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Delito de Opinião

O Affaire Coimbra (2)

jpt, 16.04.23

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(Após este postal e estoutro)
 
De Maputo continuam-me a chegar novas sobre o "affaire Coimbra". Agora mesmo um manifesto assinado por um grande rol de intelectuais (cerca de 260 pessoas) - alguns dos quais já li para grande aprendizagem minha. O texto é muito justo, convocando Estado e sociedade para enfrentar problemas graves e sempre descurados.
 
Mas é também interessante devido a outra dimensão do seu conteúdo. Pois é um enorme ditirambo contra o "Patriarca Genial" (assim nomeado) mas preservando-lhe léxico (e semântica), reclamando a continuidade de um legado teórico e de militância (mescla dita "activismo", no jargão de agora). E isso é interessante pois será o enterro definitivo nas ciências sociais do país do tópico da "reflexividade", essa crença (até autofágica) de que as condições pessoais e sociais dos investigadores infestam, e até determinam, o discurso analítico. Ora se neste caso é exactamente o contrário (pelo que centenas de intelectuais o assinam) então sintam-se os "mais-novos" livres dessa "maldição"... E os mais-velhos também, mesmo que "tóxicos", "brancos" ou poluídos por outras malfeitorias desqualificativas do mesmo teor.
 
Como está legitimada (e ainda bem) a "autoetnografia", deixo-me perorar nesse rumo. 18 anos em Moçambique, 1 na Bélgica. Outros 6 de facto confinado nos Olivais Sul e na margem Norte do Sado. Dou-me cada vez com menos gente, tanto devido à idade como, decerto, porque vários se terão cansado da minha vacuidade monótona (há quem lhe chame mau-feitio mas não é verdade). Ainda assim, tão afastado do rossio, fui v/lendo o ror de mesuras, de palcos atribuídos (e não só nos jornais mais ligados ao eixo PS-BE), de "respeitinho é muito bonito". E acima de tudo de silêncios críticos - e nisso não incluo polémicas de jornais, que são coisas de outra natureza. É evidente que não leio tudo mas neste quarto de século li 2 ou 3 dos melhores antropólogos nacionais cutucarem, um pouco a latere, as formulações do "Patriarca Genial". E noto com prazer 2 franceses que foram o suficientemente críticos, mas apenas centrados nas suas formulações sobre o percurso histórico português. O resto, repito, mesuras - em última análise "ele é genial mas tem destas coisas" como salvaguarda agora a primeira página do jornal "Público"... E silêncio. E agora mesmo os seus subscritores (até gente que o ombreou no patético gemido de que estava a ser criminalizado devido ao efectivo apoio à Rússia - tropelia a que dediquei um texto de blog que me saiu bem, dinamizado pelo nojo para com aqueles putinescos, o "Da Empáfia Hipócrita") acordam e vêm agregar-se na luta contra... "o patriarcado e o colonialismo". É evidente que a gente pode andar completamente distraída no mundo - mas então não se intitula (e assina) como "grande repórter" (como aqueloutra) ou "investigadora (de ciências sociais)".
 
Cerca de 2005 em Maputo um amigo tinha sido ofertado com dois exemplares de um livro com um bem esgalhado título kantiano. E ofereceu-me um. Era "A Crítica da Razão Indolente". Encetei-o com o tratamento que me é habitual, ler a introdução e, quando há, a conclusão. Fiquei estupefacto. Decerto que devido às minhas limitações intelectuais, porventura por ser também um "positivista" (e "branco" e "tóxico", mas na época ainda não era tão grave sê-lo). Na modéstia do meu calibre fiz aquilo que julgo apropriado a esta condição: escrevi um e-mail a um punhado de colegas que muito respeitava, perguntando-lhes "já leste o último livro do BSS?", com o intuito que algum(ns) me pudesse(m) iluminar, esclarecer, fundamentar aquilo, que me parecera um devaneio ideológico em formato de calhamaço. Uns não me responderam, outros não tinham lido. Mas um, antropólogo a que voto grande respeito intelectual (e muitas leituras), respondeu-me com um evidente carinho de mais-velho, num apenas: "não te metas com o Boaventura". Assim fiz.
 
Há algum manifesto que eu possa agora assinar?

Uma maionese

jpt, 14.04.23

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Sei que os meus amigos têm acompanhado com interesse os meus postais sobre temas gastronómicos. [Adenda para o Delito de Opinião: postais que coloco principalmente no meu mural de Facebook e alguns também no meu blog individual]. Assim sendo aqui regresso a essa matéria. Hoje com uma receita de maionese retórica, bem do agrado dos comensais... "alternativos".

"Os Princípios e as Práticas"

... comecei a analisar a crescente prevalência e maior visibilidade do poder cru em relação ao poder cozido [eu, jpt, detesto esses ditos "emoji" e por isso prefiro assinalar esta grosseira "apropriação cultural" da dicotomia do grande Lévi-Strauss com uns valentes !!!] tendo-me centrado numa das manifestações deste fenómeno, da vitória sobre o adversário ao extermínio do inimigo. Continuo agora a análise, centrando-me na segunda manifestação, a híper-discrepância (sic) entre princípios e práticas.

Uma Híper-Discrepância (sic)

A discrepância entre princípios e práticas é talvez a maior especificidade da modernidade ocidental. Qualquer que seja o tipo de relações de poder (capitalismo, colonialismo e patriarcado) e os campos do seu exercício (político, jurídico, económico, social, religioso, cultural, interpessoal), a proclamação dos princípios e dos valores universais tende a estar em contradição com as práticas concretas do exercício do poder por parte de quem o detém. O que neste domínio é ainda mais específico da modernidade ocidental é o facto de essa contradição passar despercebida na opinião pública e ser mesmo considerada como não existente.  (...)

Este mecanismo de supressão das contradições reside no que designo por linha abissal, uma linha radical que desde o século XVI divide a humanidade em dois grupos: os plenamente humanos e os sub-humanos, sendo estes últimos o conjunto dos corpos colonizados, racializados e sexualizados. 

Se é verdade que a contradição entre princípios e práticas sempre existiu, ela é hoje mais evidente do que nunca. (...)"

Boaventura Sousa Santos, "Os princípios e as práticas", Jornal de Letras, 17 de Novembro de 2021, p. 30.

O Affaire Coimbra

jpt, 13.04.23

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O "affaire Coimbra" já se disseminou na imprensa e no binómio FB-Twitter. Uma colega pela qual tenho simpatia e (muito) respeito - tanto que até ambiciono que tal seja recíproco - recomendara-me há dias: "não te metas nesse lamaçal". Mas a vertigem foi mais forte do que eu próprio, e deixei-me botar um texto - ao dia ainda um bocado elíptico - encimado pela imagem do grande Jason Robards, dando conta da minha diversão... Como nesse postal assumo "sou muito pior do que gostaria", e daí o meu ricto bem-disposto. As razões para tal eram pessoais mas agora, dada a panóplia de reacções, são mais diversificadas, assim mais... divertidas.

Enfrentam (a instituição coimbrã e alguns dos seus funcionários) um texto carregado de insinuações. Talvez sejam fundamentadas, talvez não. Mas são máculas prejudiciais às respectivas reputações - e por isso prefiro que o (decerto enorme) desconforto que agora sentem se deva a acusações infundamentadas, pois mais me deliciará que sintam o ferrete da injustiça e não o chamboco punitivo. Pois é gente que não se coíbe de fazer o mesmo (ou compactuar - como referi no tal postal anterior), insinuações - até se perversas e descabidas -, seja para se engrandecerem ou justificarem ou, pura e simplesmente, por desfastio. "Quem semeia ventos colhe tempestades", anda dito pela Bíblia ou outro qualquer clássico, "cá se fazem, cá se pagam" traduz o povo, esse que tudo sabe...

Há um quarto de século os meus amigos Gil e Cristina casaram. Ainda que convidado não fui à boda, tinha seguido há pouco para Maputo. Nesse sábado festivo, durante a tarde, recebi um telefonema de um grupo de velhos amigos, ali congregados - e já um pouco "acelerados", como era usual nessas ocasiões. A pergunta inicial, em verdadeiro coro, foi "Zezé, o que é que tu fizeste ao Boaventura?" e isto vindo de gente que nada tinha a ver com as ciências sociais nem nunca o lera... Pois na véspera o ilustre alterglobalista publicara uma página inteira na "Visão" a pontapear a minha instituição em Moçambique e a mim próprio - sem ter qualquer razão, como bem o sabia. Dir-se-á que ter uma página de revista com um célebre académico a dizer-me incompetente e relapso é menos grave do que levar no ocaso da carreira com uma onda de apupos por acusações de más práticas relacionais. Garanto que para um puto de 32 anos que se despediu para seguir para um bom emprego no estrangeiro tal não será evidente, e tudo aquilo se me afigurou letal. Daí a rajada de palavrões com que respondi aos meus amigos. Os quais logo terão seguido para mais umas rodadas e, depois, para alongadas danças. E eu terei ido até ao "Piripiri" ou à então "Bússola" beber um uísque e resmungar a vida e pensar como iria regressar à Pátria (António Hespanha tinha-me dito que eu poderia sempre voltar caso corresse mal... mas seria um grande "flop" pessoal). O texto doutoral, um chorrilho auto-laudatório e de imprecações descabidas, em particular sobre o meu chefe de então e sobre mim, chamava-se, nunca o esqueci, "Diplomortos e Etnocêntricos" - "etnocêntrico!?" resmungava eu, antropólogo. Sim, sei que todos somos etnocêntricos, condição inesgotável mas burilável - mas ser assim dito por quem acredita em "lusofonias" e "colonialismo de cama"? E terei bebido mais um uísque debruçado sobre essa temática... Depois disso nem um pedido de desculpa privado. Nem um ressarcir público.

Leio agora as reacções dos "insinuados" coimbrões - um joga a "carta racial", dizendo-se racializado vitimizado. O outro, veterano, conclui que a difamação que sofre se deve ao "neoliberalismo" que polui as solidariedades interpessoais. Isto é engraçado pois dá para perceber como estes "trunfos" são constantemente jogados, a despropósito, e vão sendo aceites pelos "bem-pensantes". Voltando atrás, àqueles tempos, presumo que tenha sido o "neoliberalismo" que levou Sousa Santos a usar as teclas viperinas contra um grupo de funcionários que, com todos os defeitos que poderiam ter, apenas não prejudicaram outros funcionários em deslocação de trabalho para o beneficiar a ele e aos seus coadjuvantes, fazendo-o poupar uns tantos dólares em quartos de hotel (despesas de projecto de investigação, que não do bolso pessoal, entenda-se bem...).

Mas voltando ao agora fervilhante e ao coro dos que assumem como verídicas as insinuações - acabo de ler a partilha de um texto de alguém que desconheço que, enquanto convoca Bourdieu (é alguém das disciplinas), considera que quem põe em dúvida o insinuado no texto é "positivista", saudoso da era em que "mandavam as estatísticas e os homens" (não se refere aos "brancos" mas isso deve ter sido esquecimento) e avesso às "prespectivas (sic, apesar do Bourdieu) feministas". Em mural muito respeitável leio um lamento que "os homens de esquerda" tenham estas práticas - deixando implícito que os homens de centro ou direita terão, por defeito, tais tendências. E as deixarão correr, até desabridas. Entretanto, à "direita" e ao "centro" é um festim, por evidentes razões ideológicas, tendo-se no entanto a infeliz tendência redutora para associar BSS ao BE - de facto esquecem-se que o académico divergiu e tornou-se também notório apoiante e até mandatário do MES, perdão, do LIVRE. E à "esquerda" afiam-se as cimitarras, impiedosas (aliás, lendo as redes sociais mais parece um confronto entre grupelhos m-l, a la PREC).

Há (mais) uma evidência que me faz sorrir. É que não vejo (se é que há) indivíduos a convocarem o direito à presunção de inocência. Eu continuo na minha, nada me obriga a seguir esse princípio. Aliás, a ética convoca-me (e talvez até a lei) a prescindir dele - morto e enterrado o malvado ditado "entre marido e mulher não se mete a colher" se eu vir constantes equimoses na vizinha devo seguir a presunção de culpabilidade do seu marido e avisar as autoridades. Não era assim quando eu era mais novo... A presunção da inocência é um princípio para as instituições, seu funcionamento, salvaguardando direitos fundamentais dos acusados. Ora essa destrinça, que deveria ser evidente, é muito esquecida.

E por isso me surpreende (minto, não me surpreende, apenas noto) a desfaçatez de vários locutores (académicos ou outros) que estão agora a saltar em cima dos "presumíveis inocentes", aludidos num artigo que é... muito fluido, de facto não passando de um diz-que-diz, por mais cativante que seja. Quando esses mesmos justiceiros passaram anos a defender - em jornais, rádio, televisão, blogs (os "jugulares" por exemplo) e mesmo inserindo-se em candidaturas partidárias - Sócrates. Sempre recusando a pertinência de "alusões" - imensamente documentadas, já agora -, sempre clamando, até mesmo após o estertor da proto-candidatura presidencial do prócere socialista, o direito à presunção da inocência do consabido presumível réu.

Enfim, para estes socratistas (socialistas, bloquistas, livristas) é mais imediata e necessária a punição sobre uns quaisquer que façam assédio sexual e moral do que sobre uns tipos que rebentem o país.

Deve ser isto o conteúdo profundo destas posições avessas ao "positivismo" e concordantes com as tais "prespectivas (sic) feministas". Salvem-se o feminismo e as ciências sociais de tamanhas atoardas e seus locutores.

Em suma, sou mesmo muito pior do que gostaria de ser - mas isso já é consabido pelos meus amigos, os visitantes do blog e os meus amigos-FB.

A academia

Alexandre Guerra, 08.05.19

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"A Escola de Atenas", Rafael, 1509-11, Palácio Apostólico, Vaticano

Numa das galerias adjacentes à Capela Sistina, no Palácio Apostólico do Vaticano, encontra-se uma das mais famosas pinturas renascentistas: “A Escola de Atenas”. Há quem diga que é a grande obra-prima de Rafael por representar tão bem a essência do Renascimento, uma época de luz, conhecimento e inovação. As figuras que supostamente lá estão representavam à época tudo o que de virtuoso tinha a Humanidade. Filósofos, matemáticos, historiadores, políticos, religiosos, militares, engenheiros, artistas, todos eles na vanguarda das suas artes e ofícios.

Poderemos considerar que o fresco de Rafael não simbolizará tanto o conhecimento em si, mas antes o processo para a produção desse mesmo conhecimento. Mais do que um espaço físico, a “Escola de Atenas” pode ser vista como um conceito, como um paradigma para a construção de saber. Ao estar a representar academia de Atenas, Rafael está a enfatizar a importância da troca de conhecimento e de experiências entre pessoas das mais variadas áreas do saber e da vida, do intelectual ao artístico, do filósofo ao político, do artífice ao militar. No seu âmago, trata-se de um princípio inerente à essência da “Escola de Platão”.

Hoje, tal como dantes, a academia é (ou deve ser) um lugar privilegiado de produção de conhecimento e de debate. Deve ser um fórum de vanguarda onde se (re)formulam doutrinas. As suas gentes, professores e alunos, devem ter liberdade de pensamento, sem dogmas e preconceitos, independentemente das suas posições políticas e convicções ideológicas. A academia deve ser um espaço de propagação de ideias e tendências, onde o espírito de arrojo deve estar aliado à humildade perante o saber dos outros.

Para a academia cumprir a sua função de excelência não pode ficar fechada sobre si própria, estanque ao mundo exterior, correndo o risco de asfixiar a sua criatividade intelectual. Universidades e centros de saber só se realizam na sua missão quando se enquadram e servem a pólis, ao procurarem dar respostas inovadoras aos desafios que se lhe impõe. Professores e alunos aprendem e ensinam-se mutuamente, cumprindo cada um o seu papel com o talento possível. Mas essa relação não deve ficar por aqui, nem se deve perpetuar no tempo circunscrita à mesma academia, anos e anos a fio, grau a grau, até se chegar ao topo da carreira, correndo-se o risco dos sistemas universitários ficarem resumidos a um micro-cosmos, dominado por alinhamentos ideológicos, partidários ou de interesses de proximidade.

Esta é uma realidade que se verifica nalguns polos universitários em Portugal, onde as elites de algumas destas universidades se perpetuam à frente dos mecanismos que, supostamente, originam a produção de saber e conhecimento. Facilmente se identifica no seio destes meios académicos correntes dominantes que partilham determinadas afinidades, numa lógica tribal fechada, de quase “endogamia académica”, em que pouco ou nada se expõem ao mérito e concorrência externas. Consequência: a academia fica desvirtuada no seu propósito, deixando de dar lugar aos melhores e às ideias de vanguarda, para servir de albergue aos “académicos da casa”, que sempre viveram para esse (e naquele) sistema.

Ainda recentemente, o Público abordava precisamente o tema da “endogamia académica” e concluía que este problema persiste na academia portuguesa. Aliás, aquilo que o jornal descreve como “situações de imobilidade profissional”, recorrendo ao relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) do ano lectivo de 2015-2016 sobre endogamia académica, manifestam-se no facto de cerca de 70% dos docentes das universidades públicas portuguesas se doutorarem na mesma instituição onde leccionam.

Por exemplo, nas áreas das Ciências Sociais (Relações Internacionais e Ciência Política) e Comunicação, aquelas que o autor destas linhas melhor conhece, é muito comum ver académicos e investigadores a desenvolverem uma carreira de 10, 15, 20 anos numa mesma instituição, sem qualquer contacto com outras realidades académicas, sociais e profissionais. É certo que muitos destes académicos detém um determinado grau de conhecimento teórico que não pode ser descurado, mas fica-se por aqui o seu contributo em termos de produção de novo saber e isso explica-se, em parte, pela ausência de outras componentes que vão além da universidade.

No artigo do Público aqui referido, Pedro Santa-Clara, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, salientava precisamente essa consequência, ou seja, “o facto de as pessoas não terem mundo, não terem alternativas e terem crescido sempre no mesmo sistema”. Dizia ele que “o sistema torna-se impermeável à inovação e a novas ideias”.

Essa é uma das maiores críticas que se faz à academia portuguesa quando comparada com outros meios universitários, nomeadamente o anglo-saxónico. Nalgumas universidades nacionais existe um modelo instalado que privilegia, por um lado, um determinado conhecimento estático, e, por outro, determinadas figuras, algumas delas catapultadas para a condição de estrela através da sua mediatização. Mas, efectivamente, através de um olhar crítico e científico constata-se que a dimensão da sua obra é, por vezes, mediana, para não dizer medíocre. É um sistema que funciona como uma “bolha”, à imagem de outros sistemas da nossa sociedade, e que fomenta um “status quo” conservador, muitas vezes alimentado pela arrogância e falta de humildade.

Uma realidade que foi apontada no recente livro “Cientistas Portugueses”, do bioquímico e antigo jornalista David Marçal, no qual traça um retrato de quem faz investigação científica no país. Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o jornal Público fez a pré-publicação de um capítulo precisamente dedicado “aos cientistas que vivem fechados nessas bolhas”.

E neste capítulo lê-se o seguinte:

“Os investigadores Arcadi Navarro e Ana Rivero fizeram um grande estrondo em 2001 quando publicaram na prestigiada revista Nature uma carta que quantificava o fenómeno da contratação de professores universitários com base em critérios de proximidade social em vez de qualidade científica. A bem instalada lógica de que “mais vale bêbado conhecido do que alcoólico anónimo.”

Mais à frente, David Marçal escreve:

“Em Dezembro de 2006 entrevistei Arcadi Navarro (na altura tinha interrompido o meu doutoramento para participar no programa Cientistas na Redacção, integrado na secção de Ciência do PÚBLICO durante três meses). A entrevista foi a propósito de um debate sobre mobilidade e endogamia nas universidades portuguesas, que decorreu no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. […]Perguntei a Arcadi Navarro quais eram as consequências da endogamia nas universidades: ‘São horríveis. As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a universidade torna-se uma maneira de arranjar salários para os amigos’.”

Lê-se ainda:

“Damos um salto a Portugal, ao ano lectivo de 2015-2016. […]De acordo com os dados deste relatório da DGEEC, a Universidade de Coimbra é a campeã nacional da endogamia, com 80% de docentes doutorados na mesma instituição em que leccionam. Seguem-se a Universidade dos Açores e a Universidade de Lisboa (ambas com 74% de endogamia), a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (73%), a Universidade do Porto (72%), a Universidade de Aveiro (64%), a Universidade Nova de Lisboa (61%), a Universidade da Beira Interior (57%), o ISCTE (49%), a Universidade da Madeira (48%) e a Universidade do Algarve (40%). […] Globalmente, cerca de 70% dos professores das instituições de ensino superior em Portugal doutoraram-se na mesma faculdade onde estão empregados. Sete em cada dez vezes, um candidato interno ganha o concurso para a entrada no quadro. A menos que achemos que os candidatos vindos de fora são, por qualquer motivo, de facto muito maus, temos que presumir que há uma viciação sistemática dos concursos a favor dos candidatos internos.”

Toda esta informação vem apenas encorpar a noção pouco vanguardista que muitos têm da academia portuguesa. Há excepções? Claro que sim. Há exemplos de produção de conhecimento inovador? Sem dúvida. Temos académicos e investigadores de excelência? Seguramente. O problema é que, no geral, as grandes universidades portuguesas continuam a ser um reflexo da sociedade, não sendo de estranhar que se encontrem nelas os mesmos males e “jogos de interesses” que assolam outros sectores. É caso para dizer que a academia portuguesa está muito afastada do espírito virtuoso representado na “A Escola de Atenas” de Rafael, onde os melhores dos melhores se reuniam na produção de saber de vanguarda.