comédia cinematográfica que tantas gargalhadas me arrancou - e arranca ainda, pois revejo sempre os seus filmes como se fosse a primeira vez.

 

«Estes são os meus princípios. Se não gostarem deles, tenho outros.»

«Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio.»

«O que quer que seja, estou contra.»

«A política é a arte de procurar problemas, encontrá-los em toda a parte, diagnosticá-los de forma incorrecta e aplicar-lhes a terapia errada.»

«Ele pode parecer um idiota e falar como um idiota, mas não te iludas: ele é mesmo um idiota.»

«Só um homem em mil lidera outros homens. Os restantes 999 vão atrás de mulheres.»

«O problema de não se fazer nada é que nunca sabemos quando se acaba.»

«A televisão é muito educativa: sempre que alguém a liga, saio da sala e vou ler um livro.»

«Nunca me esqueço de uma cara, mas no seu caso abrirei uma excepção com todo o gosto.»

«Se não te estás a divertir é porque estás a fazer alguma coisa errada.»

 

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 Groucho Marx (1890-1977)

Os patriarcas (6)

Pedro Correia, 01.03.17

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 Rui de Carvalho como protagonista da peça O Santo e a Porca (1971)

 

Lembro-me quando o vi pela primeira vez: num folhetim televisivo, antepassado das telenovelas, exibido pela RTP no final da década de 60. Chamava-se Gente Nova, ele era o pai. O filho era o António Feio, que todo o País conhecia então por Luisinho, o nome da personagem.

Fixei-lhe o nome: Rui de Carvalho. Um senhor de voz pausada e dicção perfeita. Dois ou três anos depois, era eu ainda miúdo, vi-o ao vivo no já desaparecido Teatro Laura Alves, na baixa lisboeta. Interpretava uma peça teatral intitulada O Santo e a Porca, do dramaturgo brasileiro Ariano Suassuna.

Nunca esqueci a intensidade e a autenticidade daquele desempenho, marcas de um grande actor nos mais diversos registos – do drama à comédia, dos textos clássicos aos contemporâneos. Interpretando Molière, Shakespeare, Tennessee Williams, Bernard Shaw, Anton Tchekov, D. Francisco Manuel de Melo, Eça de Queirós, Thomas Bernhard, Friedrich Durrenmat, Natália Correa e José Cardoso Pires - alguns entre muitos nomes ilustres da literatura de todos os tempos.

 

Acompanhei, como tantos de nós, o seu papel de protagonista, incarnando o empresário agrícola Gonçalo Marques Vila na Vila Faia – primeira telenovela da RTP, que em 1982 rompeu com merecido sucesso o monopólio brasileiro no género. Ele já tinha sido pioneiro como intérprete do Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente – primeira peça teatral transmitida pela televisão, a 11 de Março de 1957. Fui seguindo o seu percurso televisivo até ao recente Bem-Vindos a Beirais, também no canal público, em que compunha a figura de Viriato Montenegro, o aristocrata da aldeia.

Admirei-o em aparições no cinema, com destaque para a sua magnífica interpretação como médico do Instituto de Oncologia no filme Domingo à Tarde, realizado em 1966 por António de Macedo. Voltei a vê-lo no palco em 1998, desta vez no estúdio do Teatro Nacional, dando corpo a um inesquecível Rei Lear, marco cimeiro da arte da representação.

Conheci-o pessoalmente no final da década de 80, quando convivemos em amáveis cavaqueiras ao serão enquanto hóspedes da Pousada de Mong-Há, em Macau, numa temporada que ali passou. Acompanhado de D. Ruth, a mulher por quem se apaixonou quando ambos frequentavam o Conservatório de Lisboa, na década de 40, e com quem permaneceu casado até à morte dela, há dez anos. Formavam um daqueles raros casais em que a harmonia e a cumplicidade se detectam nos mais singelos gestos do quotidiano.

 

Parece estar connosco desde tempos imemoriais. Não admira: estreou-se no teatro profissional ainda adolescente, corria o ano de 1942, quando António Silva, Maria Matos, Beatriz Costa e Vasco Santana pontificavam nos palcos. Ele trabalhou com todos esses gigantes do teatro português. E foi mestre de três gerações de actores. Sempre sem pose de vedeta, com aquela humildade que caracteriza os verdadeiros artistas.

“Não sou um talento. Admito que tenho jeito e alguma experiência e isso dá a tal coisa parecida com talento. Mas talento genial tem a Eunice Muñoz. Eu tenho jeito. Isto é tudo efémero”, dizia numa entrevista concedida em 2010 ao Correio da Manhã.

Rui Alberto Rebelo Pires de Carvalho, que usa Ruy de Carvalho como nome artístico, é um dos escassos compatriotas que gozam do estatuto de unanimidade nacional. Merece-o. Fez por isso com muito trabalho, imensa perseverança e fervorosa dedicação ao ofício que escolheu. Sem nunca fazer batota, como todos lhe reconhecemos. Na vida do palco e no palco da vida.

 

Rui de Carvalho, nascido a 1 de Março de 1927, festeja hoje 90 anos.

Kirk Douglas: e vão cem

Pedro Correia, 09.12.16

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Conheço poucos actores que tenham protagonizado tantas  obras-primas dos mais variados géneros - do épico ao negro, da comédia ao drama, do western ao filme de aventuras.

Na tela foi Van Gogh, Ulisses, Doc Holliday, Ned Land, o general Patton. Entrou num dos melhores noirs de sempre (O Arrependido, 1947), na mais genial sátira do jornalismo (O Grande Carnaval, 1951), numa assombrosa viagem aos bastidores de Hollywood (Cativos do Mal, 1952), numa fabulosa película anti-guerra (Horizontes de Glória, 1957).

Filmou com quase todos os grandes mestres - Vincente Minnelli, Billy Wilder, Elia Kazan, John Huston, Robert Aldrich, Stanley Kubrick, William Wyler, John Sturges, Henry Hathaway, Anthony Mann, Joseph L. Mankiewicz, King Vidor, Stanley Donen, Otto Preminger.

Foi também um homem sem medo, na vida como nos filmes: rompeu com a lista negra de Hollywood que marginalizava profissionais talentosos por motivos políticos, contratando o proscrito Dalton Trumbo como argumentista de Spartacus, longa-metragem que interpretou e produziu em 1960.

Kirk Douglas, lenda viva do cinema e nosso colega da blogosfera, festeja hoje cem anos: tantas décadas depois, ainda nos concede o privilégio de permanecer connosco. Atento espectador entre milhões, daqui lhe presto uma reconhecida e grata homenagem.

 

Leitura complementar:

Kirk Douglas at 100: a one-man Hollywood Mount Rushmore, no Guardian.

Terapia

Francisca Prieto, 15.02.16

Apesar de não costumar assistir a ficção portuguesa, comecei a ver na diagonal a Terapia, na RTP1, por ser amiga de uma das actrizes. Três episódios mais tarde, ainda nem se vislumbrava no ecrã um cabelo da tal amiga, e já estava rendida à série. Ao invés do registo noveleiro a que a televisão portuguesa nos tem habituado, em Terapia assistimos a um registo muito próximo do universo cinematográfico. Com a particularidade de ser um formato que exige excelência do trabalho dos actores, porque é disso que se trata: de dissecar a alma humana até ao seu fio mais descarnado. E ninguém aguentaria assistir a minutos sem fim de texto, em grande plano, se este não fosse muito bem interpretado.

No primeiro episódio, a Soraia Chaves aguenta-se bem, mas num papel ingrato: o de mulher destrambelhada que se faz valer pela sedução (já a tínhamos visto fazer isto, e bem, pelo que não nos caem os queixos).

É no segundo episódio que nos rendemos com um Alex interpretado pelo Nuno Lopes, que nos diverte, ao mesmo tempo que nos esmurra o estômago. E ao longo de todas as terças feiras, a personagem vai ganhando cada vez mais corpo, ao ponto de a dissociarmos do actor. Tão bom, mas tão bom, que é imperdível.

Depois, quando liguei a televisão na primeira quarta feira da série, dei com uma adolescente chamada Catarina Rebelo que me fez entregar os pontos. O raio da miúda é tão bem malcriada que estamos sempre à espera de ver quando é que o Virgílio Castelo perde a paciência.

A minha amiga aparece mais à frente, como mulher do Virgílio Castelo, o psiquiatra de serviço. Primeiro de mansinho, em cenas curtas, mas depois, às sextas feiras, com mais protagonismo, durante as sessões de terapia de casal com a Ana Zannati (impecavelmente igual a si própria, num desempenho tranquilíssimo).

Ora eu estava habituada a ver esta minha amiga noutro tipo de registo. Concretamente no de Manoel de Oliveira, onde fazia de senhora do Douro, ou descia dos céus feita ninfa no meio da guerra colonial, ou então era uma freira, ou até uma rapariga pobre do Raul Brandão, a falar francês pelo filme fora. Sempre tudo muito devagarinho e com olhares enigmáticos.

Sempre bem, sempre em obras de eleição, mas num universo etéreo, como se fosse fora do mundo.

Era-me muito difícil avaliar o seu trabalho de actriz porque ficava invariavelmente desconcertada. Tinha sempre a sensação de que aquela senhora era uma espécie de sósia da minha amiga a quem digo montes de disparates sem qualquer cerimónia, e isto, de alguma maneira, não fazia sentido.
Na sexta feira passada quando a vi, na Terapia, fiquei banzada. Provavelmente porque a personagem se move num universo que me é mais próximo, pela primeira vez consegui olhar para a Leonor actriz sem que fosse através de uma cortina de organza. Deparei-me com uma força extraordinária, que se movimenta pelo texto fora (e que difícil que era o raio do texto e que violenta era a tensão do momento cénico) e que derruba tudo, com uma fluidez irrepreensível e uma linguagem corporal de se lhe tirar o chapéu.

Parabéns à direcção de actores, parabéns aos actores e, se me permitem, uma grande salva de palmas à minha amiga de quem tanto me orgulho.

 

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Os filmes da minha vida (48)

Pedro Correia, 26.04.15

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Kay Adams (Diane Keaton) e Michael Corleone (Al Pacino) em O Padrinho (1972)

 

O MITO É O NADA QUE É TUDO:

NOS 75 ANOS DE AL PACINO

É uma das cenas mais inesquecíveis do cinema - do tempo em que o cinema ainda não havia sido destronado, como forma de expressão artística, pela excelente televisão dos nossos dias.

Ele e ela estão sentados a uma mesa. Ele acaba de vir da guerra, aparece de uniforme a conferir-lhe dimensão de herói: é Michael Corleone (Al Pacino). Ela, naquela hora irrepetível do esplendor na relva, é a noiva dele, Kay Adams (Diane Keaton).

Percebemos que o diálogo que travam terá consequências irreparáveis na vida de ambos.

 

Ela, com o sexto sentido a alertá-la para um final infeliz, despeja-lhe todo um cardápio de dúvidas - visando-o menos a ele do que ao poderoso clã familiar no qual está prestes a entrar como esposa e nora, consciente de que dará um passo do qual talvez venha a arrepender-se para sempre.

Ele, com um sopro de inocência insuflado no olhar, procura atenuar-lhe os receios com todos os recursos estilísticos de que a eloquência masculina é capaz perante uma mulher apaixonada. Assegura-lhe ser diferente dos restantes Corleones. Ilude-a ao proclamar que não foi em vão que combateu pela pátria, como o mais decente dos cidadãos faria. Faz-lhe promessas que não tardarão a ser quebradas, cumprindo um ritual atávico da velha Sicília que lhe sulca os genes.

O destino irá desmentir-lhe as palavras com precário prazo de validade, sinceras apenas no momento preciso em que são pronunciadas. Mas Kay acredita nelas. E todos nós, que assistimos àquele diálogo como testemunhas privilegiadas, acreditamos igualmente nelas. Porque a mentira em arte é verdade também.

Haja o que houver, aconteça o que acontecer, jamais esqueceremos aquele último lampejo de inocência no olhar de Michael Corleone no primeiro tomo da trilogia d' O Padrinho, realizada por Francis Ford Coppola. Um filme que vale por uma sinfonia de Beethoven, uma partitura de Brahms, um drama de Ibsen, uma tela de Goya. Do tempo em que o cinema não se envergonhava de ser arte.

 

Al Pacino é um dos raros actores que conferem genialidade interpretativa a um simples olhar. Já era assim em 1972, quando pela primeira vez deu vida e voz à figura de Michael Corleone. Sem esgares, sem truques histriónicos, sem gestos desmesurados. Aproveitando cada pausa, cada silêncio, cada momento aparentemente morto para melhor compor a personagem. Como é próprio de um grande intérprete.

E continua assim aos 75 anos, cumpridos ontem. A trabalhar. Porque um verdadeiro actor nunca se reforma. Porque um verdadeiro actor sabe melhor que ninguém como são autênticos, na pele e na carne, aqueles imortais versos de Pessoa: "O mito é o nada que é tudo".

José Wilker (1947-2014)

Teresa Ribeiro, 05.04.14

Tinha cara de safado e voz a condizer. A Portugal chegou em 1977 na pele do Dr. Mundinho, o galã da telenovela Gabriela, e foi um sucesso instantâneo. Vimo-lo depois em inúmeras novelas e a fazer no cinema um dos maridos de Dona Flor. Foi um dos melhores actores da sua geração e um dos brasileiros mais sexy do seu tempo. Hoje, aos 66 anos, ganhou asas. Se é verdade aquilo que foi constando por portas e travessas, vai de papo cheio. Ainda bem, assim só se perderam as que caíram no chão.