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Dois livros, alguns excertos.
O primeiro livro:
“As crianças do 25 de Abril foram expostas à pornografia antes de saberem como se faziam bebés (…). A despontarem para a vida, viviam numa espécie de terra de ninguém, pela qual não se encontravam responsáveis. Pairavam no vazio formado entre o culto da liberdade sem limites e a crença salazarista mantida pelas mães e avós de que Portugal era um país mais temente a Deus, de melhores costumes, um oásis de santidade perante um estrangeiro devasso”.
“Ainda apática, saída de um mundo desprovido de sexo, um mundo em que os genitais eram porcos, males necessários para se expelirem os detritos do corpo, ela espantava-se com os cartazes e os títulos sugestivos das películas em cena no Sá da Bandeira, um verdadeiro templo da arte pornográfica, enquanto esperava pelo autocarro”.
“Sentindo-se impotentes perante o fenómeno e na sua tentativa desesperada de a manter agarrada às antigas convenções, os pais empurravam-na para uma dualidade de comportamentos, criavam a cultura do fingimento: a nossa casa é uma coisa e o mundo lá fora é outra. Dentro de casa, é feio falar de sexo; lá fora, o sexo é exibido em todo o lado. No meio, ficava o vazio, a tal terra de ninguém, (…) o fosso, que se cavava cada vez mais fundo”.
E o segundo livro:
“Nada, nem a inteligência, nem os estudos, nem a beleza, contava tanto como a reputação sexual de uma rapariga, o mesmo é dizer o seu valor no mercado de casamentos, onde as mães, seguindo o exemplo das suas próprias mães, se armavam em guardiãs".
“Ao sábado, em fila, casavam as raparigas de véu branco, que davam à luz seis meses mais tarde uns rapagões considerados prematuros. Presas entre a liberdade de Bardot, o gozo dos rapazes a dizer que ser virgem era doentio, as recomendações dos pais e da Igreja, não tínhamos escolha".
“Os discursos e as instituições estavam atrasados em relação aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível parecia-nos normal e irremediável".
O primeiro livro é de minha autoria: A Revolução da Verónica. Nunca me tinha acontecido sentir tão grande afinidade com um escritor, ou escritora. O mais interessante é que, quando comecei a ler o livro alheio, não o achei muito promissor.
Não comparo a qualidade da escrita. Aí, sinto-me como São João Baptista: não sou digna de lhe apertar as sandálias. Está em causa a comunhão de pensamentos, a complementação de ideias. E a escolha de palavras. Como “o fosso”. “Cada vez mais fundo”, num caso; “normal e irremediável”, no outro. Encaixam como duas peças de Lego.
Nota: plágio de ideias (da minha parte, claro), está fora de questão. Comecei a ler Os Anos, de Annie Ernaux, pela primeira vez, há dias. Por seu lado, A Revolução da Verónica existia há muito tempo, na minha gaveta. Na verdade, tentei, sem sucesso, publicá-lo por ocasião do 40º aniversário da Revolução de Abril. Acabou por acontecer apenas dez anos mais tarde.
Tive esta ideia de escrever sobre o 25 de Abril através dos olhos de uma criança. Estava eu, na altura, a três meses de completar os nove anos e escuso de referir o impacto causado na minha vida e na da minha família.
Não sei se A Revolução da Verónica transmite fielmente os acontecimentos. Afinal, já decorreram cinquenta anos e é sabido o tempo lançar-nos algumas armadilhas. Costuma dizer-se que não recordamos aquilo que se passou, mas o que julgamos ter-se passado. Por isso, a miúda protagonista não leva o meu nome. Porém, entre memórias, armadilhas e alguma ficção, penso que estas páginas transmitem a essência das vivências de uma criança e do esforço de adaptação aos novos tempos, surgidos, literalmente, da noite para o dia.
A Revolução da Verónica abrange o período entre 1973 e 1975. Não podia faltar o Verão, de facto, quente, em que completei os dez anos e em que fui, pela primeira vez, ao Algarve e a Lisboa. Nem tão-pouco podia faltar o "Outono Quente", do Norte. Afinal, vivíamos paredes meias com o RASP, em Vila Nova de Gaia. Sei, de facto, o que é estar em casa e ouvir rajadas de G3, a menos de cinquenta metros de distância, consequência da troca de galhardetes entre as forças enviadas por Pires Veloso e os SUV, infiltrados no quartel.
O livro inclui ainda um pequeno conto, A Festa da Revolução, esse sim, ficção pura. Além de referir o lado folclórico do 25 de Abril, centra-se nas vivências de uma adolescente da altura e nas consequências catastróficas, trinta anos mais tarde, geradas no contraste entre a mentalidade antiga e a mudança repentina.
A Revolução da Verónica está à venda na Feira do Livro de Lisboa, nos stands C19 e C20 (Dinalivro). Se ficaram curiosos e passarem por lá, talvez até peguem no livro, a fim de decidirem se o compram, ou não. Declaro-me, desde já, agradecida por esse simples gesto.
Nota: A Revolução da Verónica está igualmente à venda na livraria UNICEPE, na Praça de Carlos Alberto, no Porto.
Ontem, após o Bayern-Real Madrid, visto em grupo de amigos no café agora "must" dos Olivais, e enquanto se escorropichava a última "imperial", lamentei-me de estar esfaimado. Logo me levaram à Encarnação, onde decorrem as "festas populares". À chegada ouvia-se os UHF. Acorri, constatando que há quase 40 anos não via o grupo de António Manuel Ribeiro ao vivo, laivos saudosistas até.... Quando lá chegámos tocavam a célebre "Cavalos de Corrida"... Depois vieram os "encore", uma "Grândola..." apenas vocal, entoada em registo roufenho com uma senhora da organização (quiçá da Junta).
Entretanto abastecemo-nos dos ambicionados petiscos, fornecidos nas barracas de "comes e bebes", vizinhas dos carrinhos de choque, eu com uma bifana das antigas, daquelas oriundas daqueles pântanos de molhanga com ar vetusto. Enquanto deglutia o manjar voou-me a mente para alhures. Um dos camaradas de comezaina notou-o e indagou o que comigo se passava.
"Estou velho!", resmunguei, lamentando-me. E expliquei-me. Pois no meu bairro de sempre, junto a amigos, diante de imperial e bifana, UHF a rockarem, no que atento é nisto: em pleno centro de Lisboa, esta Junta de Freguesia do PS, essa da presidente Rute Lima (colunista do "Público") e da "vereadora" Vanda Stuart, monta mais uma festarola e clama em cartaz "Há Cultura nos Olivais". E associa isso ao democrático e desenvolvimentista "25 de Abril".
E entretanto a Biblioteca dos Olivais, a antiga BDteca, está encerrada há três anos, ou mais, devido a obras até superficiais, mas tão proteladas de esquecidas, depois como se abandonadas, pois nunca cuidadas. Apenas por desinteresse desta gente PS. Vil e ignorante gente.
"Sou um reaccionário!", concluí. Rimo-nos. E pedimos mais uma rodada de imperiais.
Imagens RTP
Não sou entendido em antropologia, mas há coisas interessantes e divertidas no comportamento das pessoas.
Olhando para o que foram as celebrações do cinquentenário da revolução, já agora 25 de Abril sempre, ditadura nunca mais, não pude deixar de me pôr a imaginar quantos daqueles milhares que ontem festejaram a liberdade seriam capazes de arriscar a sua vida por ela. Claro que hoje a festejam, e todos os dias, felizmente, mas quantos daqueles seriam capazes de, como em Tiananmen, abrir os braços para fazer parar um blindado? Quantos teriam coragem de se manifestar na Praça Vermelha com uma folha de papel em branco? Quantos se atreveriam a questionar a divindade do herdeiro de turno da dinastia norte-coreana?
Serão os portugueses gente de uma gesta diferente dos chineses, russos ou norte-coreanos? Fomos, enquanto povo, capazes de algo impossível para outros?
Acredito que 99% da população mundial não pretende ir além de uma vida mais ou menos serena, sem a pretensão de deixar uma marca na história da humanidade. Isso está reservado a uma estreita minoria, que, custe o que custar, fazendo o que tiverem de fazer, consomem todas as suas energias em liderar os demais. Desses, alguns são pontualmente decentes, enquanto outros são gente do pior.
Enquanto isso, o grosso da maralha avança sempre em manada, aplaude quando vê aplaudir, assobia quando ouve assobios e até pode saltar a barricada, mas só depois de alguém a ter derrubado. E os que deitam abaixo as barricadas pertencem aos tais 1% de desalinhados.
Dizia Ortega y Gasset que o homem não pode ser separado da sua circunstância. Dizem-me que Otelo chorou copiosamente nas cerimónias fúnebres de Salazar. Os homens também choram, desde que colocados numa circunstância que a isso justifique. O mesmo Otelo que, noutra circunstância, foi determinante no desenrolar da operação “Fim do Regime”, não hesitou em avançar para o terrorismo bombista contra uma jovem democracia. Que personagem este Otelo! Destemperado, honesto e desconfiado, crédulo e excessivo, tal como o seu homónimo, o Mouro de Veneza.
Não tenho dúvidas que um dia, no futuro, os russos celebrarão o fim do putinismo. Não podemos imaginar como isso vai ocorrer, mas se não for por obra humana, nem sob a ameaça do seu arsenal nuclear, a lei da vida lhe abrirá uma excepção. Nessa circunstância, os que agora se acomodam respeitosa e silenciosamente um dia também irão para a rua celebrar e contar como era a vida no tempo de antigamente.
À excepção de uns quantos, escassos, que hoje estiveram nas cerimónias, assim como de outros, que já cá não estão, poucos dos que ontem cantaram, celebraram e folgaram seriam capazes de dar o primeiro passo contra os esbirros do Estado Novo.
Fernando Salgueiro Maia fotografado por Alfredo Cunha a 25 de Abril de 1974
Um verdadeiro herói nunca se considera herói.
Cumpre o seu dever não por ser um dever
mas por urgente imperativo de consciência.
Dá o nome
a cara
o peito às balas
e se for preciso a vida
pela causa que crê ser mais justa
entre todas as causas.
Um verdadeiro herói pensa em si próprio
só depois de pensar nos outros.
Avança sem temor
com a noção exacta
de que joga tudo numa ínfima fracção de tempo:
conforto, carreira, promoções, anonimato.
Ficando a partir daí
exposto ao escárnio imbecil
de todos os cobardes
que nunca dão um passo
fora do perímetro de segurança
mas quando a poeira assenta
logo surgem muito expeditos
a julgar os outros.
A julgar aqueles como tu:
os que arriscam
os que experimentam
os que se atrevem a romper as malhas
de um quotidiano medíocre.
Os que trocam a palavra eu pela palavra nós.
Os que nunca se conformam.
Um verdadeiro herói
é aquele que deixa a sua impressão digital
nas insondáveis rotas do destino humano.
Tu ousaste mudar um país.
Não pelo sangue
não pelo ódio
não pela intriga
mas pelo gesto
pelo rasgo
pelo exemplo.
Sabendo como é ténue a fronteira
entre glória e drama
quando alguém irrompe de madrugada
pronto a desafiar os guiões da História.
Fernando Salgueiro Maia.
Foste um herói
ao comandar a patrulha da alvorada.
Voltaste a ser um herói
quando decidiste retirar-te ao pôr-do-sol
deixando outros pavonear-se sob o clarão dos holofotes.
Recusaste ficar exposto na vitrina.
Recusaste servir de bandeira.
Recusaste ser "vanguarda revolucionária".
Recusaste ser antigo combatente.
Recusaste dar pretextos para dividir.
Tu que foste um poderoso traço de união entre os portugueses
naquelas horas irrepetíveis em que tudo podia acontecer.
Saíste do palco:
aquela peça já não te dizia respeito.
E nunca a tua grandeza se revelou tão evidente
como no momento em que abandonaste a ribalta
regressando à condição de homem comum.
Indiferente a ladainhas e louvores.
Longe da multidão
que fugazmente te acenou
na mais límpida de todas as manhãs.
Sem outra medalha além desta:
eternamente graduado no posto
de capitão da liberdade.
Poema meu, reeditado
(créditos: daqui)
Os portugueses e as suas instituições celebram em 25 de Abril o Dia da Liberdade. Eu chamar-lhe-ia antes, como os italianos, o Dia da Libertação (“Festa della Liberazione”). Muitos, mais novos, perguntarão que libertação é essa; e porquê. Outros, mais velhos, olharão para a data como mais uma simples efeméride referida a qualquer coisa que aconteceu num passado cada vez mais distante e que de tempos a tempos é recordada nas escolas, nos jornais, nas rádios e televisões. Não mais do que isso.
Há cravos vermelhos, discursos, fanfarra, cantoria e romaria. Há festa.
E depois, a seguir à festa, voltam todos à escola, os que a frequentam, ao trabalho, à inflação, ao desemprego, às doenças, aos subsídios, ao futebol, aos Santos Populares, ao fado, aos tribunais e às praias. Outros voltam às ruas para reclamarem por melhores condições de vida, um ambiente mais saudável, cidades mais sustentáveis, reivindicarem ajustamentos salariais, melhores carreiras, dignificadas e revalorizadas, por mais feriados, mais habitação, mais creches, mais saúde, mais igualdade. Querem mais, sempre mais, cada vez mais. E, no entanto, são incapazes de lutar pelo básico, de orientar as suas vidas por um verdadeiro altruísmo que nos liberte das amarras criadas à sombra da libertação, à sombra de Abril.
Quem viveu, quem ainda conheceu, quem se recorda do muito que aconteceu, em especial a partir da ocupação dos territórios portugueses na Índia e do início das guerras coloniais, do que foram esses anos que antecederam o 25 de Abril de 1974, estará hoje menos sensível a grandes mudanças. Dá a democracia – a verdadeira, não a que outros dizem “que funciona”, a que alguns ditos “democratas” se adaptam com grande facilidade, exultando-a, e que não passa de uma ditadura que distribui gelados quando não está ocupada a distribuir máscaras, controlar, vigiar, reprimir, prender e punir – como adquirida e cumprida com a bênção ritual e regular de formalidades. Tudo se esgota no poema decorado, lido, declamado e apregoado até à náusea, no jantar de confraternização, no entoar compassado e ritmado da canção.
Esquecendo, a avaliar pelas pérolas que se ouvem nalgumas entrevistas ou em concursos televisivos, que há quem confunda Otelo com um hostel ou Salazar com Soares, não sabendo quem foi Salgueiro Maia, desconhecendo que Ramalho Eanes foi Presidente da República. Nada disso seria grave não fosse dar-se o caso de até o líder parlamentar de um partido estruturante do regime confundir Diogo Freitas do Amaral com Adelino Amaro da Costa. E teimar.
Os indicadores económico-sociais permitem-nos ver a distância a que estamos do Estado Novo e da primavera marcelista. Em 1975 as nossas estatísticas indicavam que havia 122 médicos por cada mil pessoas; em 2023 já eram 578 para os mesmos mil. Os enfermeiros eram 205, hoje são 783. A esperança média de vida era em 1970 de 67 anos. Em 2023 é superior aos 80. Em 1975 apenas 60% dos partos ocorria em hospitais e clínicas. Actualmente são 99,8%. O número de habitações mais do que duplicou. No início da década de 70 do século XX havia 53% de habitações sem água canalizada; em 36% não havia electricidade e 40% não tinha esgotos. Hoje não se constrói nenhuma que não tenha tudo isso. A taxa de analfabetismo era em 1970 de 25,7%, mas nas mulheres era superior a 30%. Hoje são 3,1% os analfabetos. É muito menos sem deixar de ser um número triste e avassalador. São mais de 250 mil os portugueses que não sabem ler nem escrever. A mortalidade infantil desceu colocando-nos entre os dez países mais seguros para se nascer. O número de estudantes no ensino superior aumentou sete vezes. A mulher adquiriu outros papéis. Muitas puderam deixar de ser parideiras militantes para abraçarem carreiras profissionais sendo ao mesmo tempo mães.
Quase tudo mudou. Muitos dirão que quase tudo mudou para melhor. Eu também.
Mas quando num país como o meu, o nosso, se verifica que em 1985 as mulheres recebiam um salário que era, em média, inferior ao dos homens em 23,2% nos cargos superiores, e em 2022 essa diferença aumentou para 25,6%, é porque há qualquer coisa que não está a funcionar. Há o dobro das casas. Porém, há mais de 80 mil famílias com carências habitacionais graves. E há mais de 700 mil habitações devolutas. Há dois anos, uma sondagem indicava que mais de 80% dos portugueses não estavam plenamente satisfeitos com a sua democracia. E o ano passado uma outra sondagem revelava que apenas dois em cada dez portugueses confiavam no Governo e na Assembleia da República. Nos vinte anos anteriores ao 25 de Abril de 1974, mais de um milhão e meio de portugueses emigrara. Segundo a ONU, em 2024 serão 2,3 milhões os portugueses nascidos em Portugal que vivem no estrangeiro. Não estamos a falar de filhos de emigrantes. Quanto ao estado dos tribunais e à situação do Ministério Público nem vale a pena falar. Acabaram os tribunais plenários, é verdade, mas a imagem que os portugueses hoje têm do sistema judicial é a de uma coutada atávica sem rei nem roque, ao serviço dos ricos e poderosos, das corporações e dos bandidos das seitas do regime, e em muitos casos entregue a gente frustrada que se preocupa com tudo menos com a realização da justiça em tempo útil. Há excepções? Há. Muitas. Há, felizmente, gente séria e decente. É para esses que escrevo. São os que me importam.
Gente séria e decente que com o apodrecimento do regime e das instituições não se revê com força nem poder suficiente para fazer a mudança a que todos aspiram. Porque os sonhos dos votantes do Chega, sendo portugueses como os outros, não são diferentes dos sonhos de quem vota no PSD, no PS, no IL, no BE, no PAN ou no PCP. Todos aspiram à mesma dignidade, ao mesmo bem-estar, a um tecto digno, à mesma decência, à mesma saúde, à mesma educação, à mesma segurança.
Perguntar-me-ão então que solução aponto para tão deplorável estado de espírito. Responderei dizendo que defendo uma revolução. Uma revolução na verdadeira acepção da palavra. Uma revolução integral. Não um golpezinho misericordioso num regime podre que se transformou numa festa bunga-bunga permanente para algumas famílias que engradeceram à sombra dos partidos. Uma revolução sem dó para com os quadrilheiros das juventudes partidárias que se assenhorearam do regime e tomam conta de uma casta de portugueses mansos que só sai à rua quando lhes cravam um ferro curto nos bolsos.
Uma revolução que leve por diante o que se começou em 25 de Abril de 1974. Uma revolução que preservando-nos a alma nos mude os costumes, os vícios, as manhas e as entranhas da mentalidade. Uma revolução que nos faça sair do estado de letargia em que nos colocamos. Uma revolução que abane os alicerces do sistema judicial, que a todos nos eduque nas virtudes do verdadeiro espírito republicano, que desfira golpes sem parar nas oligarquias partidárias, nos gangues que se apoderaram do regime, uma revolução que dê uma machadada no corporativismo, no exibicionismo da mediocridade, na falta de vergonha da ignorância, que construa um sistema fiscal verdadeiramente distributivo, sem manhas, que faça assentar a democracia num sistema eleitoral moderno e mais justo, que rasgue auto-estradas para o mérito, que premeie a intervenção cívica, que proteja quem tem de ser protegido, que seja implacável com os poderosos que falham e rigoroso com todos os outros. Uma revolução assente na ética política, no conhecimento e na sensatez. Uma revolução que não marginalize os melhores para premiar os mais espertos dos piores. Uma revolução digna desse nome, que afaste o medo que nos rodeia, que dê um pontapé na falta de coragem e no comodismo, uma revolução que não nos castre diariamente a identidade e faça de nós uns perfeitos eunucos cívicos, sempre aos saltinhos, sempre contentinhos com mais um subsídio e um golo do CR7. Uma revolução que não atire o bebé ao rio com a água do banho.
Está, pois, na hora de fazermos a revolução.
Cinquenta anos, para nós, portugueses, não é nada. Para a nação é muito tempo quando ainda está toda uma revolução por fazer. Quando há toda uma mentalidade para mudar. Quando há um país para amar e uma nação para honrar. Não percamos mais cinquenta anos. Comecemos hoje a revolução. Em casa, nas escolas, nos partidos políticos, nos sindicatos, nos quartéis, nas ruas. Antes que a nova fradalhada do regime crie a carreira de dona de casa.
(Hoje, no Ponto Final)
Uma ideia para comemorar tão significativa data na vida de todos nós, seria passar umas horas a ler publicações não espúrias sobre os últimos 50 anos da História de Portugal. Sobre a liberdade. Sobre a democracia. E reflectir.
Mas posso apostar que os acérrimos censores ocupacionais irão livre e democraticamente até outras paragens aproveitar a ponte, ainda que "opcional", que a liberdade lhes conquistou.
A L-Azular em 50 anos, temos cerca de 40 e muitos deles, uns melhores, outros, assim assim, iguais nas diferenças mas sem concretas benfeitorias de conteúdo.
Podemos fazer uma retrospectiva e sopesar conscientemente os prós, os contras, as dúvidas e encerrar preconceitos e teimosias numa caixa de platina iridiada, tirar as lentes coloridas que nos distorcem a visão e pensar em Portugal. No país, no povo e no futuro.
Seria bom fazê-lo. Portugal não somos apenas eu e tu.
Os pescadores desportivos de conflitos, que vociferam fel diariamente em todos os canais de comunicação, blogues inclusive, poderiam, por exemplo ajudar o SNS a ter menos congestão e a evitar as necessárias e recorrentes angioplastias, tão essenciais ao seu bom, melhor, ou somente e apenas funcionamento? Viver em liberdade é saber aceitar e debater sugestões construtivas e não apenas destruir o que é praticamente inexistente e se encontra preso por um fio.
Faz 50 anos que ganhámos a liberdade. De há 50 anos para cá, temos vindo a deturpar mais e mais o seu significado, em nome de estapafurdices cada vez mais evidentes e incongruentes.
Há viver em liberdade e morrer por ela.
Morrer não é apenas perder a vida. É ver-se apagado de tudo o que se foi e em que se acreditava e pelo qual se lutou. É ver-se abandonado pela liberdade que se ajudou a parir.
Podemos, quem sabe, voltar a ser (mesmo) livres e grandes e a erradicar a tristeza dos olhos da liberdade. Se existe algo que nunca devemos esquecer é que
Fomos Heróis
P.S. Fomos Heróis sim! Sem superpoderes, fatos especiais, golpes de cintura ou inteligência artificial. Fomos Heróis apenas com uma camisa aberta no peito e a inabalável vontade de ser livre.
No Congresso do CDS ficou a saber-se que o Governo iria criar uma comissão para comemorar os 50 anos do 25 de Novembro.
As comemorações são, já se sabe, uma chatice, excepto se os respectivos feriados calharem junto ao fim-de-semana.
Fazem todavia falta, a gente felicita-se pelo que as datas celebram, mesmo que vá à praia, e não levaria a bem que o viver em comunidade não tivesse as suas liturgias.
A esquerda no seu conjunto torce o nariz à decisão. Isso é compreensível da parte do PCP porque foi o principal derrotado naquela data e pôs em banho-maria a partir daí o seu sonho de uma sociedade comunista; e do Bloco, que veio a recolher o rebotalho ultraesquerdista daquela época, que queria um comunismo mais comunista do que o da URSS, e que hoje recicla em causas sortidas tendentes a melhorar o capitalismo até que este deixe de o ser.
Já não é da parte do PS, que foi na ordem civil o principal vencedor do confronto. E que Mário Soares tenha liderado o combate por ter o fantasma de Kerensky a assombrá-lo, e jogar portanto a sua sobrevivência, não lhe tira o lugar histórico que justamente por isto merece.
Que a maior parte dos viventes não existisse, ou não se lembre, naqueles tempos atros, explica talvez que possa engolir as falsificações em curso, que omitem as prisões sem culpa formada, o cerco da AR, as ocupações selvagens, os saneamentos e todo o restante breviário das revoluções comunistas, que viria aliás mais tarde a ter um filho póstumo sob a forma da organização terrorista PRP-25 de Abril, sob a jovial liderança do criminoso Otelo.
Mas o PS é uma instituição, tem de ter memória. Fingir não a ter é preservar a amizade das demências à sua esquerda – já foi e pode voltar a ser útil, mas é uma desonestidade cínica.
Vivi as duas datas, recordo quase tudo, e sofro de irreprimível tendência para interpretar os factos, as pessoas e as coisas, à minha maneira. No caso, é esta:
Não há um 25 de Abril, mas quatro: o inicial (o dia inteiro e limpo, na formulação de Sofia, uma poetisa sobrevalorizadíssima, como o futuro dirá), que foi na realidade uma quartelada – os oficiais milicianos poderiam ombrear com os de carreira, numa complicada história de tempo de serviço que anda por aí contada em livros que podem ser escarafunchados por quem for curioso, e isso não podia ser. O pano de fundo era uma arrastada guerra, cujo fim não se via e que, não sendo particularmente mortífera, cobrava o seu preço sob a forma de uma punção gigantesca no Orçamento de Estado (à volta de um terço, em média nos 13 anos que durou) e subtração de alguns anos à vida de homens no início da idade adulta.
Este pano de fundo era sentido pela população no seu conjunto, e portanto também pelos militares. E é um artigo de fé sem nenhuma sustentação (salvo o palpite) que houvesse um generalizado apoio à guerra colonial.
Havia militares com consciência política, e inclusive alguns comunistas, mas a maioria, como a dos civis, tinha umas generalizadas ignorância e resignação em tal matéria.
A quartelada ganhou com facilidade porque o regime, exaurido, não teve quem o defendesse. Um golpe militar, porém, precisa de uma legitimação ideológica que o justifique. E aparece aqui o segundo 25 de Abril, primeiro sob a forma de convite aos generais tidos como desafectos do regime e depois com o nascimento de clivagens políticas no seu seio, a começar logo na Junta de Salvação Nacional, que incorporava água e azeite como Spínola e Rosa Coutinho. Em 28 de Setembro Spínola e outros caíram e a Junta esquerdizou-se, deriva que culminou com o golpe mal explicado ainda, ao menos para mim, de 11 de Março de 1975 e a criação do Conselho da Revolução, três dias depois.
E vão dois. O terceiro é o PREC. Este assentou na inicial explosão de alegria popular logo no próprio dia 25 de Abril, sabiamente explorada pelo savoir-faire do aparelho comunista e, sobretudo a partir do referido 11 de Março, consistiu na liderança ideológica do PCP (com alguns resquícios de folclore revolucionário protagonizados por uma nuvem de grupúsculos hiper-esquerdistas, como a UDP, ou União de Delatores e Pides, como dizia o MRPP, outra seita, esta da variedade maoísta, o MDP, a LCI, o MES e outras 789 formações).
Do que se tratava era da cubanização de Portugal, sob a direcção bicéfala de Álvaro Cunhal como ideólogo e grande líder das massas (para utilizar o jargão querido a leninistas) e Vasco Gonçalves, o coronel de serviço à revolução.
O 25 de Novembro veio garantir que Portugal seria uma democracia liberal, com o seu corolário de liberdade de opinião, eleições legítimas, etc., e abrindo a porta à adesão à CEE. Ou seja, é o quarto 25 de Abril, que regressa ao segundo e o consagra definitivamente. É confuso? Um pouco. Acontece muito com períodos conturbados.
Vejamos portanto as coisas com clareza: O segundo 25 de Abril pode ser celebrado (por quem não seja saudosista do Estado Novo) por causa da lembrança do vento de alívio e esperança que varreu o país no próprio dia e nos seguintes, antes de a esquerda revolucionária empestar os ares; quem desfila na Avenida da Liberdade são os saudosistas do PREC e os socialistas, mas estes apenas por causa da amálgama interesseira que fazem do que se passou, envolvendo o mau e o bom na mesma aura romântica de tempos imaginariamente felizes; quem desfila naquela Avenida, se for de direita, está equivocado no que celebra e nas companhias. E não me venham falar de tolerância e convivência, estas servem para regular o convívio entre pessoas, não para abastardar memórias e falsificar passados; e, finalmente,
O 25 de Abril bom nunca poderia ser celebrado se o 25 de Novembro não o tivesse salvo. Donde, mon coeur balance: qual é a data mais importante? A mim me parece a primeira, pela mesma razão que D. João II talvez tenha sido o mais importante dos nossos reis, mas não poderia ter existido sem D. Afonso Henriques. O melhor, na dúvida, é celebrar as duas datas em pé de igualdade.
Este assunto, que não contende com a qualidade ou falta dela da nossa vida, tem um valor simbólico, e haverá decerto muita gente a desvalorizá-lo por isso. Mas trata-se do fio da História que faz com que sejamos Portugueses de um certo assim, e não assado. Isso conta, mesmo que usemos a próxima quinta-feira apenas para ir passear a pé se o tempo estiver de feição, ou de carro se não estiver. Que eu, na verdade, vou mas é almoçar à Gafanha da Encarnação.
Como é curial o Teatro Nacional D. Maria II acolhe um "ciclo de Teatro para celebrar a Liberdade", integrando-se nas comemorações do cinquentenário do 25 de Abril.
O regime democrático que só foi possível construir depois de 74, celebra este ano meio século. É uma bela idade.
Com os pés nos dias de hoje e olhando para aquela madrugada tão esperada, para aquele dia inicial inteiro e limpo, assim magistralmente descrito por Sophia de Mello Breyner, observamos uma incrível viagem, cheia de expectativas e esperanças, de sustos e sobressaltos e também de realizações e conquistas.
Estava redondamente enganada a brigada do reumático do tempo de antigamente, que não nos julgava capazes nem com maturidade para sermos livres. É claro que nem sempre escolhemos bem, mas essa é também uma das maravilhas da democracia. Tal como na vida, por vezes só se aprende depois de bater com a cabeça na parede e há conclusões inalcançáveis à primeira tentativa.
O mundo de hoje é muito diferente do de então. A actualidade assusta-nos, mas só quem não viveu nos idos de 70 e 80 do século passado, na iminência de um fim do mundo termonuclear é que pode acreditar que as dores de hoje nunca antes foram sentidas. A divisão do mundo em dois blocos de então deu lugar a um mundo multipolar de alianças de geometria variável que leva a que alguns países colaborem numa região do globo e ao mesmo tempo se combatam por procuração noutra. O nosso mundo, o mundo de Portugal, é o mundo aberto. A geografia e a identidade fizeram de nós membros de pleno direito do que se designa por Ocidente. A história e a aventura fizeram de nós a quinta língua mais falada e, por isso, capazes de comunicar em qualquer canto do mundo. E isso é um incrível super-poder.
O Portugal de hoje é também muito diferente do de então. Nestes cinquenta anos, quase que triplicaram os portugueses com mais de 65 anos, o que sendo positivo em termos civilizacionais, faz com que o futuro tenha perdido peso político. É da natureza das coisas que os eleitores mais velhos privilegiem os benefícios imediatos ao invés das expectativas futuras. Por isso, é preciso perguntar como é que hoje se podem garantir políticas de longo prazo. Não é apenas a luta pelo ambiente que encaixa nesta lógica, são também as dívidas contraídas hoje, para melhorar as próximas sondagens, que condicionarão as decisões futuras. O filósofo espanhol Daniel Innerarity compara o colonialismo territorial de outros tempos, em que se retiravam benefícios sobre os “de fora”, com o colonialismo do futuro, em que se retira benefícios sobre os “de depois”. Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos EUA, questionou-se se não se deveriam rever todas as leis ao virar de cada geração. Se cada nova vaga de cidadãos é como se uma nova nação emergisse, qual a legitimidade de lhe impor leis lavradas por terceiros?
A emigração jovem, que não pára de aumentar, agrava este desequilíbrio. Dizem-nos que demograficamente, e nas transferências para a Segurança Social, os imigrantes que recebemos compensam os que saem, mas se esses jovens estrangeiros não podem votar, como é que os jovens portugueses poderão ter uma palavra efectiva nos destinos do país?
* Texto publicado no jornal O Portomosense
Meio século depois do 25 de Abril, chegámos a isto: queremos a democracia para nós enquanto toleramos e até aplaudimos a implantação de ditaduras noutros quadrantes. Tenho pensado nisto enquanto escuto à minha volta várias vozes mostrando indiferença ou até uma discreta simpatia pelos regimes de Cabul e de Teerão, entre outros.
Ao ouvir isto concluo, uma vez mais, que pecamos por falta de apego à liberdade. Tenho a convicção de que muitos portugueses não se importariam de voltar a ver por cá um regime "musculado". Só isso explica a defesa que fazem, nas redes sociais, dos regimes autoritários ou ditatoriais implantados além-fronteiras.
O mais contraditório é que muitas das pessoas que emitem opiniões deste género estão sempre a enaltecer o "nosso" 25 de Abril. Enquanto negam que outros povos tenham o seu próprio 25 de Abril. Democracia aqui, tudo bem; ditadura noutros países, tudo bem também.
«Não me venham falar em direitos humanos», vou lendo e escutando demasiadas vezes. Frase que poderia ter sido proferida por Salazar, reeditada neste Portugal do século XXI. Como se a atracção pelos regimes de "pulso forte" estivesse inscrita no nosso código genético. E se calhar está mesmo.
(Comício na Fonte Luminosa, Lisboa, Julho de 1975)
Muito acertadamente o presidente da Câmara de Lisboa anunciou a comemoração do 25 de Novembro de 1975, data crucial para a instauração do vigente regime de democracia liberal. Detendo uma presidência minoritária da assembleia municipal, Carlos Moedas viu a sua oposição autárquica votar a condenação dessa iniciativa. Agora, nas vésperas da sua realização, vê a imprensa institucional resumir essa celebração a um acto da "direita" (ver Expresso, em artigo de hoje assinado por João Diogo Correia).
Esta é uma situação interessante. De facto, é uma caso paradigmático de como a história serve para (re)construir o presente, e a este manuseá-lo, quantas vezes manipulá-lo. Pois para quem tenha um mínimo de noção do que foi o processo subsequente ao 25 de Abril (então dito PREC) será cristalina a memória de que houve dois grandes conflitos, então dirimidos e depois simbolizados por iniciativas militares ocorridas. Cronologicamente primeiro foi o que opôs as forças mais atreitas a uma relativização da democratização institucional e social e à negação de uma urgência da descolonização - ditas de "direita" e algumas das quais mais atreitas à recuperação do "anterior regime" -, a uma amálgama muito abrangente de correntes ideológicas à sua "esquerda", "centro" incluído: algo simbolizável pela evocação do 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975. É evidente que o teor deste conflito, e o conteúdo das oposições eclodidas nessas iniciativas militares, é homólogo ao da revolução de 25 de Abril de 1974 e assim por este simbolizado, neste comemorado.
O segundo grande conflito, cuja veemência eclodiu cronologicamente depois, foi o que opôs feixes de correntes políticas que subscreviam a instauração do actual regime de democracia liberal - que abarcavam, grosso modo, da "democracia-cristã" à "social-democracia" dita "socialismo democrático" - a uma miríade de forças políticas de extracção marxista revolucionária, incluindo desde perspectivas então ditas "terceiro-mundistas" (o que hoje se chamaria "alterglobalistas") até à dita "extrema-esquerda", polvilhada de uma pluralidade de versões do ideário comunista.
Este conflito, que permitiu a instauração do nosso regime actual, teve momentos civis relevantes - como a luta contra a unicidade sindical reclamada pelo PCP, ou o enorme e histórico comício da Fonte Luminosa convocado pelo PS (que invoco na fotografia acima). E, grosso modo, terminou na movimentação militar de 25 de Novembro de 1975, com a derrota das forças militares radicais adeptas do comunismo, então dito de "extrema-esquerda", e com o anúncio do PCP da sua cedência à instauração de uma democracia liberal parlamentar - algo que poucos meses havia negado. Ou seja, o "25 de Novembro" é um marco fundamental na instauração da nossa democracia mas remete para um conflito que não era presente, e como tal não é hoje simbolizável, no "25 de Abril". Grosso modo, representou a vitória daqueles que reclamavam "A Europa Connosco", como logo depois bem clamou o PS de Mário Soares.
Acontece que a liturgia - oficial e a dos opinadores predominantes no regime - tem escondido estas diferenças. O constante repúdio pela celebração do "25 de Novembro" quer instaurar, através da manuseamento do ritual da república, uma versão ligeiramente diferente da História nacional. Mas muito mais do que isso, através dessa ritualização da república, procura manipular o Presente nacional. E vem conseguindo tal feito... Ou seja, quer obliterar o dado crucial da instauração democrática, esse de que oposição fundamental foi a existente entre a esmagadora maioria da população e dos partidos que nas suas diferenças se filia(ra)m na tal "Europa Connosco", e aquelas forças muito minoritárias que subscreviam os ideários ditatoriais e totalitários do fascismo e/ou do corporativismo e o das plurais formas de comunismo.
Neste âmbito a refutação da relevância simbólica do "25 de Novembro" quer fazer esquecer que a linha de fractura fundamental daquela época, e nos tempos subsequentes, foi a entre forças democráticas (do PS para a sua direita) e o radicalismo ditatorial dos marxismos revolucionários. Querendo instaurar uma mitografia, mais adequada ao mero jogo político parlamentar actual, essa que propaga a ideia de que a fractura ideológica e social estruturante é a que apartou e aparta o PS e a sua esquerda do PSD e a sua direita. Mitografia reproduzida ritualmente todos os anos na festividade "25 de Abril" que decorre sob o velho ideário "Frente Popular", convocado para o ritual desfile na "Avenida da Liberdade". Congregando os efectivos e militantes adversários da "democracia" com efectivos e militantes adeptos da "democracia". Apenas para, com o sagrado da "festa", assinalar que os "outros" - os quais foram e são, neste continuado processo, os efectivos democratizadores - é que são antidemocratas.
50 anos depois do 25 de Abril não vem "grande mal ao mundo" (ao país) com este aldrabismo ritual. Mas serve para as campanhas eleitorais - e para uma ou outra ocasional geringonça, nacional ou autárquica. Mas é evidente que é preciso ser muito atrevido para contestar a relevância democratizadora do "25 de Novembro"... E como tal sempre urge reafirmar 25 de Novembro Sempre!
Há uns meses fui convidado para uma conversa sobre o "25 de Abril". Elaborei um pouco sobre o que aqui afirmo, muito superficialmente, até porque no estava no estrangeiro - diante de gente que conhecerá bem menos do nosso país. E também porque num contexto daqueles - celebração no estrangeiro - não é curial polemizar. Fiz um guião para a minha comunicação, à qual chamei "Portugal e o 25 de Abril: a revolução dos cravos, 49 anos depois". Aqui fica a ligação, para quem tiver curiosidade e paciência.
Em jeito de rescaldo da agitada cerimónia do 25 de Abril, o canal do Parlamento transmitiu diversas imagens sobre o decorrer das mesmas. Numa delas ouvimos o Presidente da Assembleia da República a falar num círculo de outras figuras do regime, onde se inclui o Presidente Marcelo.
O teor e o modo da conversa de Santos Silva fez-me lembrar um daqueles espertalhões da escola, do café ou do emprego, que se gaba de um qualquer feito perante alguém que se pressupõe lhe ser adverso.
Não é descabido que sua função de PAR possa ser comparável à de um árbitro. Este caso mostra a sua vontade de entrar nas jogadas para favorecer uma das equipas. Entende-se que está satisfeito pelo seu desempenho. Comporta-se como quem relata, e repete o relato, da forma como acha ter sido o melhor jogador em campo. E foi tanta a sua parcialidade na partida que acabaram de jogar, que, conta ele satisfeito, um jogador da sua equipa favorita chegou ao ponto de o tentar acalmar: “Deixe estar, deixe estar.” E no balneário ecoam as risadas.
Num ambiente aberto, a conversa poderia servir para tentar avaliar a reacção dos demais e daí tentar entender o que é que realmente acharam sobre o seu desempenho, mas isso só seria possível num espaço onde críticas livres e francas fossem possíveis. Ali, essa lógica não existe. O seguidismo e a risada por imitação são a regra. Para o bem e para o mal, somos animais gregários.
No vídeo é possível ainda ver a leviandade com que distribui carimbos de “falta de integridade política” que, entretanto, quer corrigir para “falta de maturidade política”, a todos os que não são da sua equipa. Acredito que esse detalhe irá ser o filão que ele próprio e a imprensa irão explorar, o que disse ou não disse ou queria dizer. Cada uma das facções em que o PS vai dividindo o país, irá acreditar na versão que lhe for mais apelativa.
Numa tentativa de eliminar da memória dos que assistiram às imagens, já mandaram eliminar as imagens do canal do Parlamento. Certamente que os partidários do árbitro, que se gaba de ser parcial, irão dizer que uma conversa informal não deve transmitida, mas isso só sublinha o incómodo que, mesmo negando, sentem pela divulgação do ocorrido.
Os donos do regime estão rodeados de figurantes que imitam os cãezinhos que decoravam as chapeleiras dos automóveis dos anos setenta, que pachorramente acenavam a cabeça na direcção que a inércia lhe indicasse. Estão decadentes, velhos de espírito e comportam-se como caciques.
Mais do que um árbitro parcial, o que vi nestas imagens foram dois tipos (a conversa do PR também é enjoativa) que se comportam como quem confunde a pessoa que é, com a função que desempenha. Cada um deles, à sua maneira, sente que pertence à restrita elite que domina o estádio. Para além das homilias declamadas no seu púlpito, mostram-nos como é perene a natureza humana, como é inebriante a vaidade e, sem darem por isso, mostram-nos como é bela a democracia, que não retira humanidade aos seus actores, mas permite que, quando enjoados, os eleitores possam correr com os que acham ser o centro do universo.
Foto António Cabral
Os três Dês do 25 de Abril foram alcançados.
Descolonização, Democratização e Desenvolvimento.
Com estes no papo, por escolha própria, outros três ganharam raízes. A Dívida, a Dependência e a Demagogia.
Sem ambição, não sairemos deste charco de águas paradas.
(Salgueiro Maia, na lente de Alfredo Cunha)
Abaixo os fascistas e os filhos da ... acomodados que se colaram ao 25 de Abril!
Viva Portugal!
André Ventura vai organizar uma convenção com alguns parceiros e conhecidos, como Salvini e Bolsonaro, e escolheu para o evento o Campo Pequeno. Ou seja, vai cumprir o velho desejo de Otelo. Que estranha forma Ventura encontrou para comemorar o 25 de Abril.
O meu 25 de Abril, este ano, é assim: pintado de azul e amarelo. Em homenagem à sacrificada mas valente e heróica nação ucraniana.
Slava Ukraini!