Arrumar a biblioteca (XX)
Raskolnikov, Jivago e D'Artagnan
Cansado, mas satisfeito: os livros estão arrumados. Não todos, mas quase. Por todo o espaço disponível.
Contei-os: são 2233. Tenho mais 394 em casa da minha mãe: 2627 no total.
Reúno à parte todos os que estão assinados pelos respectivos autores. Reproduzo aqui alguns desses autógrafos personalizados. De Jorge Amado, José Saramago, Fernando Namora. Refiro-me só a escritores já desaparecidos. Mas tenho vários outros de autores felizmente vivos.
Restam 145 títulos ainda sem lugar -- só cerca de 6% do total. Vou dar alguns, sobretudo os repetidos. Inventarei espaço para os restantes: o essencial está feito.
Tenho a certeza antecipada de que nunca manterei os mesmos livros nas mesmas prateleiras. Saem uns, para leitura ou consulta, logo outros ocupam esses espaços.
E eis que chegam novos títulos. Acabo de comprar mais um, que trago da livraria do Corte Inglés: El Amor de Mí Vida, de Rosa Montero, aqui recomendado pela Ana Vidal. Hoje talvez compre outro: qualquer um de Alice Munro, recém-galardoada com o Nobel.
Não tardarei a lê-los.
Encontro livros que não me pertencem: foram-me emprestados em tempos, vou restituí-los aos legítimos proprietários.
Livros tão diversos como Terna é a Noite, de Scott Fitzgerald, El Maquiavel de León, de José García Abad, Palavra Puxa Receita, de Maria de Lourdes Modesto, 15 Meses no Ministério dos Negócios Estrangeiros, de Freitas do Amaral, The Political Writings, de John Dewey.
Penso noutros, que já tive e nunca mais vi: O Vil Metal e Dias da Birmânia, de Orwell; Angústia para o Jantar e Um Homem Não Chora, de Sttau Monteiro; Carta a Fidel Castro, de Arrabal; Poesia II, de José Gomes Ferreira; A Cidade e as Serras, de Eça; O Advogado do Diabo, de Morris West; Três Homens num Bote, de Jerome K. Jerome.
Uns hei-de encontrar, outros talvez não. Os livros estão em movimento perpétuo. Como todos nós, afinal.
Os livros levam-nos onde nenhum meio de transporte nos conduz. Seja de barco, seja de comboio, seja de avião.
Nos livros viajamos no espaço e no tempo. Conhecemos novos mundos, rasgamos horizontes, galgamos fronteiras reais ou imaginárias, conhecemos uma infinidade de pessoas das mais diversas proveniências.
Os livros são os mais fiéis e pacientes companheiros de percurso: nunca nos deixam sós.
Com eles subimos um rio, nas profundezas do Congo, navegando com o capitão Charles Marlow. Perseguimos uma baleia a bordo de um navio comandado pelo obsessivo capitão Ahad. Fazemos a pescaria da nossa vida logo reduzida a quase nada, ombro a ombro com o velho Santiago ao largo de Cuba.
De manhã deambulamos pelas margens do vasto delta do Mississípi com Huckleberry Finn, à tarde tomamos chá num Verão londrino com Clarissa Dalloway e subimos o Chiado com João da Ega, ao pôr do sol jantamos na mansão de Jay Gatsby.
Página a página, testemunhamos a paixão desmedida que une Sarah Miles a Maurice Bendrix nos escombros de Londres durante a guerra. Caminhamos com Mersault sob um sol escaldante numa praia argelina ou sentimos o frio trespassar-nos a pele e os ossos no campo de concentração siberiano onde Ivan Denissovitch vegeta.
Com os livros viajamos em calhambeques de camponeses esfomeados como o que levou -- e levará até aos confins dos séculos graças à imortalidade da literatura -- a família de Tom Joad do Oklahoma para a Califórnia.
Seguimos o Malhadinhas pelas veredas sinuosas das serras beirãs.
Brincamos em Salvador como os capitães da areia, que chegam a homens sem nunca ser meninos.
Descemos com outro capitão, chamado Nemo, às profundezas submarinas.
Arrastamo-nos nas sórdidas vielas da Londres vitoriana com Oliver Twist. Ou nas faiscantes festas novaiorquinas onde Holly Golighly brilha para a eternidade.
Exercemos medicina, como Jivago. Ou a advocacia, como Atticus Finch. Ou o jornalismo, como Santiago Zavala, o Zavalita.
Ou fazemos do segredo a nossa profissão, imitando George Smiley.
Enquanto leio, chamo-me D' Artagnan e sou um galante capitão ao serviço da rainha. Cavalgo como Ivanhoe à conquista do coração de Lady Rowena. Transfiguro-me em Fabrizio Del Dongo, cruzando-me com Napoleão em Waterloo. E respondo pelo nome de Sandokan quando navego nos mares da Malásia.
Torno-me Winston Smith e vivo num sistema totalitário. Prendem-me e eu, Joseph K, não faço a menor ideia de qual terá sido o motivo -- ter-me-ão confundido com Raskolnikov?
Mas mesmo preso eis-me livre nos livros, Phileas Fogg percorrendo o globo em 80 dias, rumando ao planeta do Principezinho.
Matando como Tom Ripley, morrendo como Robert Jordan. Ou como o coronel Aureliano Buendía, recordando perante o pelotão de fuzilamento a tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.
Diletante como Dorian Gray. Solitário como Robinson Crusoe, solidário como Jean Valjean.
Apaixonado à primeira vista, às primeiras letras, por Margarida Dulmo.
Mario Vargas Llosa tem razão: fechado um livro, saímos dele "mais intensos, mais ricos, mais complexos, mais felizes, mais lúcidos" enquanto regressamos à "constrangida rotina da vida real".
Exactamente como me sinto agora.
E aqui vos deixo, com a inigualável voz de Gisela João.
Até sempre.