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Em muitas das viagens que faço, seja em lazer ou em trabalho, no que não tem nada de inovador e acontecerá como muitos dos que por aqui e noutros lados me seguem, procuro conciliar as duas vertentes.
Por força da memória de um avô que não cheguei a conhecer, que foi despachado para o Tarrafal depois do golpe do 28 de Maio, a seguir deportado para Moçambique, e que hoje tem um largo no Barreiro com o seu nome, e de outros familiares e amigos que conheceram a agrura da prisão ou passaram pela António Maria Cardoso, no tempo da outra senhora, e que após o 25 de Abril de 1974 foram parar a Caxias, no PREC, ou estiveram à beira de um pelotão de fuzilamento em S. Paulo (Luanda), aprendi a dar o valor devido à liberdade que usufruo. Em quaisquer circunstâncias. Não só à física; também à de expressão e de manifestação. Talvez por isso também pague hoje o preço devido por essa liberdade, de que jamais abdicarei, para mim e para os outros, ainda que alguns sejam mais aparentados com vermes do que com humanos.
Ainda no meu tempo de faculdade fui algumas vezes jogar umas partidas de futebol a Caxias, dinamizadas por amigo e colega desse período.
E embora fosse bem acolhido pelo pessoal de serviço e os presos, para quem a nossa visita era sempre motivo de satisfação e de mais umas horas fora das celas enquanto decorriam os torneios de futebol, tive sempre uma sensação estranha: quando entrava sabia que algumas horas depois iria sair, de volta à minha vida, enquanto outros ali permaneceriam expiando as suas penas. Pagando a sua dívida, em muitos casos, por um erro não raro indesejado.
De muitos ouvi histórias, apesar de nunca me preocupar em querer saber a razão de ali estarem.
Eram homens, gente, como nós e que naqueles breves momentos apenas queriam jogar futebol, participar, conviver, falar com quem vinha de fora.
Mais tarde, já exercendo a profissão que ainda hoje tenho, continuei, contrariado a entrar em prisões. Vi as suficientes, em várias partes do mundo, para lhes ter um verdadeiro horror. Não há prisões boas, nem menos más. Há prisões. E há a liberdade. E homens livres.
Algumas impressionaram-me sobremaneira.
De duas, que visitei depois de reconvertidas em museus, conhecendo as suas histórias, jamais esquecerei: a infame “Hanói Hilton”, no Vietname, onde estive em 1995, e a sinistra Tuol Sleng, mais conhecida por S-21, em Phnom Phen, que há meia-dúzia de anos visitei no Cambodja e de que aqui um dia deixei registo.
Pensava ter conhecido a história das piores. A semana passada entrei numa que vai directamente para o top 3 pelas piores razões.
Trata-se da antiga prisão de Phu Quoc, um local paradisíaco, a sul do Vietname, no golfo da Tailândia e muito perto do Cambodja. O nome por que ficou conhecida diz quase tudo: “Inferno na Terra” (“Hell on Earth”).
Nas suas imediações ficam algumas das praias mais fabulosas do mundo, como Khem e Sao, mas ali a tortura, que tanto era exercida sobre criminosos comuns como sobre presos políticos, não conhecia limites.
A antiga prisão de Phu Quoc foi construída pelos franceses em 1949. Conhecida como Cang Cay Dua POW Prison Camp, passaria à história como “Coconut Tree Prison”.
No tempo dos franceses era considerada a maior prisão da Indochina, chegando a ocupar uma área de 40 hectares e albergando durante esse tempo cerca de 14 mil prisioneiros.
Na sequência dos Acordos de Genebra seria encerrada, em 1954, para logo no ano seguinte ser reaberta, até 1957. Não ficaria por aqui. O regime de Thieu reabriu-a em 1967 com o nome de “Vietnam-Phu Quoc Communist POW Prison Camp” e voltou a utilizá-la para albergar, torturar e matar prisioneiros políticos. Gente como quem me lê que pensava de uma maneira diferente.
Foi ali que vi as “tiger cages”. Não vale a pena descrever-vos o que então senti. Não vos quero incomodar durante o luto papal.
Remeto-vos, por isso, para um pequeno filme que me poupará as palavras neste Dia 25 de Abril, 51 anos depois de 1974.
Aqui deixo-vos agora as fotos que ali tirei. E também a foto de uma praia do outro lado do inferno.
É preciso que todos e cada um de nós tenha sempre presente que o horror se encontra muitas vezes paredes-meias com o paraíso. E que há uma linha muito ténue que os separa. Eu chamo-a de liberdade. E em cada dia que passa tenho medo de deixar de a ver.
Saibamos valorizar a liberdade que temos. Sejamos dela merecedores. Sejamos gente. Sem pieguices.
(créditos: Salgueiro Maia the Captain of April)
I. − [Correspond à libre I] État de celui, de ce qui n'est pas soumis à une ou des contrainte(s) externe(s).
«Comemorar o 25 de Abril» em dia de luto nacional.
(créditos: daqui)
Houve quem viesse criticar, quem se insurgisse, contra o facto das cerimónias do 25 de Abril – “agenda festiva”, escreveu-se –, tivesse sido "cancelada". Esta expressão surgiu em toda a comunicação social a que tive acesso após as declarações do ministro Leitão Amaro. João Gonçalves recomendou que “as vestais do “Estado laico” e do “fascismo nunca mais” fossem ler a legislação que define o luto nacional e as restrições que implica.
Eu, que não sou uma vestal do Estado laico, não emprenho pelos ouvidos nem participo em manifestações delirantes, tirando as que ocorrem de tempos a tempos no Estádio do Sport Lisboa e Benfica, onde mantenho – penso – sempre a distância e o bom senso –, pois que nem em pequenino gostava de “ajavardar”, fosse na linguagem ou nos actos – verifiquei a legislação e lá não encontrei nada que obrigasse ao cancelamento das “festividades”. Abrilistas ou outras.
O Governo veio depois "esclarecer" – não há nada que fique esclarecido à primeira – que afinal não havia cancelamento. Apenas um adiamento dos "momentos festivos".
Cada vez estou mais longe, graças a Deus, de algumas das preocupações dos meus compatriotas. E como não alinho em arraiais, e também não deverei conseguir votar nas próxima eleições – porque na CNE não sabem ler a lei e encerraram mais cedo do que o devido a actualização dos cadernos, impedindo-me de votar presencialmente, sendo que até hoje também ainda não chegou sobrescrito com a documentação para poder votar –, tive o cuidado de verificar o que se irá fazer em Itália, cujo Dia da Libertação cai exactamente a 25 de Abril. Este ano comemorar-se-á o 80.º aniversário da Libertação.
Pois bem, tanto quanto numa pesquisa rápida me apercebi, as mais altas figuras do Estado italiano, e todo o país comunal, não deixarão de celebrar, leia-se festejar, o Dia 25 de Abril, dia da libertação do nazifascismo, embora com um programa "aligeirado" quanto às principais figuras do Estado.
Na verdade, nesse dia, o Presidente Sergio Matarella e a Presidente do Conselho, Giorgia Meloni, estarão ambos em Roma, no Altare della Patria, na piazza Venezia, onde depositarão uma coroa de flores. Depois, Matarella, ainda convalescente após alguns problemas de saúde, seguirá para Génova, onde decorrerão as comemorações oficiais. Aí almoçará, regressando mais cedo a Roma para receber os dignitários estrangeiros que começarão a chegar para as exéquias fúnebres do Santo Padre.
As cerimónias oficiais devido ao luto oficial serão “aligeiradas” – "hanno spinto il Quirinale a sfoltire le voci in agenda", escreveu o la Repubblica, isto é, salvo melhor tradução, a "reduzir os pontos da ordem do dia" –, o que é bem diferente de cancelamento ou adiamento, embora por todo o país, todas as comunas italianas, incluindo Roma, e com excepção, creio, apenas de Ponte San Nicoló, no Veneto, que cancelou todas as cerimónias, de Norte a Sul, não se deixará de festejar, sublinho, festejar, celebrar, comemorar, o 25 de Abril.
Estou certo de que em Itália, onde o luto declarado foi de 6 dias, haveria muito mais razões, até pela proximidade ao Vaticano, para pura e simplesmente se anunciar o cancelamento ou o adiamento dos eventos oficiais. Não foi isso que aconteceu. E Meloni pode ter muitos defeitos, mas seguramente que não é de esquerda, menos ainda da esquerda radical. E também não é parva.
O Governo errante de Montenegro, se estava à espera do Conselho de Ministros, poderia ter enveredado pelo luto oficial a partir do próprio dia 26 de Abril – dia do funeral do Papa Francisco, em que talvez fizesse mais sentido iniciar o luto –, de maneira a não contender com o 25 de Abril. Não o quis fazer por mero tacticismo político, criando mais um motivo de discórdia e polémica em período pré-eleitoral. Aliás, bastaria observar o tom e o modo das declarações de Leitão Amaro para se perceber como a agenda e o estilo do “trumpismo” tomaram conta deste rebanho de ignaros e pastores sem mundo que, à direita hoje, à esquerda ontem ou amanhã, manda em Portugal. Governar é só para quem sabe.
E isto, refiro-me ao luto, não tem nada a ver com o facto de o Estado português ser por natureza laico, independentemente de o catolicismo ser a religião predominante no país e entrar pela nossa carne, de portugueses e ainda mesmo naqueles que se reconhecem como ateus, e só parar no tutano. Em causa está o respeito pelo falecimento de um Chefe de Estado de um país estrangeiro com o qual Portugal e os portugueses têm relações diplomáticas e de amizade há séculos. É válido para o defunto ou para outro qualquer.
Francesco, Francisco, Francis, qualquer que seja a língua em que pronunciem o seu nome foi um homem que marcou o seu tempo. Dentro e fora da Igreja. E não foi pelas más razões.
Pela sua bondade, pelo seu carácter, pela sua generosidade, por tudo aquilo que nos trouxe, a católicos, ateus, agnósticos, gente de outros credos, na recuperação de valores do humanismo cristão, na lealdade ao próximo e na entrega aos outros, no exemplo, no desprendimento, na genuinidade e lhaneza de carácter, na sua autenticidade de dimensão universal, usando a palavra e o credo como factor de união, e não de criação de conflitos, protegendo quem tem de ser protegido, procurando lavar e desinfectar o chão da sua Igreja, livrando-a de escaravelhos e delinquentes, criticando os dogmas, a estupidez, a imbecilidade e a criminalidade instalada, recebendo todos no seu seio, fazendo diferente até na hora da sua partida, mostrando ser capaz de com toda a lucidez voltar a escolher a sobriedade, a discrição, a herança e o recolhimento de Santa Maria Maggiore, não merecia que este fosse mais um momento de profundo atavismo moral dos matumbos que governam o nosso país.
Nunca, nos tempos mais recentes, se diria com mais propriedade que quiseram ser, e mostrar que são, "mais papistas do que o papa”.
Os Pauliteiros de Miranda virão a 1 de Maio. Os novos trauliteiros já estão em Lisboa.
P.S. Estou fora. Não me revejo nestes broncos, nem nos antecessores. E aqui, onde 25 de Abril não é feriado, a não ser na minha alma e no Consulado de Portugal e conexos, embora se celebre, muitos choram a perda de Francisco. Mas estou exausto, cansado, farto de tanta estupidez, de tanta discussão estéril, de tanto conflito inútil que me chega da Pátria. Na Igreja de Francisco havia lugar para todos. No Portugal de hoje, onde não se distingue o escrutínio da difamação, só há lugar para os sonsos, para os labregos, para os chicos espertos, para estas abencerragens, sejam eles quem for, que se revezam na ocupação da cadeira do poder, enquanto esperam que os governados, os lorpas, lhes ofereçam os votos e os aplausos, e veneradamente lhes dêem lustro aos sapatos “marron clarinho”.
O 25 de Abril começou a 24.
... venho lembrar este meu livro:
Algumas palavras da editora:
"Este talvez seja o único relato escrito sobre o que foi ser uma menina nos tempos da Revolução dos Cravos. Cristina Torrão, com sua prosa precisa e ágil, faz o leitor ver o que aconteceu quando a exploração, a desigualdade de género, a repressão sexual e a alienação cultural impostas pelo salazarismo estremeceram e desabaram sob o impacto libertador da Revolução dos Cravos".
O livro pode ser comprado aqui:
... ofereça livros!
(mais uma brasa para outra sardinha)
Links directos:
https://www.wook.pt/livro/a-revolucao-da-veronica-cristina-torrao/30105653
https://www.bertrand.pt/livro/a-revolucao-da-veronica-cristina-torrao/30105653
Dois livros, alguns excertos.
O primeiro livro:
“As crianças do 25 de Abril foram expostas à pornografia antes de saberem como se faziam bebés (…). A despontarem para a vida, viviam numa espécie de terra de ninguém, pela qual não se encontravam responsáveis. Pairavam no vazio formado entre o culto da liberdade sem limites e a crença salazarista mantida pelas mães e avós de que Portugal era um país mais temente a Deus, de melhores costumes, um oásis de santidade perante um estrangeiro devasso”.
“Ainda apática, saída de um mundo desprovido de sexo, um mundo em que os genitais eram porcos, males necessários para se expelirem os detritos do corpo, ela espantava-se com os cartazes e os títulos sugestivos das películas em cena no Sá da Bandeira, um verdadeiro templo da arte pornográfica, enquanto esperava pelo autocarro”.
“Sentindo-se impotentes perante o fenómeno e na sua tentativa desesperada de a manter agarrada às antigas convenções, os pais empurravam-na para uma dualidade de comportamentos, criavam a cultura do fingimento: a nossa casa é uma coisa e o mundo lá fora é outra. Dentro de casa, é feio falar de sexo; lá fora, o sexo é exibido em todo o lado. No meio, ficava o vazio, a tal terra de ninguém, (…) o fosso, que se cavava cada vez mais fundo”.
E o segundo livro:
“Nada, nem a inteligência, nem os estudos, nem a beleza, contava tanto como a reputação sexual de uma rapariga, o mesmo é dizer o seu valor no mercado de casamentos, onde as mães, seguindo o exemplo das suas próprias mães, se armavam em guardiãs".
“Ao sábado, em fila, casavam as raparigas de véu branco, que davam à luz seis meses mais tarde uns rapagões considerados prematuros. Presas entre a liberdade de Bardot, o gozo dos rapazes a dizer que ser virgem era doentio, as recomendações dos pais e da Igreja, não tínhamos escolha".
“Os discursos e as instituições estavam atrasados em relação aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível parecia-nos normal e irremediável".
O primeiro livro é de minha autoria: A Revolução da Verónica. Nunca me tinha acontecido sentir tão grande afinidade com um escritor, ou escritora. O mais interessante é que, quando comecei a ler o livro alheio, não o achei muito promissor.
Não comparo a qualidade da escrita. Aí, sinto-me como São João Baptista: não sou digna de lhe apertar as sandálias. Está em causa a comunhão de pensamentos, a complementação de ideias. E a escolha de palavras. Como “o fosso”. “Cada vez mais fundo”, num caso; “normal e irremediável”, no outro. Encaixam como duas peças de Lego.
Nota: plágio de ideias (da minha parte, claro), está fora de questão. Comecei a ler Os Anos, de Annie Ernaux, pela primeira vez, há dias. Por seu lado, A Revolução da Verónica existia há muito tempo, na minha gaveta. Na verdade, tentei, sem sucesso, publicá-lo por ocasião do 40º aniversário da Revolução de Abril. Acabou por acontecer apenas dez anos mais tarde.
Tive esta ideia de escrever sobre o 25 de Abril através dos olhos de uma criança. Estava eu, na altura, a três meses de completar os nove anos e escuso de referir o impacto causado na minha vida e na da minha família.
Não sei se A Revolução da Verónica transmite fielmente os acontecimentos. Afinal, já decorreram cinquenta anos e é sabido o tempo lançar-nos algumas armadilhas. Costuma dizer-se que não recordamos aquilo que se passou, mas o que julgamos ter-se passado. Por isso, a miúda protagonista não leva o meu nome. Porém, entre memórias, armadilhas e alguma ficção, penso que estas páginas transmitem a essência das vivências de uma criança e do esforço de adaptação aos novos tempos, surgidos, literalmente, da noite para o dia.
A Revolução da Verónica abrange o período entre 1973 e 1975. Não podia faltar o Verão, de facto, quente, em que completei os dez anos e em que fui, pela primeira vez, ao Algarve e a Lisboa. Nem tão-pouco podia faltar o "Outono Quente", do Norte. Afinal, vivíamos paredes meias com o RASP, em Vila Nova de Gaia. Sei, de facto, o que é estar em casa e ouvir rajadas de G3, a menos de cinquenta metros de distância, consequência da troca de galhardetes entre as forças enviadas por Pires Veloso e os SUV, infiltrados no quartel.
O livro inclui ainda um pequeno conto, A Festa da Revolução, esse sim, ficção pura. Além de referir o lado folclórico do 25 de Abril, centra-se nas vivências de uma adolescente da altura e nas consequências catastróficas, trinta anos mais tarde, geradas no contraste entre a mentalidade antiga e a mudança repentina.
A Revolução da Verónica está à venda na Feira do Livro de Lisboa, nos stands C19 e C20 (Dinalivro). Se ficaram curiosos e passarem por lá, talvez até peguem no livro, a fim de decidirem se o compram, ou não. Declaro-me, desde já, agradecida por esse simples gesto.
Nota: A Revolução da Verónica está igualmente à venda na livraria UNICEPE, na Praça de Carlos Alberto, no Porto.
Ontem, após o Bayern-Real Madrid, visto em grupo de amigos no café agora "must" dos Olivais, e enquanto se escorropichava a última "imperial", lamentei-me de estar esfaimado. Logo me levaram à Encarnação, onde decorrem as "festas populares". À chegada ouvia-se os UHF. Acorri, constatando que há quase 40 anos não via o grupo de António Manuel Ribeiro ao vivo, laivos saudosistas até.... Quando lá chegámos tocavam a célebre "Cavalos de Corrida"... Depois vieram os "encore", uma "Grândola..." apenas vocal, entoada em registo roufenho com uma senhora da organização (quiçá da Junta).
Entretanto abastecemo-nos dos ambicionados petiscos, fornecidos nas barracas de "comes e bebes", vizinhas dos carrinhos de choque, eu com uma bifana das antigas, daquelas oriundas daqueles pântanos de molhanga com ar vetusto. Enquanto deglutia o manjar voou-me a mente para alhures. Um dos camaradas de comezaina notou-o e indagou o que comigo se passava.
"Estou velho!", resmunguei, lamentando-me. E expliquei-me. Pois no meu bairro de sempre, junto a amigos, diante de imperial e bifana, UHF a rockarem, no que atento é nisto: em pleno centro de Lisboa, esta Junta de Freguesia do PS, essa da presidente Rute Lima (colunista do "Público") e da "vereadora" Vanda Stuart, monta mais uma festarola e clama em cartaz "Há Cultura nos Olivais". E associa isso ao democrático e desenvolvimentista "25 de Abril".
E entretanto a Biblioteca dos Olivais, a antiga BDteca, está encerrada há três anos, ou mais, devido a obras até superficiais, mas tão proteladas de esquecidas, depois como se abandonadas, pois nunca cuidadas. Apenas por desinteresse desta gente PS. Vil e ignorante gente.
"Sou um reaccionário!", concluí. Rimo-nos. E pedimos mais uma rodada de imperiais.
Imagens RTP
Não sou entendido em antropologia, mas há coisas interessantes e divertidas no comportamento das pessoas.
Olhando para o que foram as celebrações do cinquentenário da revolução, já agora 25 de Abril sempre, ditadura nunca mais, não pude deixar de me pôr a imaginar quantos daqueles milhares que ontem festejaram a liberdade seriam capazes de arriscar a sua vida por ela. Claro que hoje a festejam, e todos os dias, felizmente, mas quantos daqueles seriam capazes de, como em Tiananmen, abrir os braços para fazer parar um blindado? Quantos teriam coragem de se manifestar na Praça Vermelha com uma folha de papel em branco? Quantos se atreveriam a questionar a divindade do herdeiro de turno da dinastia norte-coreana?
Serão os portugueses gente de uma gesta diferente dos chineses, russos ou norte-coreanos? Fomos, enquanto povo, capazes de algo impossível para outros?
Acredito que 99% da população mundial não pretende ir além de uma vida mais ou menos serena, sem a pretensão de deixar uma marca na história da humanidade. Isso está reservado a uma estreita minoria, que, custe o que custar, fazendo o que tiverem de fazer, consomem todas as suas energias em liderar os demais. Desses, alguns são pontualmente decentes, enquanto outros são gente do pior.
Enquanto isso, o grosso da maralha avança sempre em manada, aplaude quando vê aplaudir, assobia quando ouve assobios e até pode saltar a barricada, mas só depois de alguém a ter derrubado. E os que deitam abaixo as barricadas pertencem aos tais 1% de desalinhados.
Dizia Ortega y Gasset que o homem não pode ser separado da sua circunstância. Dizem-me que Otelo chorou copiosamente nas cerimónias fúnebres de Salazar. Os homens também choram, desde que colocados numa circunstância que a isso justifique. O mesmo Otelo que, noutra circunstância, foi determinante no desenrolar da operação “Fim do Regime”, não hesitou em avançar para o terrorismo bombista contra uma jovem democracia. Que personagem este Otelo! Destemperado, honesto e desconfiado, crédulo e excessivo, tal como o seu homónimo, o Mouro de Veneza.
Não tenho dúvidas que um dia, no futuro, os russos celebrarão o fim do putinismo. Não podemos imaginar como isso vai ocorrer, mas se não for por obra humana, nem sob a ameaça do seu arsenal nuclear, a lei da vida lhe abrirá uma excepção. Nessa circunstância, os que agora se acomodam respeitosa e silenciosamente um dia também irão para a rua celebrar e contar como era a vida no tempo de antigamente.
À excepção de uns quantos, escassos, que hoje estiveram nas cerimónias, assim como de outros, que já cá não estão, poucos dos que ontem cantaram, celebraram e folgaram seriam capazes de dar o primeiro passo contra os esbirros do Estado Novo.
Fernando Salgueiro Maia fotografado por Alfredo Cunha a 25 de Abril de 1974
Um verdadeiro herói nunca se considera herói.
Cumpre o seu dever não por ser um dever
mas por urgente imperativo de consciência.
Dá o nome
a cara
o peito às balas
e se for preciso a vida
pela causa que crê ser mais justa
entre todas as causas.
Um verdadeiro herói pensa em si próprio
só depois de pensar nos outros.
Avança sem temor
com a noção exacta
de que joga tudo numa ínfima fracção de tempo:
conforto, carreira, promoções, anonimato.
Ficando a partir daí
exposto ao escárnio imbecil
de todos os cobardes
que nunca dão um passo
fora do perímetro de segurança
mas quando a poeira assenta
logo surgem muito expeditos
a julgar os outros.
A julgar aqueles como tu:
os que arriscam
os que experimentam
os que se atrevem a romper as malhas
de um quotidiano medíocre.
Os que trocam a palavra eu pela palavra nós.
Os que nunca se conformam.
Um verdadeiro herói
é aquele que deixa a sua impressão digital
nas insondáveis rotas do destino humano.
Tu ousaste mudar um país.
Não pelo sangue
não pelo ódio
não pela intriga
mas pelo gesto
pelo rasgo
pelo exemplo.
Sabendo como é ténue a fronteira
entre glória e drama
quando alguém irrompe de madrugada
pronto a desafiar os guiões da História.
Fernando Salgueiro Maia.
Foste um herói
ao comandar a patrulha da alvorada.
Voltaste a ser um herói
quando decidiste retirar-te ao pôr-do-sol
deixando outros pavonear-se sob o clarão dos holofotes.
Recusaste ficar exposto na vitrina.
Recusaste servir de bandeira.
Recusaste ser "vanguarda revolucionária".
Recusaste ser antigo combatente.
Recusaste dar pretextos para dividir.
Tu que foste um poderoso traço de união entre os portugueses
naquelas horas irrepetíveis em que tudo podia acontecer.
Saíste do palco:
aquela peça já não te dizia respeito.
E nunca a tua grandeza se revelou tão evidente
como no momento em que abandonaste a ribalta
regressando à condição de homem comum.
Indiferente a ladainhas e louvores.
Longe da multidão
que fugazmente te acenou
na mais límpida de todas as manhãs.
Sem outra medalha além desta:
eternamente graduado no posto
de capitão da liberdade.
Poema meu, reeditado
(créditos: daqui)
Os portugueses e as suas instituições celebram em 25 de Abril o Dia da Liberdade. Eu chamar-lhe-ia antes, como os italianos, o Dia da Libertação (“Festa della Liberazione”). Muitos, mais novos, perguntarão que libertação é essa; e porquê. Outros, mais velhos, olharão para a data como mais uma simples efeméride referida a qualquer coisa que aconteceu num passado cada vez mais distante e que de tempos a tempos é recordada nas escolas, nos jornais, nas rádios e televisões. Não mais do que isso.
Há cravos vermelhos, discursos, fanfarra, cantoria e romaria. Há festa.
E depois, a seguir à festa, voltam todos à escola, os que a frequentam, ao trabalho, à inflação, ao desemprego, às doenças, aos subsídios, ao futebol, aos Santos Populares, ao fado, aos tribunais e às praias. Outros voltam às ruas para reclamarem por melhores condições de vida, um ambiente mais saudável, cidades mais sustentáveis, reivindicarem ajustamentos salariais, melhores carreiras, dignificadas e revalorizadas, por mais feriados, mais habitação, mais creches, mais saúde, mais igualdade. Querem mais, sempre mais, cada vez mais. E, no entanto, são incapazes de lutar pelo básico, de orientar as suas vidas por um verdadeiro altruísmo que nos liberte das amarras criadas à sombra da libertação, à sombra de Abril.
Quem viveu, quem ainda conheceu, quem se recorda do muito que aconteceu, em especial a partir da ocupação dos territórios portugueses na Índia e do início das guerras coloniais, do que foram esses anos que antecederam o 25 de Abril de 1974, estará hoje menos sensível a grandes mudanças. Dá a democracia – a verdadeira, não a que outros dizem “que funciona”, a que alguns ditos “democratas” se adaptam com grande facilidade, exultando-a, e que não passa de uma ditadura que distribui gelados quando não está ocupada a distribuir máscaras, controlar, vigiar, reprimir, prender e punir – como adquirida e cumprida com a bênção ritual e regular de formalidades. Tudo se esgota no poema decorado, lido, declamado e apregoado até à náusea, no jantar de confraternização, no entoar compassado e ritmado da canção.
Esquecendo, a avaliar pelas pérolas que se ouvem nalgumas entrevistas ou em concursos televisivos, que há quem confunda Otelo com um hostel ou Salazar com Soares, não sabendo quem foi Salgueiro Maia, desconhecendo que Ramalho Eanes foi Presidente da República. Nada disso seria grave não fosse dar-se o caso de até o líder parlamentar de um partido estruturante do regime confundir Diogo Freitas do Amaral com Adelino Amaro da Costa. E teimar.
Os indicadores económico-sociais permitem-nos ver a distância a que estamos do Estado Novo e da primavera marcelista. Em 1975 as nossas estatísticas indicavam que havia 122 médicos por cada mil pessoas; em 2023 já eram 578 para os mesmos mil. Os enfermeiros eram 205, hoje são 783. A esperança média de vida era em 1970 de 67 anos. Em 2023 é superior aos 80. Em 1975 apenas 60% dos partos ocorria em hospitais e clínicas. Actualmente são 99,8%. O número de habitações mais do que duplicou. No início da década de 70 do século XX havia 53% de habitações sem água canalizada; em 36% não havia electricidade e 40% não tinha esgotos. Hoje não se constrói nenhuma que não tenha tudo isso. A taxa de analfabetismo era em 1970 de 25,7%, mas nas mulheres era superior a 30%. Hoje são 3,1% os analfabetos. É muito menos sem deixar de ser um número triste e avassalador. São mais de 250 mil os portugueses que não sabem ler nem escrever. A mortalidade infantil desceu colocando-nos entre os dez países mais seguros para se nascer. O número de estudantes no ensino superior aumentou sete vezes. A mulher adquiriu outros papéis. Muitas puderam deixar de ser parideiras militantes para abraçarem carreiras profissionais sendo ao mesmo tempo mães.
Quase tudo mudou. Muitos dirão que quase tudo mudou para melhor. Eu também.
Mas quando num país como o meu, o nosso, se verifica que em 1985 as mulheres recebiam um salário que era, em média, inferior ao dos homens em 23,2% nos cargos superiores, e em 2022 essa diferença aumentou para 25,6%, é porque há qualquer coisa que não está a funcionar. Há o dobro das casas. Porém, há mais de 80 mil famílias com carências habitacionais graves. E há mais de 700 mil habitações devolutas. Há dois anos, uma sondagem indicava que mais de 80% dos portugueses não estavam plenamente satisfeitos com a sua democracia. E o ano passado uma outra sondagem revelava que apenas dois em cada dez portugueses confiavam no Governo e na Assembleia da República. Nos vinte anos anteriores ao 25 de Abril de 1974, mais de um milhão e meio de portugueses emigrara. Segundo a ONU, em 2024 serão 2,3 milhões os portugueses nascidos em Portugal que vivem no estrangeiro. Não estamos a falar de filhos de emigrantes. Quanto ao estado dos tribunais e à situação do Ministério Público nem vale a pena falar. Acabaram os tribunais plenários, é verdade, mas a imagem que os portugueses hoje têm do sistema judicial é a de uma coutada atávica sem rei nem roque, ao serviço dos ricos e poderosos, das corporações e dos bandidos das seitas do regime, e em muitos casos entregue a gente frustrada que se preocupa com tudo menos com a realização da justiça em tempo útil. Há excepções? Há. Muitas. Há, felizmente, gente séria e decente. É para esses que escrevo. São os que me importam.
Gente séria e decente que com o apodrecimento do regime e das instituições não se revê com força nem poder suficiente para fazer a mudança a que todos aspiram. Porque os sonhos dos votantes do Chega, sendo portugueses como os outros, não são diferentes dos sonhos de quem vota no PSD, no PS, no IL, no BE, no PAN ou no PCP. Todos aspiram à mesma dignidade, ao mesmo bem-estar, a um tecto digno, à mesma decência, à mesma saúde, à mesma educação, à mesma segurança.
Perguntar-me-ão então que solução aponto para tão deplorável estado de espírito. Responderei dizendo que defendo uma revolução. Uma revolução na verdadeira acepção da palavra. Uma revolução integral. Não um golpezinho misericordioso num regime podre que se transformou numa festa bunga-bunga permanente para algumas famílias que engradeceram à sombra dos partidos. Uma revolução sem dó para com os quadrilheiros das juventudes partidárias que se assenhorearam do regime e tomam conta de uma casta de portugueses mansos que só sai à rua quando lhes cravam um ferro curto nos bolsos.
Uma revolução que leve por diante o que se começou em 25 de Abril de 1974. Uma revolução que preservando-nos a alma nos mude os costumes, os vícios, as manhas e as entranhas da mentalidade. Uma revolução que nos faça sair do estado de letargia em que nos colocamos. Uma revolução que abane os alicerces do sistema judicial, que a todos nos eduque nas virtudes do verdadeiro espírito republicano, que desfira golpes sem parar nas oligarquias partidárias, nos gangues que se apoderaram do regime, uma revolução que dê uma machadada no corporativismo, no exibicionismo da mediocridade, na falta de vergonha da ignorância, que construa um sistema fiscal verdadeiramente distributivo, sem manhas, que faça assentar a democracia num sistema eleitoral moderno e mais justo, que rasgue auto-estradas para o mérito, que premeie a intervenção cívica, que proteja quem tem de ser protegido, que seja implacável com os poderosos que falham e rigoroso com todos os outros. Uma revolução assente na ética política, no conhecimento e na sensatez. Uma revolução que não marginalize os melhores para premiar os mais espertos dos piores. Uma revolução digna desse nome, que afaste o medo que nos rodeia, que dê um pontapé na falta de coragem e no comodismo, uma revolução que não nos castre diariamente a identidade e faça de nós uns perfeitos eunucos cívicos, sempre aos saltinhos, sempre contentinhos com mais um subsídio e um golo do CR7. Uma revolução que não atire o bebé ao rio com a água do banho.
Está, pois, na hora de fazermos a revolução.
Cinquenta anos, para nós, portugueses, não é nada. Para a nação é muito tempo quando ainda está toda uma revolução por fazer. Quando há toda uma mentalidade para mudar. Quando há um país para amar e uma nação para honrar. Não percamos mais cinquenta anos. Comecemos hoje a revolução. Em casa, nas escolas, nos partidos políticos, nos sindicatos, nos quartéis, nas ruas. Antes que a nova fradalhada do regime crie a carreira de dona de casa.
(Hoje, no Ponto Final)
Uma ideia para comemorar tão significativa data na vida de todos nós, seria passar umas horas a ler publicações não espúrias sobre os últimos 50 anos da História de Portugal. Sobre a liberdade. Sobre a democracia. E reflectir.
Mas posso apostar que os acérrimos censores ocupacionais irão livre e democraticamente até outras paragens aproveitar a ponte, ainda que "opcional", que a liberdade lhes conquistou.
A L-Azular em 50 anos, temos cerca de 40 e muitos deles, uns melhores, outros, assim assim, iguais nas diferenças mas sem concretas benfeitorias de conteúdo.
Podemos fazer uma retrospectiva e sopesar conscientemente os prós, os contras, as dúvidas e encerrar preconceitos e teimosias numa caixa de platina iridiada, tirar as lentes coloridas que nos distorcem a visão e pensar em Portugal. No país, no povo e no futuro.
Seria bom fazê-lo. Portugal não somos apenas eu e tu.
Os pescadores desportivos de conflitos, que vociferam fel diariamente em todos os canais de comunicação, blogues inclusive, poderiam, por exemplo ajudar o SNS a ter menos congestão e a evitar as necessárias e recorrentes angioplastias, tão essenciais ao seu bom, melhor, ou somente e apenas funcionamento? Viver em liberdade é saber aceitar e debater sugestões construtivas e não apenas destruir o que é praticamente inexistente e se encontra preso por um fio.
Faz 50 anos que ganhámos a liberdade. De há 50 anos para cá, temos vindo a deturpar mais e mais o seu significado, em nome de estapafurdices cada vez mais evidentes e incongruentes.
Há viver em liberdade e morrer por ela.
Morrer não é apenas perder a vida. É ver-se apagado de tudo o que se foi e em que se acreditava e pelo qual se lutou. É ver-se abandonado pela liberdade que se ajudou a parir.
Podemos, quem sabe, voltar a ser (mesmo) livres e grandes e a erradicar a tristeza dos olhos da liberdade. Se existe algo que nunca devemos esquecer é que
Fomos Heróis
P.S. Fomos Heróis sim! Sem superpoderes, fatos especiais, golpes de cintura ou inteligência artificial. Fomos Heróis apenas com uma camisa aberta no peito e a inabalável vontade de ser livre.
No Congresso do CDS ficou a saber-se que o Governo iria criar uma comissão para comemorar os 50 anos do 25 de Novembro.
As comemorações são, já se sabe, uma chatice, excepto se os respectivos feriados calharem junto ao fim-de-semana.
Fazem todavia falta, a gente felicita-se pelo que as datas celebram, mesmo que vá à praia, e não levaria a bem que o viver em comunidade não tivesse as suas liturgias.
A esquerda no seu conjunto torce o nariz à decisão. Isso é compreensível da parte do PCP porque foi o principal derrotado naquela data e pôs em banho-maria a partir daí o seu sonho de uma sociedade comunista; e do Bloco, que veio a recolher o rebotalho ultraesquerdista daquela época, que queria um comunismo mais comunista do que o da URSS, e que hoje recicla em causas sortidas tendentes a melhorar o capitalismo até que este deixe de o ser.
Já não é da parte do PS, que foi na ordem civil o principal vencedor do confronto. E que Mário Soares tenha liderado o combate por ter o fantasma de Kerensky a assombrá-lo, e jogar portanto a sua sobrevivência, não lhe tira o lugar histórico que justamente por isto merece.
Que a maior parte dos viventes não existisse, ou não se lembre, naqueles tempos atros, explica talvez que possa engolir as falsificações em curso, que omitem as prisões sem culpa formada, o cerco da AR, as ocupações selvagens, os saneamentos e todo o restante breviário das revoluções comunistas, que viria aliás mais tarde a ter um filho póstumo sob a forma da organização terrorista PRP-25 de Abril, sob a jovial liderança do criminoso Otelo.
Mas o PS é uma instituição, tem de ter memória. Fingir não a ter é preservar a amizade das demências à sua esquerda – já foi e pode voltar a ser útil, mas é uma desonestidade cínica.
Vivi as duas datas, recordo quase tudo, e sofro de irreprimível tendência para interpretar os factos, as pessoas e as coisas, à minha maneira. No caso, é esta:
Não há um 25 de Abril, mas quatro: o inicial (o dia inteiro e limpo, na formulação de Sofia, uma poetisa sobrevalorizadíssima, como o futuro dirá), que foi na realidade uma quartelada – os oficiais milicianos poderiam ombrear com os de carreira, numa complicada história de tempo de serviço que anda por aí contada em livros que podem ser escarafunchados por quem for curioso, e isso não podia ser. O pano de fundo era uma arrastada guerra, cujo fim não se via e que, não sendo particularmente mortífera, cobrava o seu preço sob a forma de uma punção gigantesca no Orçamento de Estado (à volta de um terço, em média nos 13 anos que durou) e subtração de alguns anos à vida de homens no início da idade adulta.
Este pano de fundo era sentido pela população no seu conjunto, e portanto também pelos militares. E é um artigo de fé sem nenhuma sustentação (salvo o palpite) que houvesse um generalizado apoio à guerra colonial.
Havia militares com consciência política, e inclusive alguns comunistas, mas a maioria, como a dos civis, tinha umas generalizadas ignorância e resignação em tal matéria.
A quartelada ganhou com facilidade porque o regime, exaurido, não teve quem o defendesse. Um golpe militar, porém, precisa de uma legitimação ideológica que o justifique. E aparece aqui o segundo 25 de Abril, primeiro sob a forma de convite aos generais tidos como desafectos do regime e depois com o nascimento de clivagens políticas no seu seio, a começar logo na Junta de Salvação Nacional, que incorporava água e azeite como Spínola e Rosa Coutinho. Em 28 de Setembro Spínola e outros caíram e a Junta esquerdizou-se, deriva que culminou com o golpe mal explicado ainda, ao menos para mim, de 11 de Março de 1975 e a criação do Conselho da Revolução, três dias depois.
E vão dois. O terceiro é o PREC. Este assentou na inicial explosão de alegria popular logo no próprio dia 25 de Abril, sabiamente explorada pelo savoir-faire do aparelho comunista e, sobretudo a partir do referido 11 de Março, consistiu na liderança ideológica do PCP (com alguns resquícios de folclore revolucionário protagonizados por uma nuvem de grupúsculos hiper-esquerdistas, como a UDP, ou União de Delatores e Pides, como dizia o MRPP, outra seita, esta da variedade maoísta, o MDP, a LCI, o MES e outras 789 formações).
Do que se tratava era da cubanização de Portugal, sob a direcção bicéfala de Álvaro Cunhal como ideólogo e grande líder das massas (para utilizar o jargão querido a leninistas) e Vasco Gonçalves, o coronel de serviço à revolução.
O 25 de Novembro veio garantir que Portugal seria uma democracia liberal, com o seu corolário de liberdade de opinião, eleições legítimas, etc., e abrindo a porta à adesão à CEE. Ou seja, é o quarto 25 de Abril, que regressa ao segundo e o consagra definitivamente. É confuso? Um pouco. Acontece muito com períodos conturbados.
Vejamos portanto as coisas com clareza: O segundo 25 de Abril pode ser celebrado (por quem não seja saudosista do Estado Novo) por causa da lembrança do vento de alívio e esperança que varreu o país no próprio dia e nos seguintes, antes de a esquerda revolucionária empestar os ares; quem desfila na Avenida da Liberdade são os saudosistas do PREC e os socialistas, mas estes apenas por causa da amálgama interesseira que fazem do que se passou, envolvendo o mau e o bom na mesma aura romântica de tempos imaginariamente felizes; quem desfila naquela Avenida, se for de direita, está equivocado no que celebra e nas companhias. E não me venham falar de tolerância e convivência, estas servem para regular o convívio entre pessoas, não para abastardar memórias e falsificar passados; e, finalmente,
O 25 de Abril bom nunca poderia ser celebrado se o 25 de Novembro não o tivesse salvo. Donde, mon coeur balance: qual é a data mais importante? A mim me parece a primeira, pela mesma razão que D. João II talvez tenha sido o mais importante dos nossos reis, mas não poderia ter existido sem D. Afonso Henriques. O melhor, na dúvida, é celebrar as duas datas em pé de igualdade.
Este assunto, que não contende com a qualidade ou falta dela da nossa vida, tem um valor simbólico, e haverá decerto muita gente a desvalorizá-lo por isso. Mas trata-se do fio da História que faz com que sejamos Portugueses de um certo assim, e não assado. Isso conta, mesmo que usemos a próxima quinta-feira apenas para ir passear a pé se o tempo estiver de feição, ou de carro se não estiver. Que eu, na verdade, vou mas é almoçar à Gafanha da Encarnação.
Como é curial o Teatro Nacional D. Maria II acolhe um "ciclo de Teatro para celebrar a Liberdade", integrando-se nas comemorações do cinquentenário do 25 de Abril.
O regime democrático que só foi possível construir depois de 74, celebra este ano meio século. É uma bela idade.
Com os pés nos dias de hoje e olhando para aquela madrugada tão esperada, para aquele dia inicial inteiro e limpo, assim magistralmente descrito por Sophia de Mello Breyner, observamos uma incrível viagem, cheia de expectativas e esperanças, de sustos e sobressaltos e também de realizações e conquistas.
Estava redondamente enganada a brigada do reumático do tempo de antigamente, que não nos julgava capazes nem com maturidade para sermos livres. É claro que nem sempre escolhemos bem, mas essa é também uma das maravilhas da democracia. Tal como na vida, por vezes só se aprende depois de bater com a cabeça na parede e há conclusões inalcançáveis à primeira tentativa.
O mundo de hoje é muito diferente do de então. A actualidade assusta-nos, mas só quem não viveu nos idos de 70 e 80 do século passado, na iminência de um fim do mundo termonuclear é que pode acreditar que as dores de hoje nunca antes foram sentidas. A divisão do mundo em dois blocos de então deu lugar a um mundo multipolar de alianças de geometria variável que leva a que alguns países colaborem numa região do globo e ao mesmo tempo se combatam por procuração noutra. O nosso mundo, o mundo de Portugal, é o mundo aberto. A geografia e a identidade fizeram de nós membros de pleno direito do que se designa por Ocidente. A história e a aventura fizeram de nós a quinta língua mais falada e, por isso, capazes de comunicar em qualquer canto do mundo. E isso é um incrível super-poder.
O Portugal de hoje é também muito diferente do de então. Nestes cinquenta anos, quase que triplicaram os portugueses com mais de 65 anos, o que sendo positivo em termos civilizacionais, faz com que o futuro tenha perdido peso político. É da natureza das coisas que os eleitores mais velhos privilegiem os benefícios imediatos ao invés das expectativas futuras. Por isso, é preciso perguntar como é que hoje se podem garantir políticas de longo prazo. Não é apenas a luta pelo ambiente que encaixa nesta lógica, são também as dívidas contraídas hoje, para melhorar as próximas sondagens, que condicionarão as decisões futuras. O filósofo espanhol Daniel Innerarity compara o colonialismo territorial de outros tempos, em que se retiravam benefícios sobre os “de fora”, com o colonialismo do futuro, em que se retira benefícios sobre os “de depois”. Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos EUA, questionou-se se não se deveriam rever todas as leis ao virar de cada geração. Se cada nova vaga de cidadãos é como se uma nova nação emergisse, qual a legitimidade de lhe impor leis lavradas por terceiros?
A emigração jovem, que não pára de aumentar, agrava este desequilíbrio. Dizem-nos que demograficamente, e nas transferências para a Segurança Social, os imigrantes que recebemos compensam os que saem, mas se esses jovens estrangeiros não podem votar, como é que os jovens portugueses poderão ter uma palavra efectiva nos destinos do país?
* Texto publicado no jornal O Portomosense