Dias de fé em Ponta Delgada
Quase nove da noite de uma sexta-feira de Maio em Ponta Delgada. Ao lusco-fusco do dia que chega ao fim, as pessoas que se deslocam pelas ruas da cidade confluem todas para um mesmo local: o Campo de São Francisco. No losango irregular da praça revestida de calçada à portuguesa, onde o basalto negro é mais abundante do que o calcário branco, aglomera-se uma multidão irrequieta e expectante, feita de gente de todas as idades, tamanhos, cores e sotaques. Não é Natal, mas os amigos e conhecidos que se cruzam desejam-se mutuamente as “Boas Festas”. Às 21 horas em ponto, solta-se das gargantas um “aaaaah!” colectivo. Acenderam-se as luzes do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e o efeito é avassalador. Milhares de lâmpadas coloridas formam volutas, flores, cruzes e outros objectos, num bordado luminoso que quase parece filigrana. Para os novatos neste espectáculo, como eu, a surpresa é grande. Os olhos arregalam-se, empunham-se telemóveis e câmaras fotográficas, tanta beleza tem de ser registada. É o primeiro grande momento das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.
Celebra-se sempre na quinta semana depois da Páscoa e é a maior festa religiosa dos Açores, congregando muitos milhares de devotos na cidade de Ponta Delgada – não só habitantes de São Miguel e das outras ilhas do arquipélago, como também inúmeros emigrantes na América do Norte, que enchem voos charter transatlânticos operados especificamente para esta ocasião e vêm matar saudades das suas origens. Realiza-se há mais de 320 anos e no entanto, facto algo estranho, é uma festa desconhecida para grande parte dos portugueses. Não sendo crente, sinto sempre curiosidade por estas manifestações seculares que fazem parte do tecido cultural de um povo, arreigadas na memória colectiva de cada região e sem perderem a sua força anímica. Decidi-me por isso a ir ver de perto (e viver) estas festas.
Quinta-feira: Oferecer flores e visitar o Santo
Maio é o mês das flores, mas nesta altura torna-se difícil encontrá-las nas floristas. O motivo é simples: são todas encaminhadas para o Santuário, onde um grande número de voluntárias dá corpo a lindíssimos arranjos florais que vão enfeitar igrejas, varandas, montras e, sobretudo, a capela do Santo e o andor onde será transportada a sua imagem. São sempre oferecidas, pois não há devoto que não queira contribuir para a festa do Senhor Santo Cristo. Acompanhei uma amiga que vive em São Miguel quando foi fazer a sua compra, e a tarefa não se revelou fácil nem rápida. Na loja havia quase mais pessoas do que flores (estou a exagerar, mas só um bocadinho). Jarras brancas orgulhosamente vazias ou com poucos exemplares, floristas de cara fechada, já sem paciência, concentradas no trabalho de montar arranjos ou a tentarem despachar os clientes que não desistiam e não paravam de chegar. Depois de quase uma hora, lá conseguimos sair dali com um molho de cravos vermelhos e brancos, escolhidos entre a parca oferta disponível.
A paragem seguinte é no claustro do Convento da Esperança, que integra o Santuário (existe uma congregação de freiras residente). Gordos baldes cinzentos acolhem as flores e verduras que os fiéis vão entregando, enquanto vários grupos de senhoras se afadigam em volta de mesas improvisadas com cavaletes, sobre as quais vão nascendo os arranjos.
Peregrinamos depois até à Roda, embutida na parede lateral do Convento e que hoje já perdeu a sua função antiga de lugar de depósito dos “expostos” – as crianças entregues para serem criadas nos conventos, por falta de meios ou vontade das famílias. É ali que agora são deixados os donativos, em troca de pequenas recordações do Santuário, e quem oferece flores também tem direito a receber uma lembrança. Finalmente, seguimos para a igreja e vamos espreitar o local onde está resguardado o motivo principal de todo este corrupio: a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
A capela fica do lado esquerdo de quem entra, separada da igreja por uma parede de vidro. É comprida, e lá ao fundo quase mais se adivinha do que se vê o busto do Santo Cristo. Os longos metros de chão envernizado estão cobertos por uma passadeira vermelha, e o espaço livre à volta é um mar florido, encabeçado por uma composição avantajada em que as palavras “Ecce Homo”, desenhadas com flores vermelhas, se destacam sobre um leito também feito de flores, só que brancas. Diz a Bíblia que “Ecce Homo” (Eis o Homem) terão sido as palavras pronunciadas por Pôncio Pilatos quando apresentou Jesus de Nazaré – já depois de flagelado – à multidão que iria decidir o seu destino. As representações “Ecce Homo” de Jesus são, por isso, imagens que mostram sofrimento.
Mas a originalidade maior deste ícone é, quanto a mim, o facto de ser um busto. Em termos de imagens consagradas, não é um tipo de representação escultórica habitual na iconografia cristã (embora sendo comum na pintura). A origem desta imagem de madeira é desconhecida, e em concreto, por via de um estudo realizado em 2019, apenas se sabe que foi esculpida no século XVII. Pese embora as várias lendas tecidas sobre o assunto, a verdade é que se ignora quando ou como ela terá chegado à posse das clarissas de um mosteiro fundado na Caloura em 1523, mais tarde transferido e dividido em duas localizações diferentes: o Convento de Santo André, em Vila Franca do Campo, e o Convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada. Foi aqui que Teresa de Jesus tomou o véu de noviça em 1682, e foi aqui que a imagem do Santo Cristo chamou a sua atenção e mais tarde, por influência de uma sua irmã, captou a sua devoção. Bem menos conhecida do que a sua homónima de Calcutá, Madre Teresa d’Anunciada foi a mentora do culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e a sua figura é igualmente venerada.
Sexta-feira: Começa a festa
Todo o centro da cidade está engalanado para esta ocasião. Não há montra que não tenha uma imagem devota, e muitas delas revelam-se sofisticadas obras artísticas em torno do tema. As varandas das instituições e grandes empresas vestem-se também a preceito, seja com uma simples colcha ou com um arranjo requintado. Ponta Delgada esmera-se para receber os forasteiros, com ou sem fé.
Em cada ano, as cerimónias religiosas são lideradas por um bispo ou cardeal diferente. Já desempenharam estas funções figuras do alto clero tão importantes como D. José Tolentino de Mendonça, mais do que um Cardeal Patriarca de Lisboa, bispos do Porto, de Leiria e Fátima, de Florianópolis, da Bermuda e de Providence, o arcebispo de Boston, o Núncio Apostólico em Portugal. Embora o formato se mantenha basicamente o mesmo ano após ano, 2024 trouxe uma novidade: uma missa extra em inglês, no domingo de manhã. A comunidade emigrante já tem muitos não-falantes de português, e há que não desprezar o potencial do turismo religioso. Aliás, o prelado escolhido para presidir às celebrações deste ano foi o bispo católico de Stockton, na Califórnia, filho de pais açorianos mas nascido nos Estados Unidos. Um sinal de apreço pela devoção irredutível que os emigrantes lusos e seus descendentes têm mostrado pelo Senhor Santo Cristo ao longo das últimas décadas.
Com o trânsito cortado entre o Forte de São Brás e a marina, a avenida marginal enche-se de barraquinhas onde se vende de tudo um pouco, rulotes de fast food e carrinhos de gulodices, carrocéis e tudo o mais que é imprescindível numa festa popular portuguesa. Nas Portas do Mar, uma tenda gigantesca acolhe a iniciativa anual da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada, a que dão o nome de Feira Lar Campo e Mar e se prolonga pelo espaço no subsolo do recinto. No piso de cima predomina o artesanato, variado e sobretudo original, enquanto o piso inferior está vocacionado para o comércio e indústria de maior porte. O valor do bilhete de acesso é quase simbólico, pelo que acaba por ser ponto de visita obrigatório e há alturas em que está a abarrotar de gente.
Dependendo da altura do dia e da lentidão do passo, o quilómetro que separa a Feira do Forte de São Brás talvez seja suficiente para abrir o apetite, e quem não gostar de comidas rápidas pode satisfazer a fome num dos restaurantes montados ao abrigo da muralha oeste do Forte. Nem sempre é fácil encontrar mesa, mas não há nada melhor do que umas lapas grelhadas para confortar o estômago e fazer esquecer as dores nos pés.
Quando a iluminação nocturna é inaugurada, os edifícios do Santuário, em dias normais singelamente vestidos de branco e cinzento, transformam-se (quase como por milagre) num objecto etéreo, flutuando contra o negrume da noite açoriana. A orgia de luz alastra pelo coreto que ocupa o centro do Campo e pelas ruas adjacentes, adornadas com arcos policromáticos brilhantes. Do lado de fora das portas do Santuário formam-se filas de pessoas ansiosas por verem a imagem do Ecce Homo, ainda resguardada na sua capela. Mais tarde, abre-se o Bazar e ouve-se o concerto executado por uma banda ou filarmónica da ilha de São Miguel. Está cumprida a primeira noite das festas em honra do Senhor do Santo Cristo dos Milagres.
Sábado: Ver a saída do Senhor Santo Cristo
O segundo grande momento das festas é a Procissão da Mudança, no sábado à tarde. Marca a saída da imagem do Senhor Santo Cristo do seu recato no Coro Baixo do Convento, para ser mais tarde acolhida na Igreja de São José. Ambos os edifícios ficam no Campo de São Francisco, separados por 80 metros de rua, mas o traslado irá demorar mais de duas horas e meia.
A cerimónia começa quando o provedor da Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres bate na Porta Regral do Convento, solicitando a saída do Santo, e termina com o acolhimento da imagem na igreja vizinha, seguido de uma missa. Nesse ínterim, precedido por membros do clero e acólitos, e carregado por membros da Irmandade, o palanquim coberto que transporta a imagem do Senhor Santo Cristo dá a volta ao Campo em passo lento, oferecendo-se à devoção dos vários milhares de pessoas aglomeradas na praça. Tem direito a Guarda de Honra do Exército e a uma salva lançada a partir de um navio da Marinha. Atrás do andor desfilam membros de Irmandades, freiras, uma banda, escuteiros e, fechando o cortejo, todos os leigos que se queiram juntar à procissão, muitos deles carregando círios maiores do que eles próprios.
À noite, a tradição manda comprar rifas no Bazar e passear pelas ruas iluminadas, ou ficar pelo arraial até à hora do fogo-de-artifício. Lançado a partir da Muralha da Doca, é facilmente visível a partir de qualquer ponto da marginal, e prende-nos a atenção durante largos minutos.
Domingo: A grande procissão
No domingo de manhã, volta a azáfama. Nas ruas por onde vai desfilar a procissão da tarde, organizadores e voluntários unem-se para criar passadeiras aromáticas e vistosas, umas feitas de criptoméria, louro e pétalas de flores, outras de aparas de madeira colorida. Os motivos variam, muitos deles dependendo da imaginação de quem patrocina cada troço do trabalho. Sobre a calçada de pedra escura, as cores sobressaem ainda mais, e custa saber que dali a umas horas toda aquela arte será destruída. Custa-me a mim, que estou de fora e sou profana. Para quem constrói estes tapetes, é uma honra saber que irão ser pisados pela procissão em honra do Senhor Santo Cristo.
O Guião da procissão sai do Santuário às três e meia da tarde, mas duas horas antes já há muita gente acantonada nos passeios do Campo de São Francisco, com o fito de garantirem o melhor lugar para assistirem ao desfile, e de preferência num sítio à sombra. Bancos e cadeiras dobráveis, garrafas de água e snacks fazem parte do equipamento essencial para resistir ao longo período de espera e ao demorado cortejo. Entabulam-se conversas com os vizinhos temporários, permutam-se petiscos, quem está sentado troca por vezes lugar com quem está de pé, uns desejosos de esticar as pernas e outros de as descansar. O ambiente é de descontracção e partilha.
Foi no ano de 1700 (ou talvez 1698) que se realizou a primeira procissão em honra do Senhor Santo Cristo, organizada por Madre Teresa d’Anunciada para partilhar a sua devoção e para que os fiéis pudessem agradecer os favores e milagres que se considerava serem obra do Santo. A popularidade desta demonstração de fé cresceu com os séculos, e cresceu também a sua magnitude. Actualmente, é a maior procissão da Europa, e uma das mais antigas do mundo. Quem nunca assistiu poderá duvidar da sua grandeza, e eu compreendo. Mesmo estando lá, custa a crer que uma simples imagem de madeira tenha tanta influência e o poder de movimentar um tão grande número de pessoas.
Finalmente, por cima do ruído da multidão irrequieta, ouvem-se os acordes do Hino do Senhor Santo Cristo, tocado por uma das dezenas de bandas que participam na procissão. Surge entretanto o Guião, transportado pela Irmandade do Santo Cristo, e depois sucedem-se as bandas – todas tocam o mesmo Hino, e a meio do desfile já estava cansada de o ouvir – alternadas com Irmandades várias, romeiros, crianças vestidas de anjo, freiras e um sem-fim de padres e acólitos (tanto rapazes como raparigas), seguidos de membros do alto clero.
O longuíssimo cortejo de gente dura mais de uma hora, até que o repicar de sinos substitui a música das bandas, a desvanecer-se na distância. É sinal de que se aproxima o andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres, mostrando-se mais uma vez em todo o seu esplendor. Tal como na véspera, está quase completamente coberto de flores, e mal se entrevê o tecido do dossel que protege a imagem. É uma visão em cores quentes, vermelhos e rosas, dourados e amarelos-vivos, numa profusão barroca que vai muito para lá do que é habitual neste tipo de manifestações religiosas.
Entre o avultado património material pertencente ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, há cinco jóias especiais que acompanham a imagem durante estas festas. Para as descrever, aproprio-me das palavras usadas no site oficial do Santuário: “resplendor, encaixado na parte posterior da cabeça; coroa de espinhos, cingida à cabeça; medalhão-relicário, pendurado ao pescoço por uma corda, ocultando a abertura sobre o peito; ceptro, na mão direita; e corda, prendendo os antebraços e as mãos cruzadas. O conjunto destes magníficos exemplares de joalharia portuguesa do século XVIII tem o nome “tesouro do Senhor” e constitui um dos mais belos e valiosos acervos nacionais de joalharia religiosa”. Tanto assim é que, em conjunto com a imagem, foram classificadas pela Assembleia Legislativa dos Açores como “Tesouro Regional” e protegidas por Decreto Legislativo. Entre elas, apenas a corda foi criada durante a vida da Madre Teresa (e refeita em 2020). Todas as outras jóias, embora solicitadas por ela, foram doadas posteriormente.
E há ainda as capas, motivo de expectativa anual. Oferecidas por devotos, em anos mais recentes sobretudo emigrantes, já são quase 40, e todos os anos é escolhida uma capa diferente para cobrir os ombros do Santo na sua saída em procissão (a das imagens foi oferecida pela Irmandade do Senhor Santo Cristo de Brampton, no Canadá; a de 2024 foi a número 39, executada pelas próprias ofertantes, três senhoras de Ponta Delgada). Confeccionadas em tecidos nobres, bordadas a ouro e por vezes ornamentadas com jóias, são peças requintadíssimas, cujo maior valor, ainda assim, é serem testemunhos de uma devoção profundamente sentida.
No meio da parafernália, destaca-se o rosto do Santo, a madeira já carcomida em alguns pontos, o sangue pintado que escorre pelas faces, os olhos escuros contemplando o vazio sob as pálpebras meio descidas. Mais do que sofrimento, parece-me ter uma expressão de serenidade – mas eu vejo a imagem com olhar de profana, não com o coração de devota, e sou claramente uma excepção. À passagem do andor, todos os olhares convergem para a imagem do Senhor Santo Cristo. Ouvem-se palmas, e são muitos os lábios que se movem em oração, talvez pedindo, talvez agradecendo, talvez cumprindo um ritual instintivo.
Seguem-se-lhe mais membros de Irmandades e mais filarmónicas, dignitários do Governo Regional e de outros organismos oficiais, representantes das Forças Armadas, das autarquias e das forças de segurança. Depois de ainda mais uma banda, quatro escuteiras abrem a ala das mulheres de negro – algumas estão mesmo de luto, outras cumprem promessas. E só então chega finalmente a vez dos restantes fiéis, que engrossam a procissão com mais uns bons milhares de almas. Há quem tenha vestido o seu melhor “fato de domingo”, e quem vá de ténis; uns levam círios, outros crianças ao colo; há quem tire os sapatos e prossiga de meias, ou mesmo descalço. Neste desfile democrático qualquer pessoa pode participar, e o único requisito é ter fé.
O fumo e o barulho de morteiros indicam que o andor desfila em frente ao Forte de São Brás. Depois de deixar o Campo de São Francisco, o cortejo faz um périplo pelas ruas mais antigas da cidade. Mimetizando a rota da procissão original, passa pelas igrejas e conventos mais importantes do centro histórico de Ponta Delgada, regressando ao adro do Santuário cinco horas depois de ter começado, numa prova de resistência que só mesmo a forte devoção (e uma razoável forma física) consegue fazer superar. Depois das últimas despedidas, já perto das dez da noite, a imagem do Senhor Santo Cristo recolhe à sua capela, de onde só voltará a sair um ano mais tarde.
A festa não termina aqui. Ainda haverá celebrações eucarísticas, concertos e arraiais até à quinta-feira seguinte, dia do encerramento das festividades. Apesar de algumas tímidas tentativas, no passado, para reduzir a componente comercial do evento e dar maior relevância à vertente espiritual das festas em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a verdade é que estes são dias de grande movimento de pessoas em toda a cidade, e de inegável importância económica.
Mesmo entre os crentes, as festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres não são tão famosas quanto outras manifestações religiosas no nosso país. O peso da insularidade continua a ser grande, por muito que estejamos numa “aldeia global” e apesar da recentemente adquirida popularidade dos Açores. No entanto, e se outro mérito não tivessem, conseguem a proeza de chamar a si vários milhares de pessoas espalhadas por todo o mundo, unindo-as numa mesma devoção e sob um único manto: o da fé numa imagem religiosa. É obra!