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Delito de Opinião

Entretanto, no mundo

Cristina Torrão, 11.10.24

Celibato - culpado, ou não?

Cristina Torrão, 12.03.23

Mal rebentou o escândalo da Igreja Católica, em relação aos abusos sexuais de crianças e jovens, logo se apontou o celibato como a causa de todo o mal. Considerei um disparate. O celibato, por si só, não faz de ninguém pedófilo. Há muitos pedófilos casados, com filhos, que não deixam de abusar de crianças, a maior parte das vezes, usando as que têm em casa.

No entanto, depois de alguma reflexão, considero de facto ser indirectamente responsável. A instituição Igreja Católica sempre foi apetecível para homens que não tinham tendências sexuais consideradas normais pela sociedade. Antigamente, havia preconceito em relação a homens que não levavam uma vida como deles era esperado: andar atrás de mulheres, casar, ter filhos. Quantos não teriam decidido tornar-se padres, a fim de acabarem de ser assunto de falatório e, com sorte, poderem dar asas às suas preferências sexuais?

Este era igualmente o caso dos homossexuais, noutros tempos, metidos no mesmo saco das "taras pecaminosas". Felizmente, a homossexualidade deixou de ser crime (não sei se na maior parte, mas em muitos países), desde, claro, que seja praticada de livre vontade, entre adultos. Calculo, ou espero, que isto evite, hoje em dia, muitos homossexuais sem vocação de se fazerem padres. Mesmo protegidos pela "sua" Igreja, eles levavam uma vida clandestina, propensa a comportamentos menos desejáveis (como sempre acontece, quando nos empurram para a marginalidade).

Mas isso seria assunto para um outro postal. O que me levou a escrever este foram os predadores sexuais, que sempre existiram e ainda existem: pedófilos, violadores, etc. Para esses, a vida eclesiástica é ainda apetecível: sabem que podem dar largas às suas práticas e ficarem impunes. Por isso, apesar de não estar directamente relacionado com o celibato, está-o por vias travessas.

O celibato pode bem continuar a existir, mas devia ser voluntário.

 

Nota: sem querer menorizar a gravidade da pedofilia, não esqueçamos que muitos padres usam o seu poder de manipulação, criando dependência espiritual, para violar e abusar de mulheres adultas, freiras ou outras, o que também devia ser alvo de investigação. Quantos podres esconde ainda a Igreja?

 

Ironia infernal

João Campos, 13.02.23

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Isto aconteceu - acontece - no mesmo país que tem passado as últimas semanas a debater fervorosamente os apoios públicos a um evento da Igreja Católica intitulado "Jornadas Mundiais da Juventude." Não fosse a dimensão absurda da tragédia e a piada - desta nem os Monty Python se lembrariam - até se faria sozinha.

Se o deus cristão existisse, haveria decerto um círculo especial no inferno para estes padres, e para os bispos e cardeais que durante décadas tudo abafaram - com mais labaredas, mais espinhos, e mais demónios a atormentar. Não existindo, ou não devendo a sociedade aguardar por um qualquer castigo divino pelos crimes tão terrenos e tão rasteiros, resta esperar que este escancarar de portas ao horror eclesiástico sirva para a justiça actuar.

Eu também

Cristina Torrão, 17.05.21

«Quando tinha 12 anos fui assediada por um vizinho. Um homem com idade para ser meu avô dirigiu-me palavras obscenas, propostas porcas. Sem que me tivesse apercebido, a mulher desse homem também ouviu o seu assédio e confrontou-me dias depois, acusou-me de lhe provocar o marido, dirigiu-me palavras que uma mulher não deve ter para com uma menina. Dele tive medo, mas ela fez-me sentir culpada, suja. Uma mulher com idade para ser minha avó preferiu atacar-me, a mim, uma menina que nem era ainda uma mulher, que enfrentar a realidade de estar casada com um pedófilo, um predador».

«Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”».

«Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não».

«Na verdade, foi com a chegada das minhas filhas à adolescência que percebi a violência das situações por que passei. Reagi sempre com desprezo ou distância, soube defender-me, pelo que nunca me vi como uma vítima. Mas fui assediada várias vezes em contexto laboral. E não quero que as minhas filhas, ou qualquer mulher, ou qualquer homem, continuem a encarar essa situação como uma fatalidade».

«O café está vazio. Sou o único cliente. Atrás do balcão, um empregado, jovem, aproxima-se da colega que arruma as chávenas sobre a máquina do café e passa as costas da mão devagar pelo braço nu da empregada. Ela sobressalta-se, olha-o com medo e foge para o outro extremo do balcão sem dizer uma palavra. Ele vai atrás dela, a rir, divertido, com uma mão agarra-a pelo pulso e força a outra mão através das mãos da rapariga para lhe acariciar de novo o braço. A empregada treme de confusão, de medo e de raiva e sacode as mãos, impotente, com lágrimas nos olhos mas sem querer gritar para não fazer escândalo. Levanto-me da mesa e aproximo-me do balcão. O empregado sorri-me cúmplice, entre homens, sem largar a rapariga, pensando que eu quero apreciar mais de perto o espectáculo e continua a deslizar a mão pelo braço da rapariga. Quando lhe digo para parar, hesita, considera a hipótese de me confrontar e acaba por largar a colega murmurando qualquer coisa do género “Era uma brincadeira… Não estava a fazer nada…”».

«Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos».

«Tinha doze anos, vinha das aulas. Eram cerca das 18h 15m, mas era Inverno e já estava escuro. Abri a porta do prédio onde morava, uma porta de madeira, sem qualquer vidro. Portas destas eram mais ou menos comuns, nos anos 1970. Entrei e, quando já estava quase a fechar a porta, alguém a travou, do lado de fora. Pensei ser alguém a querer entrar no prédio por boas razões, deixei a porta aberta e dirigi-me às escadas. De repente, fui agarrada pelas costas. Totalmente confusa, dei conta de que estava a ser toda apalpada. Quis gritar e não consegui, assim como não consegui libertar-me. Senti um medo de morte, estava a entrar em pânico, quando fui largada. Senti a pessoa a afastar-se e olhei instintivamente para trás. Vi um rapaz com o sexo erecto fora das calças. Quando me viu a olhar para ele, apontou para o sexo. Subi as escadas a tremer (não havia elevador) e com o coração aos saltos, apesar de ele ter desaparecido. Não contei a ninguém, tive vergonha. E muito medo de que me culpassem - porque não fechaste a porta? Porque não gritaste? Porque não lhe deste um murro? etc., etc. Mas como pode uma miúda de doze anos estar preparada para um ataque destes?».

«Tinha 11 anos. Um velho vizinho do prédio "amigo" do meu pai, ouvia-me a entrar no elevador e como morava no andar de baixo, entrava lá dentro. Apalpava-me, um dia voltei-me e apertou-me o pescoço e ameaçou fazer mal aos meus pais».

Estes são relatos partilhados num grupo do Facebook. Um dos relatos é meu. As mulheres sentem-se encorajadas ao constatar que outras o fazem, surgem cada vez mais a dizerem «eu também». Há igualmente relatos de homens que assistiram a cenas de assédio e se revoltaram (como mostra o exemplo) e são muito bem-vindos. Os ataques, assédios e abusos acontecem em qualquer idade, mas escolhi propositadamente meninas, na sua maioria, para que todos se dêem conta, quão cedo nos mostram que são livres de nos intimidarem e usarem o nosso corpo. E com que impunidade o fazem.

Todas as mulheres já foram molestadas e assediadas, independentemente da maneira como se vestem, ou como se maquilham (ou não maquilham). Muitos homens até preferem as discretas e tímidas por serem mais susceptíveis de não reagir. As que dizem que não se importam, por ser “normal”, apenas recalcam o mal-estar e contribuem para a impunidade dos agressores. A maior falácia, na educação das meninas, é dizerem-lhes que nada de mal lhes acontece, se não usarem roupas provocantes e não derem nas vistas. Não digam isso às vossas filhas e netas! É mentira!

Muitas vezes me dizem estar a cumprir «agenda de esquerda», com textos deste tipo. Mas esta não é uma luta de esquerda, é uma luta de todos os lados. Pela mudança de mentalidades.

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Uma parte muito relevante da sociedade, talvez a maior parte, ainda não consegue compreender o que se passa verdadeiramente quando uma mulher se sente assediada ou à beira de um assédio num contexto laboral. Essa circunstância desrespeita o mais profundo da sua dignidade, põe em causa direitos fundamentais básicos e inibe o seu pleno desenvolvimento como pessoa.

 

Não se trata de direitos das mulheres, não são coisas do “mulherio”.

Trata-se de Direitos Humanos!

Porque silenciam as vítimas

Cristina Torrão, 29.08.20

Um padre brasileiro culpou a menina de dez anos, grávida de um tio, pelos abusos sexuais de que fora vítima desde os seis anos. O religioso escreveu em sua conta do Facebook que a criança “gosta de dar” e não é “inocente”, por ter aturado os abusos durante quatro anos.

Na verdade, muita gente culpa as vítimas de abusos sexuais precisamente por elas silenciarem o crime. Guardei um artigo publicado, no passado dia 31 de Maio, no Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, por ele se debruçar precisamente sobre esta problemática. E, por ser uma questão que me revolta, devido à injustiça a ela associada, resolvi traduzi-lo. Foi escrito em colaboração com uma psicóloga de Hildesheim que se especializou em casos de violência contra crianças e jovens (incluindo o abuso sexual, também uma forma de violência), e fez parte do 3º número de uma revista dedicada à prevenção deste tipo de crimes. Essa revista é gratuitamente distribuída pelas paróquias, escolas e instituições com crianças e jovens a seu cargo.

Tradução:

«São vários os motivos que levam as pessoas a silenciarem crimes de violência sexual, ou a fazerem-no apenas passados muitos anos, ou, ainda, a fazerem-no de uma maneira que, à primeira vista, não combina com a intensidade do trauma. “Muitas falam tão friamente e com tanta distanciação sobre tais vivências, que se diria ter acontecido a outra pessoa”, diz a psicóloga Beate Neumann-Kumm. “Isto acontece porque elas afastam, de si próprias, as emoções relacionadas com a experiência traumática”.

No seu consultório de Hildesheim, a psicóloga já presenciou muitas formas de distanciamento. “Muitas vezes, as vítimas têm poucas recordações do acto, por, à altura, serem pequenas demais para avaliarem da sua realidade”. Falhas de memória, devido a experiências traumáticas, também são comuns e podem resumir-se a um curto espaço de tempo, ou abrangerem vários anos. “A psique”, diz Beate Neumann-Kumm, “apaga a luz, por assim dizer, respeitante àquela fase da vida”. Em contrapartida, procura uma compensação. “Quem não se lembra do que aconteceu, não consegue ocupar-se do trauma, a fim de o tentar superar. No entanto, o trauma, em si, provocado pela sensação de impotência e de desamparo, não desaparece, e a pessoa queixa-se frequentemente de vários sintomas, que podem passar por dores, ataques de medo ou pânico, depressão, etc.”. Por último, diz a psicóloga, existem aqueles que se lembram, mas que nada dizem, nem nunca se queixam. São os que, simplesmente, silenciam. “Evitam qualquer contacto com o assunto, apesar de o sofrimento ser enorme”.

Vergonha e sentimentos de culpa são os grandes responsáveis pelo silêncio. As estratégias do criminoso, meter medo e chantagens, atormentam a vítima. “As crianças enfrentam terríveis conflitos de lealdade, quando o, ou os, criminoso/s pertencem ao meio familiar. Elas receiam as consequências sociais, por exemplo, que a família se desmembre por sua causa. Receiam que sejam elas, no fim, as culpadas”. Também a credibilidade da criança é posta em causa. “Antigamente, no tempo da educação dura e violenta, raramente se acreditava numa criança, quando ela contava algo que os adultos consideravam impossível de acontecer, os chamados temas-tabu”. Neste aspecto, infelizmente, quase nada se modificou, apesar de, desde meados do século XX, se ter passado a considerar os Direitos da Criança. “Em casos destes, o sofrimento das crianças é ainda maior, são castigadas por mentirem, são isoladas e privadas de carinho”. Uma criança que se resolva a abrir com alguém próximo, a mãe, por exemplo, ou a avó, e esta duvide do seu relato, ou até a censure e castigue, fecha-se de vez. Beate Neumann-Kumm considera este um dos grandes motivos para o silêncio. “Normalmente, não há testemunhas dos abusos praticados. Então, a situação da vítima piora dramaticamente”. A censura é mais um trauma para a criança.

Mas também uma criança que silencie, fala à sua maneira, considera a psicóloga. Através de notória agressividade, por exemplo. Essa agressividade pode ser exercida sobre terceiros, mas também sobre elas próprias. “Essas crianças desenvolvem preferência por situações perigosas, ou roem as unhas, ou mutilam-se com lâminas e/ou facas; em jovens, sentem-se atraídos por drogas ou desenvolvem tendências suicidas”.

O debate sobre este assunto é importante para quebrar o silêncio [escusado será dizer que o contrário, ou seja, fazer de conta de que o problema não existe, contribui para que as vítimas se fechem ainda mais]. Quando a população se solidariza com as vítimas e se reclamam mudanças na lei, com castigos mais eficazes para os criminosos, é mais fácil para elas tomarem a iniciativa e revelarem o segredo que guardam dentro de si. Mesmo assim, trata-se de um processo muito custoso. “O processo de tomada de consciência da sua condição de vítima de um crime, permitir que suba à superfície aquilo que, durante anos, ou décadas, foi recalcado, é muito doloroso. Quando se faz luz nesse canto escuro da alma, é bom e importante saber que não se está sozinho”».

Cobardia

Cristina Torrão, 18.08.19

Uma média de 22 crianças e jovens por mês foram vítimas de violência sexual, durante os últimos três anos.

80% das vítimas de violência sexual são meninas.

Mais de metade destes crimes aconteceu no seio da própria família.

Mãe ou pai (19,8%), padrasto ou madrasta (11,7%), avós (5,8%), tios (5,2%), irmãos (2,3%) ou ainda outros familiares (9,3%).

Quando deixaremos de fechar os olhos a estes números assustadores?

Quando serão feitas campanhas de sensibilização e de competência para lidar com a situação, junto de professores, treinadores desportivos, ou outras pessoas que lidam com crianças, incluindo médicos? Porque é esse o grande problema: o fechar os olhos, o ignorar, o não se querer meter em chatices. Na verdade, os adultos que se apercebem ou desconfiam, sentem-se incapazes de lidar com a situação e deixam a criança sem ajuda. Isto é igualmente válido para pediatras! São necessárias campanhas que ensinem a reconhecer os sinais, a saber como agir e a quem se dirigir.

Agredir os mais fracos, ou abusar deles, seja de que maneira for, tem um nome: cobardia.

 

Nota: O artigo citado refere que os casos dispararam nos últimos três anos - pode ter a ver com o facto de que, hoje em dia, se denuncia mais facilmente (digo eu).

A Igreja Católica em crise

Cristina Torrão, 15.04.19

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Leio e comento o Delito de Opinião há quase dez anos, embora, nos últimos tempos, as visitas se tenham tornado mais raras. Como tantos de nós (mea culpa) sucumbi à mais conhecida rede social (sim, o Facebook) e as minhas rondas pelos blogues diminuíram. Não obstante, foi com imensa alegria que recebi o convite do Pedro Correia para me tornar autora regular de um dos mais famosos e lidos blogues portugueses, uma demonstração de confiança que muito me honra.

Feita esta introdução, vamos ao assunto que aqui me trouxe: o abuso sexual de menores dentro da Igreja Católica.

Vivo na Alemanha e sou assinante de um jornal católico semanal, o KirchenZeitung, ou KiZ, na sua abreviatura oficial, pertencente ao bispado de Hildesheim. Nos últimos tempos, traz um ou mais artigos sobre este tema em quase todas as suas edições. Há quem ache que é demais e apele a que se deixe o assunto em paz. Já se admitiu que o problema existe. Não chega? Até porque, felizmente, os clérigos abusadores não são a maioria.

Surdo a tais apelos, o KiZ insiste no assunto. E eu aplaudo. Porque é disso mesmo que os prevaricadores estão à espera: que, depois de se fazer uma balbúrdia à volta do assunto, o caso adormeça e eles possam voltar a maltratar as suas vítimas na paz do Senhor. Como sempre foi, durante séculos e séculos. Uma teia impenetrável de prevaricadores e coniventes, que abafam os crimes, que nunca castigam os criminosos, levando a Igreja de Cristo a esta situação incomportável: protecção dos criminosos, em vez de protecção das vítimas! Dizia, há tempos, uma colaboradora desse jornal: é inadmissível que um padre que o deixe de ser, a fim de se casar, seja tratado de forma mais dura pela sua Igreja, do que aqueles que abusam sexualmente de crianças!

Tenho lido relatos incríveis de antigas vítimas. Também há mulheres, mas a maioria parece ser homens. Em todo o caso, trata-se de pessoas que, só aparentemente, levam uma vida normal, pois não se livram de depressões, insónias, ataques de pânico e tentativas de suicídio durante toda a sua vida. Pessoas com asco de si próprias. Pessoas que tornam a recordar coisas que julgavam esquecidas, por exemplo, quando têm filhos, levando-as a cair novamente num poço escuro e frio, chegando a ficar com medo de tocar nas crianças (as suas crianças) de forma imprópria.

É duro ouvir um homem de sessenta anos dizer que se martirizou com pensamentos de pecado, ao lembrar-se de como regozijou ao saber que o padre, que abusara dele durante dois anos, ia ser transferido para outra paróquia. Na festa de despedida, toda a gente estava triste, por aquele padre tão simpático se ir embora. E ele, um miúdo de 11 ou 12 anos, estava feliz. E censurou-se por isso! É duro ler como bispos regiam autênticas redes de troca de menores. É duro ler como um padre, ganhando a confiança de uma família, a ponto de fazerem férias juntos, abusasse do miúdo, que dormia com ele, enquanto os pais dormiam no quarto ao lado, pensando que o filho não poderia estar entregue em melhores mãos.

Este último caso ilustra como a Igreja tem responsabilidades acrescidas. O Papa Francisco desiludiu no seu discurso de encerramento do encontro extraordinário de bispos em Roma, a fim de debater o assunto, há cerca de dois meses, ao relembrar que abusos sexuais a menores acontecem em todos os lugares onde adultos estão em contacto com crianças e jovens, como clubes desportivos, colónias de férias, lares, etc. Esta relativização caiu mal a muita gente, pois não se pode comparar o prestígio de um clérigo, representante de Deus na Terra, com o de um treinador de ginástica. Além disso, aconteça onde acontecer este crime, não pode ser nunca menorizado ou relativizado. Muitos se perguntam o que levou um Papa, normalmente tão acutilante e corajoso, ficar-se por discurso tão modesto. Por isso, escolhi a fotografia acima para ilustrar este post (igualmente copiada do KiZ): o Papa mostra-se abatido e encolhido, como se o peso que carrega nos ombros se tenha tornado demais para ele.

Numa altura de falta de padres e de igrejas quase vazias, escândalos deste tipo minam a confiança na instituição milenar. Não há dúvida de que a Igreja vive uma grande crise e só resolverá o problema com uma grande reforma. Alguns bispos alemães dão os primeiros passos, apesar de sofrerem a contestação de muitos dos seus pares. O novo bispo de Hildesheim, por exemplo, afirmou, numa entrevista, que a ganância do poder está inscrita no DNA da Igreja. Foi naturalmente muito contestado. Mas também apoiado. Porque ele pôs o dedo na ferida. Os abusos impunes de menores só se tornaram possíveis, porque a Igreja se transformou num clube de homens que se protegem uns aos outros, a fim de manterem o seu poder.

O bispo Heiner Wilmer não se deixa intimidar e constituiu uma comissão que deverá investigar os casos de abuso sexual no seu bispado entre os anos 1957 e 1982, o tempo de regência de um bispo muito querido e conceituado, mas que se desconfia que fazia parte de uma rede de troca de rapazinhos, algo que caiu como uma bomba entre os católicos alemães que se lembram dele, até agora, com muita saudade. Os elementos da comissão investigadora não são clérigos, nem estão particularmente relacionados com a Igreja, a fim de garantir a sua independência. E o bispo Heiner Wilmer prometeu pôr todos os arquivos à disposição dos investigadores. Este é um dos problemas, quando se trata de investigar: a retenção de informação por parte da Igreja.

Quatro pessoas fazem parte da comissão: dois psicólogos, que se encarregarão de entrevistar possíveis vítimas e outras testemunhas; um procurador-geral reformado que, durante quinze anos, presidiu a uma comissão que investigou crimes nazis em Ludwigsburg, e a antiga Ministra da Justiça da Baixa Saxónia (um Land alemão) que presidirá à comissão (informações tiradas do Kiz nº 14, de 07 de Abril passado).

O facto de estar uma mulher à frente desta comissão não é por acaso. O bispo Heiner Wilmer é de opinião de que a Igreja Católica só tem a ganhar envolvendo mulheres nos seus assuntos. Mais: ele considera ser essencial a participação de mulheres na reforma que se exige, não excluindo a sua ordenação.

Foi com agrado que, apesar das críticas que lhe são feitas, constatei haver colegas seus a seguir-lhe o exemplo. No último KiZ (nº 15, de 14 de Abril), li que o bispo de Osnabrück, Franz-Joseph Bode, considera a discussão do papel da mulher na Igreja como urgente, central e inevitável. Na sua opinião, a Igreja Católica está a desmoronar e só pode recuperar a confiança, quando mulheres e homens trabalharem em conjunto. Li igualmente com muito agrado que o bispo de Limburg, Georg Bätzing, pretende igualmente constituir uma comissão, a fim de investigar os abusos sexuais no seu bispado nos últimos setenta anos. A comissão será constituída por duas pessoas não ligadas à Igreja e terão de ser um homem e uma mulher.

Não se trata, aqui, de quotas ou de calar críticas. Trata-se, acima de tudo, de enquadrar mulheres nos meandros da Igreja, quebrando o monopólio dos homens que se apoiam e protegem mutuamente. Desejo muito que isso aconteça. Não porque as mulheres sejam, em geral, melhores do que os homens, mas porque a sua presença quebrará a irmandade masculina. Além disso, a sua opinião deve ser ouvida. Os homens são apenas metade da Humanidade. Nos dias de hoje, não há razão para que sejam apenas eles a decidirem sobre assuntos que digam respeito a toda a Humanidade. Na verdade, impressiona-me que tal procedimento tenha vigorado durante milénios!

Sigo tudo isto com grande interesse, não para atacar a Igreja Católica, mas numa grande esperança de que ela se consiga renovar. A Igreja enfrenta um dos maiores desafios da sua História e urge redefinir o seu papel. Para que serve, hoje em dia? Apenas para baptizados, comunhões, casamentos e funerais? Não podemos esquecer as suas tão necessárias missões caritativas espalhadas pelo mundo. E a Igreja Católica alemã tem-se concentrado noutras causas: o apoio aos refugiados (nos últimos anos, entraram cerca de dois milhões, neste país) e a ecologia. Sim, a preservação do ambiente, aliada à causa animal, tem-se tornado, cada vez mais, uma causa da Igreja. A razão? Proteger a Criação Divina.

Seria bom que a Igreja portuguesa lhe seguisse o exemplo, fomentando o debate sobre temas polémicos e se deixasse de dogmas ultrapassados, a fim de se dedicar a causas realmente importantes.

#metoo - um pequeno preço a pagar

João André, 10.01.18

Uma das consequências do movimento #metoo and #balancetonporc é o sentimento de medo que se tem instalado entre a população masculina. Em parte isto tem-se reflectido essencialmente em figuras públicas, mas de tempos a tempos ouvimos falar de situações em empresas ou comentários genéricos sobre investigações acerca de abusos sistemáticos. Agora surge uma carta aberta de um colectivo de 100 mulheres no Le Monde que defende a «liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual».

 

Esta carta sugere aquilo que deveria ser óbvio: num mundo de maturidade, de decência, e de igualdade, a liberdade de importunar uma mulher (ou um homem) por um homem (ou outra mulher) numa tentativa de flirt, de sedução, deveria ser incontestável. Ninguém se deveria incomodar com comentários que insinuem intenções sexuais, nem com contactos físicos decentes (toques na mão, contacto de joelho com joelho, mãos discretamente nos ombros, etc, dependendo de cada um/a). Da mesma forma que a pesosa em causa deveria ter completa liberdade de rejeitar o interesse e ficar em paz e sossego. A insistência deveria ser permitida, bem como a reiteração, de forma mais insistente, da rejeição. Estas são regras, que não devem necessitar de ser escritas, que permitem a coabitação numa sociedade normal.

 

O que vemos no entanto é que os homens começam a sentir-se ameaçados. Têm que justificar comentários ou gestos completamente inocentes e sem segundas intenções, têm que explicar que aceitaram rejeições sem dificuldades e seguiram em frente, sem tomar quaisquer outras medidas contra quem os rejeitou, ou que talvez tenham tido gestos ou comentários pouco apropriados no momento mas pediram desculpas à pessoa em causa. Começam agora a ter que fazer pedidos públicos de desculpa (tanto mais quanto mais públicas sejam as figuras),  como se a população em geral tivesse alguma coisa que ver com estas situações.

 

Temos então um mundo onde os homens começam a ter medo, a ter que pedir desculpas e a perder emprego com acusações das mulheres.

 

Já vem tarde!

 

O problema com abusos sexuais ou comportamentos indecentes não está descrito em nenhum manual. Uma violação não está consumada apenas com um acto sexual. A percepção da pessoa que sofre é o elemento fundamental. As mulheres (são quase sempre mulheres) podem sentir-se agredidas com actos aparentemente inócuos se o balanço de poder entre elas e o abusador for altamente desequilibrado para o lado deste. Um homem que demonstre interesse numa mulher num bar tem menos poder que um colega numa posição superior (hierarquicamente, financeiramente ou simplesmente graças à sua influência na organização). Se o primeiro pode ser rejeitado com alguma seguramça, existe sempre o medo que o colega decida agir contra a mulher e arruinar-lhe a carreira ou a reputação.

 

No caso de violações, o principal dano não é sexual, antes psicológico. Isto é válido para mulheres e homens, que sofrem de sentimentos de impotência e vergonha por terem sido forçados a actos contra os seus desejos. O acto pode não passar por mais que serem observados a tomar banho (como Weinstein foi acusado de pedir/exigir) e ser considerado na mesma como violação.

 

O último e mais importante aspecto do desequilíbrio d epoder entre homens e mulheres está na questão da força física. Em média uma mulher é fisicamente mais fraca que um homem e terá dificuldades em se defender se o homem a quiser agredir. Este aspecto é de tal forma determinante que desequilibra até situações onde mulheres detêm poder hierárquico sobre homens. Este é, além disso, o aspecto mais determinante também do ponto de vista histórico e que tem sido a principal fundação da desigualdade entre homens e mulheres que dura até aos dias de hoje.

 

Assim sendo, a minha visão é simples: as mulheres têm sofrido ao longo de séculos (milénios). São desconsideradas nas opiniões, mal pagas (quando são pagas), ignoradas, sofrem mais facilmente com qualquer acusação da parte de homens, são descriminadas inclusivamente devido à sua própria fisiologia. Se os homens têm que sofrer durante uns anos ou décadas, serem acusados injustamente de atitudes impróprias - ó desgraça, infâmia - e serem obrigados a esclarecer acções e gestos e pedir desculpas por terem sido talvez pouco sensíveis às percepções das mulheres, assim seja. Metade da população mundial tem sido favorecida de forma (demasiadas vezes) brutal. Se agora alguns deles têm que passar a ter mais atenção e podem sofrer, é um preço que devemos estar completamente dispostos a pagar.