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Delito de Opinião

Os melhores livros do meu ano (3)

Pedro Correia, 15.02.22

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À medida que os anos passam e as leituras se acumulam, cresce a apetência por revisitarmos obras que nos cativaram em décadas precedentes. Seja no domínio da ficção, seja em qualquer outro ramo literário.

Tem-me acontecido isso. E a tendência acentou-se em 2021, também por causa dos extensos períodos de confinamento vigentes em grande parte deste ano, que deixa poucas saudades. Neste contexto, a literatura tornou-se num passaporte para outras paragens. Mesmo quando existem impedimentos para a viagem física, podemos embarcar sempre na viagem literária.

Foi assim que reforcei o meu gosto pela releitura. Nunca dei o tempo por mal empregue neste reencontro com livros meus amigos. Sem necessitar de máscara ou distanciamento físico - a que alguns imbecis continuam a chamar «distanciamento social», incapazes de perceber a diferença entre uma coisa e outra.

Partilho convosco a lista dos dez melhores livros que fui relendo no ano que terminou: seis romances ou novelas de autores portugueses, dois romances estrangeiros, um ensaio literário e um diário. Por ordem alfabética, mantendo o critério assumido aqui e aqui.

 

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A CIDADE DAS FLORES, de Augusto Abelaira (1959). Lisboa transposta para Florença, no auge do fascismo, em 1939. O autor concebeu este cenário italiano, vinte anos antes, para ludibriar a censura salazarista. É o romance de uma geração confrontada com esta dúvida: ou envolve-se num combate talvez desesperado pela liberdade ou verga-se ao imobilismo.

 

A MISSÃO, de Ferreira de Castro (1954). Admirável novela do criador d' A Selva em torno de um dilema ético vivido numa missão católica em França, durante a ofensiva nazi em 1940. Como devem comportar-se os discípulos de Cristo perante um risco de ataque aéreo? Um padre ousar questionar o seu superior em nome de um bem maior que a segurança.

 

ADEUS, PRINCESA, de Clara Pinto Correia (1985). Em formato policial, um dos melhores romances portugueses da década de 80. Com Beja, Cuba e Baleizão como cenário. Funciona hoje também como documento daquela época num Alentejo que vivia a ressaca da revolução e o declínio da hegemonia comunista antes da entrada de Portugal na CEE.

 

CÂNTICO FINAL, de Vergílio Ferreira (1960). Um pintor, sabendo-se condenado pela doença, recolhe à aldeia natal para concretizar o seu último projecto: decorar uma capela há muito encerrada, onde quer deixar a sua marca artística. Enquanto vai lembrando as etapas mais relevantes da sua vida, dos sonhos da juventude às cicatrizes da idade adulta.

 

CONTA CORRENTE 3, de Vergílio Ferreira (1981). Diário do autor de Aparição que foi muito lido e comentado quando surgiu. Obra inimitável, que assinala o encontro do escritor com camadas mais vastas de leitores, só pode ser hoje encontrada em alfarrabistas. Estranhamente, nunca mais foi reeditada. E não é por falta de qualidade, longe disso.

 

DOMINGO À TARDE, de Fernando Namora (1961). Clarisse, jovem com leucemia prestes a despedir-se da vida, apaixona-se por Jorge, o médico que tenta devolver-lhe a saúde. Namora, que exerceu cínica no Instituto Português de Oncologia, assina aqui um dos seus melhores romances. Que poucos anos depois deu origem a um excelente filme.

 

GUIA PARA 50 PERSONAGENS DA FICÇÃO PORTUGUESA, de Bruno Vieira Amaral (2013). Um dos melhores ensaios literários surgidos na última década. De um escritor que também demonstra ser um leitor atento e meticuloso. Com o mérito acrescido de nos chamar a atenção para obras há muito esquecidas e que merecem ser revisitadas.

 

O BARÃO, de Branquinho da Fonseca (1942). Uma das raras incursões portuguesas na chamada novela gótica, marcada por uma atmosfera de mistério e assombro, que nunca chega a ser desvendada por completo. António José Branquinho da Fonseca foi mestre da ficção curta, mais psicológica do que social. Esta é considerada a sua obra-prima.

 

O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO, de John Le Carré (1963). Mal foi publicado, tornou-se um clássico instantâneo. Cada vez mais revalorizado à medida que o tempo passa. Ponto cimeiro de um subgénero na literatura de espionagem - a que traça um retrato impiedoso dos meandros da Guerra Fria. Com o sinistro muro assombrando a noite de Berlim.

 

SAYONARA, de James Michener (1954). Singular romance sobre o Japão ocupado por forças dos EUA nos anos subsequentes à II Guerra Mundial, quando outro conflito bélico já se desenrolava, na península da Coreia. Neste cenário, um oficial norte-americano envolve-se com uma actriz nipónica. Desafiando convenções e preconceitos atávicos.

Os melhores livros do meu ano (2)

Pedro Correia, 14.02.22

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Como referi anteriormente, há muitos anos que não lia tantos livros. Este biénio marcado pela pandemia, tanto em 2020 como em 2021, devolveu-me aos dias da adolescência em matéria de leituras. Se há males que vêm por bem, este foi um deles.

Cada vez tenho menos dúvidas: ler é a actividade intelectual que mais nos permite contrariar tendências dominantes, rejeitar o espírito de rebanho ou alcateia e mergulhar na subjectividade - no fundo, aquilo que nos diferencia dos restantes mortais. A literatura faz-nos viajar a qualquer momento no tempo e no espaço, abrindo-nos horizontes de toda a espécie. Graças a ela, ficamos a saber o que nos antecedeu e a conhecer a face oculta do que nos rodeia. E passamos até a ser iluminados sobre nós próprios.

Ontem destaquei aqui dez obras entre as cem completas que pude ler no ano passado. Hoje trago outras dez, mas só de autores estrangeiros: sete romances ou novelas, uma biografia, um ensaio satírico e um volume de crónicas memorialísticas. Alinhados também por ordem alfabética, para maior facilidade de consulta.

 

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A LARANJA MECÂNICA, de Anthony Burgess (1962). Poderosa distopia situada num futuro talvez mais próximo do que possamos imaginar. Trabalho notável também ao nível da linguagem: Burgess criou dezenas de neologismos que serviam de senha aos jovens delinquentes, violentos por natureza num Estado destituído de princípios morais.

 

A PRAGA ESCARLATE, de Jack London (1912). Como sobreviverá o ser humano num mundo apocalíptico? London morreu muito antes da bomba atómica, mas pressentiu um vírus letal com efeitos pandémicos nesta novela que nos fala do fim da civilização e do regresso do homem ao estado de natureza mais selvagem. Obra-prima, no tema e no estilo.

 

A REBELIÃO, de Joseph Roth (1924). Um olhar realista e sem complacência sobre a ruína social que submergiu a Europa nos anos subsequentes à I Guerra Mundial. Tendo como protagonista um antigo combatente austríaco mutilado no conflito que passa a lutar pela sobrevivência diária. Num outro combate, ainda mais implacável do que o anterior.

 

HEMINGWAY EN CUBA, de Norberto Fuentes (1984). Uma das melhores biografias do autor de Adeus às Armas, centrada nas duas décadas em que se radicou numa quinta a 15 km de Havana e da qual só saiu pouco antes de Fidel Castro proclamar a sinistra divisa «socialismo ou morte». Uma obra lamentavelmente inexistente em português.

 

O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA, de Gabriel García Márquez (1985). Talvez o melhor romance do talentoso autor colombiano, à época já galardoado com o Nobel da Literatura. Uma atribulada história de amor que resistiu a todas as vicissitudes e todas as tempestades, comprovando que o fracasso pode ser só uma palavra no dicionário.

 

O CONSERVADOR, de Nadine Gordimer (1974). Meticulosa digressão ao quotidiano dos anos de chumbo do apartheid, numa África do Sul já condenada pela comunidade internacional mas que teimava em resistir aos «ventos da História». Quando um próspero proprietário rural branco se viu abandonado pela própria filha, avessa ao regime racista.

 

O REI FAZ VÉNIA E MATA, de Herta Müller (2003). Galardoada em 2009 com o Nobel da Literatura, esta escritora nascida numa comunidade germânica da Roménia sentiu na pele a repressão da ditadura comunista de Ceausescu. Fala-nos dessa amarga experiência nesta estimulante colectânea de crónicas e pequenos ensaios autobiográficos. 

 

OS TEUS PASSOS NAS ESCADAS, de Antonio Muñoz Molina (2019). Pode haver um romance português de um escritor espanhol? Sim. Eis a prova, nesta admirável declaração de amor a Lisboa, que já tinha figurado numa das suas primeiras obras. Cidade-refúgio num mundo assombrado pelas catástrofes climáticas e pelo terrorismo global.

 

SEMENTES DE VIOLÊNCIA, de Evan Hunter (1954). Um dos melhores romances sobre a delinquência juvenil, aqui centrada numa escola pública de um bairro pobre de Nova Iorque e nos desafios que coloca a um professor no início da profissão. Adaptado no ano seguinte ao cinema, com merecido êxito de público e de crítica.

 

WOKE, de Titania McGrath (2019). Demolidora denúncia do extremismo liberticida que vai lançando anátemas, impondo dogmas e ditando a censura em nome da correcção política. Titania é personagem inventada pelo comediante britânico Andrew Doyle, que ridiculariza o sectarismo destes novos talibãs que tudo querem proibir.

Os melhores livros do meu ano (1)

Pedro Correia, 13.02.22

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Já vem tarde, mas creio que ainda chega a tempo. Faço um balanço das minhas leituras feitas em 2021, Ano II da Pandemia, muito marcado pela imobilidade forçada, e que, entre as raras compensações, me permitiu usufruir de mais horas dedicadas à leitura. Como num regresso tardio à adolescência, quando tinha tempo para tudo - incluindo para devorar qualquer livro que me chegasse às mãos.

Tal como no ano anterior, em 2021 consegui ler cem livros completos. Dos mais diversos géneros, mas bastante centrados na literatura portuguesa de ficção do século XX - para tentar dar corpo a um projecto que gostaria de ver materializado em ensaio literário. Não custa tentar, veremos no que dá.

 

Também à semelhança do que já sucedera em 2020, dediquei mais tempo à leitura do que ao cinema, contrariando um hábito há muito enraizado. Nos dias que correm, os filmes interessam-me bastante menos. Porque já vi grande parte do que gostaria de ver - incluindo a esmagadora maioria dos clássicos da Sétima Arte. E também porque nada me atrai hoje na chamada "indústria cinematográfica", precisamente a que domina os circuitos de exibição e comercialização. 

Como acontece com vários dos meus leitores, julgo, vi muito mais séries do que filmes. Não apenas nos canais por cabo mas numa das principais plataformas dedicadas ao género, a Netflix, de que sou assinante periódico. Mas também aqui é necessário peneirar bastante: a maioria da oferta não me agrada. 

 

Tenciono falar delas um dia destes. Agora venho partilho convosco o balanço das leituras, na expectativa de vos deixar sugestões úteis.

Durante três dias, revelarei aqui a lista dos dez melhores destes cem, multiplicada por três: a primeira, já de seguida, respeitante só a autores portugueses. Amanhã virão os autores estrangeiros. Depois de amanhã, recordo os dez que mais gostei de reler. Títulos sempre acompanhados por duas ou três frases sobre cada obra.

Cada lista fica por ordem alfabética. Podia ter sido outro o critério, mas prefiro este.

 

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A CAPITAL, de Eça de Queiroz (1925). Um dos romances menos conhecidos do autor d' Os Maias. E um dos mais cáusticos. Obra póstuma, escrita ainda na juventude, inclui já quase todos os temas dominantes no imaginário de Eça. Com uma personagem inesquecível: Artur Corvelo, homem que tenta tudo para subir na vida. Podia ser hoje.

 

A TORRE DA BARBELA, de Ruben A. (1964). Genial cruzamento dos romances de cavalaria com histórias de fantasmas e folhetins românticos, tudo polvilhado com sátira inteligente e diálogos surrealistas, numa espécie de revisitação burlesca da História de Portugal. Obra-prima de um autor desaparecido demasiado cedo. 

 

ANDANÇAS DO DEMÓNIO, de Jorge de Sena (1960). Mais conhecido como poeta e ensaísta, Sena foi igualmente magnífico prosador. Em formato longo, legando-nos o romance Sinais de Fogo, e também em pequenas mas marcantes narrativas. Este volume comprova-o em contos como "História do Peixe-Pato" e "A Janela da Esquina".

 

ERNESTINA, de J. Rentes de Carvalho (1998). Memórias? Crónica novelesca? Romance de não-ficção, ao jeito de Truman Capote? Pouco importam as etiquetas. Aqui estamos perante literatura digna de quadro de honra. Que é também um retrato impressivo e vívido de um Portugal que muitos não conheceram e já poucos recordam.

 

FELIZMENTE HÁ LUAR!, de Luís de Sttau Monteiro (1961). Teatro é para ver representado em palco, não para ler. Mas, quando o texto tem qualidade, até resulta em leitura proveitosa. É o caso deste drama em dois actos, centrado na execução do general Gomes Freire de Andrade em 1817 - símbolo de outras injustiças e outros tempos de opressão.

 

ÍNDICE MÉDIO DE FELICIDADE, de David Machado (2013). Um dos mais estimulantes romances portugueses surgidos na última década. Muito influenciado pelos road movies, transporta-nos por estrada de Lisboa a Barcelona na companhia de um heterogéneo grupo de amigos e conhecidos. Comovente e divertido: vale a pena seguir viagem com eles.

 

O ESPLENDOR DE PORTUGAL, de António Lobo Antunes (1997). Fulgurante romance que estabelece uma espécie de rima interna com uma das primeiras obras do autor, Os Cus de Judas. Também com Angola como cenário. Mas aqui fala-se de civis, não de militares. E das marcas que a descolonização deixou. Sem temores nem tabus.

 

O MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ, de José Rodrigues Miguéis (1975). Injustamente esquecido, é um dos grandes textos de ficção do nosso século XX. Grande em vários sentidos - a começar no número de páginas, cerca de 700. Do final da monarquia ao início da ditadura pós-28 de Maio, com alusões óbvias a Fátima. Merece ser lido e divulgado.

 

O RETORNO, de Dulce Maria Cardoso (2011). Angola, de novo. Na perspectiva de adolescentes que lá nasceram e se viram forçados a embarcar para a distante Lisboa fugindo ao morticínio na Luanda de 1975, pré-independência. Os chamados "retornados". Será possível retornar a um lugar onde nunca se viveu? 

 

TERRAS DO DEMO, de Aquilino Ribeiro (1919). Um dos primeiros e melhores romances de mestre Aquilino, um dos nossos mais inconfundíveis prosadores. Em páginas que nos transportam ao esquecido Portugal do interior serrano, onde as paixões mais primárias e superstições de todo o género andavam à solta, longe de qualquer verniz citadino.

Frase nacional de 2021

Pedro Correia, 15.01.22

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«Já posso ir ao banco?»

António Costa para Ursula von Der Leyen, 16 de Junho

(eleita por maioria, pelo DELITO DE OPINIÃO)

 

Também mereceram destaque estas frases:

 

«Tenho um excelente ministro da Administração Interna e vivo muito bem com o senhor ministro da Administração Interna.»

António Costa, justificando a manutenção de Eduardo Cabrita no Governo (Maio)

 

«Estou irritantemente optimista.»

Marcelo Rebelo de Sousa, sugerindo que as medidas de restrição impostas pela pandemia iriam ser suavizadas (Julho)

 

«Vejam o parolo que sou.»

Augusto Santos Silva, demarcando-se de Sócrates, com quem trabalhou durante anos (Maio)

 

«Não há vidas insignificantes nem vidas menos importantes. Somos todos seres humanos.»

Gouveia e Melo, ao receber um Globo de Ouro na SIC (Outubro)

 

«Nunca haverá um governo de direita se o BE o puder impedir.»

Catarina Martins, na ressaca do chumbo do Orçamento em que votou com a direita (Novembro)

 

«Eu sou o passageiro.»

Eduardo Cabrita, sobre o atropelamento mortal de um trabalhador pela sua viatura oficial (Dezembro)

 

«O azar de Rendeiro foi haver eleições em Janeiro.»

Rui Rio, numa crítica à Polícia Judiciária que quase ninguém entendeu (Dezembro)

 

«Fiz mal em ir para o Governo, perdi uma fortuna incalculável.»

Manuel Pinho, tentando - sem sucesso - puxar à lágrima em entrevista ao Expresso (Dezembro)

 

«Temos de ir jogo a jogo.»

Rúben Amorim, treinador campeão pelo Sporting ao fim de 19 anos (Dezembro)

 

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Frase nacional de 2010: «O povo tem de sofrer as crises como o governo as sofre.»

(Almeida Santos)

Frase nacional de 2011: «Estou-me marimbando para os nossos credores.»

(Pedro Nuno Santos)

Frase nacional de 2013: «Com a apresentação do pedido de demissão, que é irrevogável, obedeço à minha consciência e mais não posso fazer.»

(Paulo Portas)

Frase nacional de 2014: «Sinto-me mais livre que nunca.»

(José Sócrates)

Frase nacional de 2015: «Temos os cofres cheios.»

(Maria Luís Albuquerque)

Frase nacional de 2016: «Já avisei a famíia que só volto no dia 11 [de Julho] e vou ser recebido em festa.»

(Fernando Santos)

Frase nacional de 2017: «Este ano foi um ano particularmente saboroso para Portugal.»

(António Costa)

Frase nacional de 2020: «Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?»

(Ferro Rodrigues)

Facto internacional de 2021

Pedro Correia, 14.01.22

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ASSALTO AO CAPITÓLIO NOS EUA

Aconteceu logo no início do ano, a 6 de Janeiro de 2021. Todos assistimos, incrédulos e atónitos. Nunca se tinha visto algo assim: uma turba enfurecida subia as escadarias do Capitólio, em Washington, e invadia o histórico edifício, perante a impotência das forças de segurança, colocando em risco senadores e congressistas. Precisamente quando ali se travava um debate fundamental: o que viria a confirmar em definitivo o resultado da eleição presidencial de Novembro de 2020.

Estes milhares de insurrectos, apoiantes declarados de Donald Trump, invadiram e vandalizaram a sede do poder legislativo dos EUA com a intenção deliberada de castigar figuras públicas como a democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, e o próprio vice-presidente Mike Pence, a quem acusaram de traição por conceder a vitória a Joe Biden, seu adversário político. Algo que Trump ainda hoje não fez.

A sessão foi interrompida, com o mundo a assistir em directo. Mas viria a ser retomada nessa mesma noite, quando a forças da ordem conseguiram travar a multidão em fúria e deter alguns dos cabecilhas, impedindo danos maiores. Com cinco mortos registados, entre eles quatro polícias. 

 

Este brutal assalto ao Capitólio foi para nós o Acontecimento internacional de 2021, com oito votos em 25 emitidos pelos autores do DELITO DE OPINIÃO que participaram nesta escolha. 

Venceu à tangente. Em segundo lugar, com sete votos, foi mencionado o regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, perante a humilhante retirada das forças ocidentais, incluindo as norte-americanas. Aconteceu em 15 de Agosto: foi outro facto que fez chocar o mundo.

Em terceiro lugar, com três votos, a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, fora da data inicialmente prevista: deviam ter acontecido em 2020 e acabaram por ocorrer só no ano seguinte, entre 23 de Julho e 8 de Agosto. Com uma particularidade: as provas desportivas disputaram-se sem público devido às fortíssimas restrições impostas pela pandemia. Facto inédito, a merecer destaque.

 

Houve ainda votos isolados em vários outros temas, que passo a referir:

- Chegada da missão Perseverance à superfície de Marte.

- Escalada dos regimes autoritários e totalitários em diversos países: China, Rússia, Bielorrússia, Afeganistão, Turquia e Nicarágua.

- Tensão crescente na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia.

- Falta de capacidade própria da UE em questões de defesa.

- Missão militar SACD em Moçambique.

- Agravamento da crise de cadeia logística desencadeada pela pandemia.

- Itália, campeã europeia de futebol.

 

Facto nacional de 2021

Pedro Correia, 13.01.22

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VACINAÇÃO EM MASSA

Quase todos nós passámos por isto entre Janeiro e Dezembro: fomos vacinados contra a covid-19. Em dose dupla, na grande maioria dos casos. E ainda com reforço, em boa parte, à beira do fim do ano. A vacinação em massa foi considerado o Acontecimento Nacional de 2021 em eleição democrática no DELITO DO OPINIÃO, seguindo uma tradição aqui iniciada em 2010.

Graças à unidade de missão liderada pelo almirante Henrique Gouveia e Melo, Portugal passou do quinto lugar mundial em número de infectados na relação com o número de habitantes e do oitavo posto em óbitos também nesta escala registados no início de Fevereiro para o estatuto - reclamado pelo Governo - de país proporcionalmente mais vacinado no globo, já em Novembro, quando 86% da população nacional tinha recebido vacinas. 

A memória colectiva tende a diluir-se. Eis, portanto, o momento de lembrar como este caminho foi muito tortuoso. Em Janeiro, chegámos a ser o país com mais mortes e mais novos casos de coronavírus por milhão de habitantes, quando havia 11 pessoas a morrer por hora de Covid-19. O panorama alterou-se, para muito melhor, graças em boa parte à intervenção de Gouveia e Melo, a quem o Expresso, em Junho, chamava "o almirante salva-vidas". Num só dia, 6 de Julho, foram ministradas mais de 154 mil vacinas.

 

A pandemia continua connosco, agora com carácter quase endémico e um surto de infecções menos letal. Mas não esquecemos o pesadelo destes quase dois anos nem o combate que lhe foi sendo travado neste país agora com 19.181 mortos oficialmente registados, vítimas do vírus que veio da China. E ainda não é possível baixar a guarda. Ontem Portugal registou um máximo de novos casos em 24 horas: 40.945. Apesar das vacinas e de todas as outras precauções que nos dominam o quotidiano. 

Não por acaso, o acontecimento nacional do ano destacado pelo DELITO em 2020 já tinha sido o novo coronavírus. Nota-se uma linha de continuidade neste destaque de 2021, que mereceu dez dos 25 votos da tribo "delituosa". 

 

O segundo lugar, com sete votos, coube ao colapso da geringonça, associado (três votos) ao chumbo do Orçamento do Estado, o primeiro ocorrido desde sempre em quase meio século de sistema democrático. 

 

Depois, cinco outros factos, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem devidamente lavrados em acta:

- Atropelamento do trabalhador Nuno Santos pela viatura ministerial em que seguia o ex-ministro Eduardo Cabrita.

- Decisão do Governo de "investir" na TAP com dinheiro dos nossos impostos.

- A rocambolesca fuga para a África do Sul do ex-banqueiro João Rendeiro, já condenado por sentença definitiva em Portugal.

- Sporting campeão nacional de futebol 19 anos depois.

- Queda de Luís Filipe Vieira, confrontado com uma sucessão de investigações judiciais que o levaram a abandonar a presidência do Benfica.

 

Facto nacional de 2010: crise financeira

Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal

Facto nacional de 2013: crise política de Julho

Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo

Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda

Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol

Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro

Facto nacional de 2018: incúria do Estado

Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento

Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida

Figura internacional de 2021

Pedro Correia, 12.01.22

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JOE BIDEN

Neste ano que passou, o Presidente dos Estados Unidos da América foi eleito Figura Internacional do Ano pela tribo "delituosa". Em 22 votos expressos, bastante divididos, o sucessor de Donald Trump na Casa Branca recolheu sete.

Joe Biden esteve em destaque por vários motivos, de ordem muito diversa e nem sempre lisonjeiros. Eleito em Novembro de 2020 pelos norte-americanos com a maior votação popular de sempre, tomou posse a 20 de Janeiro numa capital ainda muito marcada pelo assalto ao Capitólio, ocorrido 14 dias antes, e entre fortíssimas medidas de segurança acrescidas das inevitáveis precauções impostas pela pandemia. 

Nestes onze meses de mandato, com maioria tangencial no Congresso, Biden fez regressar os EUA ao Acordo de Paris sobre alterações climáticas, revogando uma decisão do antecessor, deu impulso ao combate à pandemia - considerado ainda insuficiente - e procurou apaziguar as tensões na sociedade norte-americana. Mas a crise sanitária é ainda evidente e a crise migratória tem-se agravado. No plano internacional, redobra de intensidade a guerra comercial com a China e aumenta a tensão na Europa de Leste devido a reiteradas ameaças russas sobre os vizinhos ocidentais. 

O aspecto mais negativo da presidência Biden ocorreu com a retirada das forças norte-americanas do Afeganistão tomado pelos talibãs sem garantir a defesa de largos milhares de afegãos que colaboraram durante duas décadas com os EUA. Uma retirada humilhante, que fez lembrar a de Saigão em 1975.

Quem escolheu Biden no DELITO justificou a opção de forma mais longa, como esta: «Decente, apaziguador e fonte de esperança. Foi o Presidente dos Estados Unidos eleito com o maior número de votos da história daquela democracia referencial para o Ocidente que, à data da votação, estava ferida de morte pelos crimes, vilanias e atropelos à democracia do antecessor do democrata.»   

Ou mais sintética, como esta: «Os EUA voltaram a ter um Presidente.»

 

A segunda posição, com três votos cada, foi repartida. Por Alexei Navalny, o mais conhecido opositor russo, actual preso político nas masmorras de Putin e galardoado em 2021 com o Prémio Sakharov, do Parlamento Europeu, que todos os anos distingue um defensor dos direitos humanos. E por Angela Merkel, que cessou funções como chanceler alemã após 16 anos neste cargo, em que se assumiu diversas vezes como verdadeira líder da Europa.

Merkel, vale a pena recordar, foi eleita Figura Internacional do Ano pelo DELITO em 2010, 2011 e 2015. Ninguém mereceu aqui tanto destaque como ela.

 

E que mais?

Votos isolados em Gabriel Boric, o recém-eleito Presidente do Chile, com apenas 35 anos. Norm Macdonald, comediante canadiano falecido aos 61 anos, «lembrando-nos que precisamos mais do que nunca de humoristas». Katalin Karikó, a cientista húngara que fez o trabalho essencial para o desenvolvimento das vacinas com base no mRNA e que foram usadas para as vacinas da Pfizer/Biontech e Moderna, «parecendo abrir um campo completamente novo para a medicina». O norte-americano Elon Musk, patrão da Tesla e fundador da SpaceX, um dos visionários do nosso tempo. 

Votos isolados também no secretário-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Ghebreyesus, no recém-eleito chanceler alemão, Olaf Scholtz, e no treinador de futebol Roberto Mancini, que conduziu a sua Itália à conquista do Europeu da modalidade.

Houve ainda quem votasse em todos os envolvidos no combate global à pandemia. E no covid e suas variantes - «sempre presente no ângulo morto da visão dos nossos dias».

 

Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange

Figura internacional de 2011: Angela Merkel 

Figura internacional de 2013: Papa Francisco

Figura internacional de 2014: Papa Francisco

Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi

Figura internacional de 2016: Donald Trump

Figura internacional de 2017: Donald Trump

Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro

Figura internacional de 2019: Boris Johnson

Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen

Figura nacional de 2021

Pedro Correia, 11.01.22

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HENRIQUE GOUVEIA E MELO

De quase desconhecido da opinião pública, tornou-se figura nacional em 2021 - também aqui, no DELITO DE OPINIÃO. Por mérito próprio. Coube-lhe coordenar a estrutura de vacinação contra a covid-19 numa altura em que este processo estava desacreditado a vários níveis: faltavam vacinas, escasseavam recursos humanos, multiplicavam-se vergonhosos casos de gente a furar filas em diversos recantos do País. Henrique Gouveia e Melo, vice-almirante especializado em navegação submarina, pôr ordem na casa e endireitou o que estava torto - que era quase tudo.

Houve mobilização geral, com sucesso. Num só dia, 6 de Julho, foram ministradas mais de 154 mil vacinas. Entre o início de Fevereiro e o final de Setembro, quando cessou funções, Portugal tornou-se referência internacional no combate à pandemia via vacinação. Em Maio, Maria Filomena Mónica descreveu-o assim, sem ironia: «Temos um novo herói: o militar de olhos verdes.» O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que também não é de elogio fácil, enalteceu-o como «verdadeiro líder».

Empenho e eficiência foram dois qualificativos usados na tribo "delituosa" para eleger Gouveia e Melo, por maioria, como Figura Nacional de 2021.

«O seu maior mérito foi ter-nos demonstrado, em especial aos políticos e burocratas, ainda haver portugueses bons e de valor, apostados em servir os outros. De forma simples, com linguagem clara e directa, profissionalismo, competência e organização, afinal tudo o que nos falta há décadas.» Palavras que acompanharam um dos 15 votos recebidos neste blogue pelo actual almirante, recém-empossado como chefe do Estado Maior da Armada.

 

Em segundo lugar ficou Carlos Moedas, eleito a 26 de Setembro presidente da Câmara de Lisboa - a maior surpresa das autárquicas, que ditaram o fim de 14 anos de hegemonia socialista na capital. A sua vitória tangencial frente a Fernando Medina tornou-o não apenas a figura mais em destaque neste acto eleitoral mas também um possível candidato a prazo à liderança do PSD, o seu partido. 

Moedas recebeu seis votos dos autores do DELITO, renovando-se uma tradição deste blogue que remonta a 2012. O último lugar do pódio - com cinco votos - foi ocupado por Rúben Amorim, o treinador-sensação de 2021, que conduziu o Sporting ao título de campeão nacional de futebol após um penoso jejum de 19 anos. Houve quem sugerisse - e a proposta merece ponderação - que devemos passar a eleger a figura desportiva do ano. É uma hipótese a considerar. Para já, Amorim fica como vencedor "oficioso" desta categoria ainda inexistente em 2021. Sem favor algum.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Figura nacional de 2019: D. José Tolentino Mendonça

Figura nacional de 2020: Marta Temido

Um retrato do País oficial

Pedro Correia, 02.10.21

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O ministro da Defesa desautoriza o Presidente da República, anunciando a intenção de exonerar o chefe do Estado Maior da Armada, à revelia de Belém, o que mereceu pronta reacção de repúdio da parte de Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto comandante supremo da instituição militar.

ministro das Infraestruturas desafia a autoridade do titular das Finanças, seu colega no Conselho de Ministros, com críticas destemperadas.

Demite-se o director financeiro da TAP após escassos três meses em funções.

Demite-se o director clínico do Hospital de Setúbal em protesto contra a situação de rotura nas urgências. 

Um banqueiro condenado a dez anos de pena de prisão já sem recurso - por crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança e branqueamento de capitais - foge para o estrangeiro, perante a passividade da juíza titular do processo. Enquanto a inócua ministra da Justiça, fiel à sua imagem de marca, fala em «desconforto» .

Três magistradas, alegando pretextos vários, recusam julgar um perigoso gangue denominado Hells Angels.

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras reteve mais de 3 milhões e meio de euros de fundos comunitários para acolher refugiados em Portugal, entre Janeiro e Setembro.

O Governo que tanto apregoa a «transição digital» remete o País para a cauda dos Estados comunitários em redes móveis de quinta geração: na União Europeia, só Portugal e Lituânia ainda não dispõem de serviços comerciais 5G. O ministro da Economia limita-se a exprimir «preocupação», como faria qualquer de nós.

Cento e cinco dias depois, continuamos sem saber a que velocidade seguia a viatura do ministro da Administração Interna que atropelou mortalmente o trabalhador Nuno Santos na A6, perto de Évora.

 

Eis, em poucas linhas, um retrato do País oficial.

Nada lisonjeiro. Mesmo nada.

Para memória futura, continuação

Paulo Sousa, 15.03.21

Jovem do futuro,

Já te falei sobre termos sido durante umas semanas o pior sítio do mundo. Em cada dois minutos um português morria com covid. Esta tragédia fez do nosso país notícia em todo o mundo. Ao contrário do que ocorreu nas primeiras semanas da pandemia, desta vez a solidariedade europeia manifestou-se.

A força aérea alemã, a Luftwaffe que no passado espalhou o terror, desta vez enviou para Portugal médicos, enfermeiros e ventiladores. Traziam também uma mensagem do governo alemão: “É para isto que servem os amigos”. Os nossos governantes, que estavam preocupados apenas com os seus jogos de poder imediatistas, não conseguiram esconder o embaraço. A chegada de ajuda internacional era a confirmação do que já sabíamos, de que estávamos em mãos incapazes e arrogantes. Responderam que aceitavam a ajuda e que era apenas simbólica, e sem entendermos porquê não os deixaram entrar nos hospitais públicos. Quem sofria ao ver tantos de nós a tombar, sentiu vergonha pela soberba dos indigentes e aprendeu em silêncio a dizer Vielen Danke Deutschland.

Os nossos governantes que estavam apenas serodiamente preparados para passear o rótulo das tutelas que lhes distribuíram, e que nunca pensaram que alguma vez teriam de tomar decisões, andaram perdidos. Também já te falei disso. Desataram a levantar proibições e tomaram-lhe o gosto. Entusiasmaram-se com o super-poder que o vírus lhes trouxe e, sem explicação nem propósito, proibiram a venda de livros. As bibliotecas e as livrarias foram forçadas a fechar as portas.

Quem estava infectado perdeu o olfacto mas mesmo quem não estava deixou de poder sentir o aroma dos livros das livrarias. Eu gosto de cheirar os livros, e quem gosta de livros sabe bem do que estou a falar.

Desde há uns anos os livros começaram a ser vendidos entre as batatas e as garrafas de vinho nos hipermercados. Alguns eruditos ficaram incomodados com esta banalização, mas eu fiquei encantado por achar que era ali, entre os bens de primeira necessidade que eles deviam estar. Nunca antes os livros tinham estado tão perto de tanta gente.

Com estas interdições, levantadas por aparente espasmo muscular, o acesso aos livros foi vedado por uma fita plástica colorida. Quando, nos hipermercados entre as frutas e as bolachas, vimos fitas plásticas a interditar os livros, entendemos que estávamos perante a cena de um crime. Não de um crime em investigação, mas de um crime em curso. E foi assim, de olhos embaciados, de ombros descaídos, com os braços pendurados e sem saber onde pôr as mãos, que ficamos à volta das fitas plásticas que impediam o acesso aos livros. Ficamos só a olhar para eles. Sem sequer os poder cheirar.

Para assinalar as diarreias mentais dos nossos governantes, alguns supermercados retiraram os livros das prateleiras e preencheram-nas com rolos de papel higiénico.

O confinamento forçado, além de impedir a venda de livros, impediu a circulação de pessoas para fora do respectivo concelho de residência. Os cafés e os restaurantes foram também proibidos de nos alegrar os dias. Alguns barbeiros e gabinetes de estética passaram a trabalhar na clandestinidade. Em nome da saúde pública ficaram privados dos seus rendimentos. Este foi um sacrifício pelo qual nem os profissionais de saúde tiveram de passar.

O clamor de fundo ainda é pouco mais que inaudível, mas sem poder trabalhar, alguns lembrarão um adágio dos tempos difíceis do Estado Novo, em que Salazar terá dito que tinha livrado o país da guerra, mas não o livraria da fome. Os socialistas no poder não evitaram que nesta pandemia estivéssemos entre os piores e, não fosse a União Europeia, não nos livrariam da fome. Para muitos, nem os milhões despejados pela União Europeia impediram a privação alimentar.

Noutros países o estado apoiou as actividades que mais sofreram com o confinamento, como forma de os compensar do esforço feito pela segurança de todos. Cá não existe dinheiro para isso. Preferiu-se apostar tudo na salvação da TAP que está parada há meses. Se for cumprido o actual plano, o estado gastará com a TAP mais do dobro do que a NASA gastou para colocar um robô em Marte, mas como com eles as contas derrapam sempre, daqui a uns anos veremos a que planeta teríamos conseguido chegar com dinheiro ali consumido. Todos os regimes têm o seu Convento de Mafra.

Ao mesmo tempo, começaram a chegar as vacinas. O ritmo a que chegavam era muito inferior às nossas expectativas e necessidades. Os mais vulneráveis, os velhos e os doentes, foram os primeiros a serem vacinados. Mas desde o início que as filas começaram a ser furadas por penetras armados em chico-espertos. No teu tempo ainda se usa a expressão chico-esperto? Mesmo que já não se use, de certeza que se me estiveres a ler em Portugal, existe um perto de ti. O chico-esperto é egoísta, despreza o colectivo e, dê por onde der, acaba sempre por arranjar uma maneira de passar à frente dos outros e de se safar. Quando exposto e desmascarado arranja uma interpretação criativa das regras e, se tal for necessário, será suficientemente criativa para conseguir exactamente o contrário daquilo que se pretendia quando estas foram estabelecidas. O chico-esperto é um perito em sobrevivência. Mesmo que tenha de enganar e sacrificar uma aldeia ou um bairro cheio de gente decente, ou até uma geração inteira, ele irá safar-se. É uma habilidade socialmente perversa.

Portugal comporta-se na UE como um chico-esperto, mas no nosso caso também se pode designar por toino-habilidoso. Somos governados por um toino-habilidoso que é uma versão pós-moderna de um chico-esperto. Assim, alguns chico-espertos, protegidos pelo toino-habilidoso, furaram as filas dos prioritários e receberam a tão esperada picadela nos seus espertos e habilidosos tríceps, muito antes da vez que lhes competia.

Quando esses abusos começaram a ser conhecidos, justificaram-se chico-espertamente dizendo que como o frasco da vacina continha cinco doses, havia por vezes sobras e para não serem desperdiçadas acabaram por as desviar para si, ou para os seus amigos, ou até para os donos das pastelarias que frequentavam. E assim, com a maior desfaçatez, tentaram convencer o país que as vacinas, que sabíamos serem tão raras, afinal sobravam abundantemente todos os dias.

Com o passar das semanas, e como resultado natural do confinamento, os números da pandemia lá foram baixando. O ritmo de novas infecções foi seguido, com algumas semanas de atraso, pelos números dos internamentos e dos óbitos. Quando as novas infecções sobem, já sabemos que poucos dias mais tarde os hospitais entrarão em ruptura e, ainda antes dos hospitais começarem a vagar, conseguimos saber que o ritmo de infecções já baixou.

As escolas vão reabrir, pouco a pouco, começando pelos mais novos. Vamos ver se o natural aumento de casos, que se seguirá, será comportável pela capacidade hospitalar.

Depois de um inverno muito rigoroso e inesquecivelmente difícil, todos ansiamos que o renascimento que a Primavera traz à natureza seja alargado à situação que estamos a atravessar.

Já entendemos que isto é uma corrida de fundo, que cada dia é como mais um passo dado, e por isso estamos cada vez mais perto do fim de tudo isto. Não sabemos é quanto tempo ainda falta, nem em que estado é que lá chegaremos, nem como ficará o mundo depois deste tormento.

Para memória futura, continuação

Paulo Sousa, 28.01.21

Jovem do futuro,

Olá de novo, quero continuar a contar-te o que tem acontecido nestes dias da pandemia. Estamos agora no final de Janeiro de 2021.

Voltei a ler o que te escrevi em Setembro do ano passado e já sinto saudades daquele fim de Verão em que, mesmo indo de máscara para todo o lado, conseguimos ter alguma normalidade. Nessa altura ainda havia sol para ir à praia e chegamos a ir a restaurantes.

Quem teve dinheiro e tempo para isso, no Verão gozou férias. Muita gente, com receio de voltar a andar de avião, redescobriu Portugal. O turismo interno animou-se com turistas nacionais. Foi como um acto de introspecção dos portugueses, que redescobriram as suas próprias paisagens. Quando regressaram a casa, entenderam melhor o encanto que os estrangeiros sentem pelo nosso país. Sem este vírus aberrante isso não teria acontecido. E tão bonito que é o nosso território. Se fosse habitado por outro povo, não seria igual. Se somos parte do chão que pisamos, este chão também é o que é por causa daquilo que somos.

Houve dias de sol com brisas agradáveis. Quase que nem nos rimos quando os nossos governantes se vangloriaram pelo milagre e pela sorte de sermos governados por gente experiente. Graças a eles, disseram, e com o nosso apego à ordem, tudo tinha sido menos gravoso que noutras paragens.

Enquanto se bajulavam, inchados sob os holofotes, os virologistas alertavam que o pior estava ainda para vir. Enquanto noutros países se delineavam planos para o inverno, cá afirmava-se, insistia-se e repetia-se o desprezo oficial pelas estruturas privadas de saúde.

Depois das celebrações religiosas e festas populares terem sido proibidas, a festa dos comunistas na Atalaia reuniu várias dezenas de milhares de pessoas. Para lá chegarem os participantes atravessaram ruas e avenidas onde todo o comércio estava impedido de abrir a porta, para que a pandemia fosse travada. Os comunistas podiam ter aproveitado o ascendente de que gozavam sobre o governo para melhorar a vida dos portugueses, mas gastaram todo o capital político nesta exibição arrogante de poder.

O governo engoliu esta insolência com a tolerância de quem está na posição mais fraca. Este episódio mostrou para quem quis ver, como o destino do nosso país depende nestes dias dos caprichos dos marxistas.

Da última vez que os socialistas saíram do poder precisamos de uma troika, mas da próxima, precisaremos de uma perestroika.

A escola arrancou como sempre no final do Verão. A apreensão era geral. Ao contrário dos seus alunos, muitos professores pertenciam ao chamado grupo de risco. Como é que iriam coexistir estes dois grupos com tamanhas diferenças perante a ameaça? O primeiro período correu exemplarmente. Durante algum tempo tentaram recuperar as falhas do ano anterior, quase todo leccionado à distância, e seguiram em frente.

Os professores só faltaram quando, na dúvida, lhes era recomendado o isolamento profiláctico ou quando testaram positivo. Logo após cumprida a quarentena obrigatória, regressaram às salas de aula, mostrando-se assim, e mais uma vez, à altura das responsabilidades.

Os alunos também se adaptaram. Andaram sempre de máscara que só tiravam durante as refeições. Nos intervalos juntaram-se nos habituais grupos de amizades que raramente coincidem com a disposição da sala de aula. Entre eles falaram, com a voz abafada pela máscara, do que é normal que falem, do mundo que descobriam e trocaram perguntas sobre a vida, recorrendo às formas de expressão normais para a sua idade.

Quando as temperaturas começaram a descer, o número de infectados começou a subir, e número de mortos não demorou também a aumentar. A segunda vaga chegou acompanhada com várias semanas de chuva, seguida de frio e gelo. E novamente de mais chuva. Os pobres sofrem sempre mais no tempo frio e este está a ser um inverno particularmente forte, especialmente forte para com os mais fracos.

Pelo menos, depois de alguns meses de folga nas infecções, já não seríamos apanhados de surpresa. Houve quem acreditasse nisso.

Ainda a maré estava a começar a subir e já os nossos governantes começaram a falar em salvar o Natal, criando de imediato a ideia que nessa altura iria haver uma maior tolerância nas deslocações e nos ajuntamentos familiares. Fizeram isso ignorando as recomendações científicas, pois talvez tenham acreditado que o vírus também parava durante as nossas festividades.

Claro que foi agradável ouvir isso. Pelo menos teríamos um Natal em condições junto dos nossos idosos que viviam isolados há tantos meses. Quem é que se podia opor a notícias tão boas?

Ao mesmo tempo começaram a ser administradas as primeiras vacinas. Só de nos imaginar a todos vacinados … até nos permitimos a inspirar um profundo folgo de esperança.

O Pai Natal este ano iria trazer as vacinas. No Natal celebrou-se o que sempre se celebra, uma nova vida, um novo alento. Umas mais do que outras, as mesas encheram-se, e à volta delas celebrou-se e brindou-se. Como foi bom poder fazer uma trégua a meio da batalha.

Enquanto isso, nos países europeus que deram ouvidos à ciência, o confinamento foi mais apertado do que nunca e as festividades foram proibidas.

Ainda havia umas fatias de bolo-rei por comer e logo começou a haver notícias sobre as mutações do vírus. Registou-se uma nova estirpe no Reino Unido, pouco depois surgiu uma mutação brasileira e também uma sul-africana. Quantas mais iriam ainda aparecer? Será que o vírus se iria tornar mais ou menos agressivo? E será que as vacinas, ainda antes de serem distribuídas, já estariam obsoletas?

Enquanto tentávamos entender o que se estava a passar, os números dos infectados dispararam. De 1.500 infecções diárias, chegamos às 15.000, em menos de um mês. Como cerca de um por cento dos infectados necessitam de assistência hospitalar, todos os dias chegam mais de 150 doentes em risco de vida aos hospitais. Em poucos dias as ambulâncias começaram a esperar cada vez mais tempo nas filas para conseguirem entregar os doentes nas urgências. Por vezes, cada vez com maior frequência, começaram a seguir dessas filas para a morgue. O número de óbitos disparou. Neste momento morrem com Covid mais de 10 portugueses por hora e já foram registados mais mortos pelo vírus, do que na Grande Guerra e na Guerra do Ultramar juntos.

Alguns hospitais tiveram de adquirir câmaras frigoríficas para conseguir gerir a tenebrosa logística de tantos cadáveres. As estruturas privadas de saúde afinal revelaram-se necessárias, mas o apego à ideologia e a recusa, até à última, em recorrer a elas, custou a vida a demasiados portugueses. Já te falei da força que os marxistas hoje ainda têm, não foi?

As estatísticas internacionais desta pandemia dizem-nos que Portugal é nestes dias o pior sítio do mundo.

Quem morre infectado é despachado, sem vestes dentro de um saco de plástico. Os cangalheiros, em vez do habitual fato preto, envergam agora fatos brancos de protecção biológica, com máscara, óculos especiais e botas de borracha. As cerimónias fúnebres estão limitados a um número muito restrito de pessoas, definido por cada autarquia.

O que seria de nós sem os cangalheiros? O que será de nós se os coveiros sucumbirem?

Quem sofre ataques cardíacos, acidentes ou outras complicações graves de saúde, tem medo de ir para o hospital e demasiada gente, que em tempos normais teria sido salva, acabou por falecer em casa. Para os condutores e assistentes das ambulâncias de emergência médica, tornou-se normal transportarem apenas cadáveres. Ninguém ficará surpreendido com futuras sequelas de choque pós-traumático entre os profissionais de saúde.

Foi neste ambiente que se realizaram as eleições. O governo lembra-nos diariamente do nosso dever de ficar em casa para evitar mais contágios, para no minuto seguinte nos lembrar que votar é um dever cívico. Desde que a pandemia foi declarada, mais de 75 actos eleitorais foram adiados pelo mundo fora, mas cá as decisões importantes demoram a ser tomadas, e se forem mesmo muito importantes, o mais provável é que não sejam tomadas de todo.

Um dos candidatos que se apresentou a votos, irrita bastante os nossos governantes, assim como as pessoas normais. Diz palermices e é agressivo. Mesmo assim, não pelo que diz, mas apesar do que diz, e apenas porque irrita a situação, acabou por ter bastantes votos. Quem votou nele ficou satisfeito por ver como o seu voto conseguiu irritar os nossos governantes.

O vencedor é o mais completo retrato do nosso regime, e por isso faz sentido ter ganho. É filho da nomenclatura do regime anterior, mas desde os primeiros instantes do que temos, esteve envolvido em tudo o que nos levou ao ponto em que estamos.

Mesmo após 20 anos de estagnação económica, os políticos no poder continuam a pensar que criam riqueza por decreto, e que se assim o entenderem, à força da lei farão os leões voarem e as zebras rugirem. Eu quando os escuto com atenção só oiço zurrar.

Demasiada gente pensa que ao fazer por ignorar as mudanças as consegue evitar, mas esse é um erro antigo da humanidade, para o qual não existe bom senso que impeça que se repita.

Lá fora o tempo continua de chuva. Os últimos dias foram de um burranho que, juntamente com as notícias, nos encharcaram a alma e os olhos. A chuva não se distingue do nevoeiro, tal e qual como aquela que terá caído nos Invernos das pestes medievais.

É um luto permanente.

Quando numa saída para comprar víveres, pela voz, fisionomia ou pelos movimentos, reconhecemos um amigo, sorrimos por detrás de duas máscaras sobrepostas, chocamos com as nozes dos punhos resguardados dentro de luvas de protecção e dizemos, como quem quer garantir: Enquanto não piorar, aguentamos!

Janeiro negro: retrato do País em opiniões no "Expresso"

Pedro Correia, 17.01.21

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«É provavelmente a maior operação de branqueamento na política a que já assistimos. Quiseram "salvar o Natal" e agora morrem 150 pessoas a cada 24 horas... É como se um avião caísse todos os dias. Salvou-se o Natal e perdeu-se Janeiro, perdeu-se Fevereiro e não sabemos o que esperar de Março... Perderam-se vidas humanas, mortes que podiam ter sido evitadas. (...) A 14 de Janeiro somos o quinto país em todo o mundo com mais mortes por milhão de habitantes. Atingimos o tenebroso recorde de 156 vítimas diárias e há seis dias consecutivos que estamos acima das cem mortes.»

João Vieira Pereira

 

«Quando 10 mil portugueses morreram a mais no ano passado de outras doenças porque o SNS não conseguiu tratá-los, quando as enfermarias e as UCI estão à beira do colapso e quando é facil antecipar que os centros de saúde não terão capacidade para administrar vacinas a todos quando elas estiverem disponíveis em quantidade, insistir em recusar a utilização "a preço justo" da capacidade instalada do sector social e do sector privado é mais do que obsessão ideológica, é um atentado contra a vida dos portugueses.»

Miguel Sousa Tavares

 

«Os dois melhores retratos dos nossos erros são a app StayAway Covid e a absurda batalha "ideológica" sobre público e privado numa pandemia. A primeira, porque explica que é inútil criar tecnologia quando ninguém a alimenta (a percentagem de casos inseridos é ridícula); a segunda, porque mostra o vazio das nossas discussões políticas, que se arrastaram para os debates das presidenciais. Em vez de se montarem sistemas de resposta robustos, fazem-se guerras ideológicas. Depois, a realidade bate-nos à porta.»

Ricardo Costa

 

«Na frente sanitária, o que começou por ser apresentado como um milagre ("o milagre português") transformou-se nos dias de hoje num dos piores resultados do mundo, no que se refere ao ritmo de progressão das infecções, a que se seguirá o aumento do número de ambulâncias com doentes à espera de vaga nos hospitais superlotados e o aumento do número de mortos. Por muito que relevem, e relevam, razões exteriores, e objectivas, que talvez nada nem ninguém conseguiria superar, estão à vista de toda a gente os resultados da imprevidência, da falta de planeamento, da infantilização de um povo inteiro, que se quis deixar ser tratado como uma criança, para celebrar o Natal.»

Daniel Bessa

Janeiro negro: retrato do País em títulos do "Expresso"

Pedro Correia, 16.01.21

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«Governo preparado para manter restrições até à Primavera»

Nos próximos dois meses vão morrer tantas pessoas como nos últimos dez.

 

«Lisboa no limite, Centro e Alentejo mal e Norte a piorar»

Situação de pré-rotura de muitas unidades do Serviço Nacional de Saúde está a agravar-se devido à pandemia.

 

«Hospital de campanha fechado há meses por falta de médicos»

Unidade de contingência, com 58 camas, está no estádio Universitário desde Junho e nunca foi utilizada.

 

«DGS selecciona cancros que não podem ficar por operar»

Documento define prioridades entre doentes com intervenções inadiáveis face ao fecho de blocos operatórios.

 

«Portugal é o quarto país da Europa com as casas mais frias»

Nesta lista, só Bulgária, Lituânia e Chipre estão pior que nós.

 

«Aquecer a casa na vaga de frio: são 36 cêntimos por hora»

Consumo global de electricidade cresce 10% este mês, mas subida do consumo doméstico pode ser ainda maior.

 

«Imigração cai 9% em ano de pandemia»

Em 2019, estrangeiros haviam contribuído para 12% dos nascimentos em Portugal, atingindo um peso inédito na natalidade.

 

«Investimento público foi a grande vítima do défice zero»

Milhões de euros gastos pelo Estado não chegam sequer para compensar o desgaste das infra-estruturas.

 

«PIB pode cair até 7% este trimestre»

Caso as estimativas se confirmem, a economia portuguesa terá encolhido 8,2% no ano passado.

 

«Marcelo volta à rua sob tutela da DGS»

Presidente da República já fez mais de 80 testes à Covid-19.

 

«Assembleia da República reduz trabalhos»

Parlamento volta a realizar apenas dois plenários por semana, mantendo a redução do número de deputados por sessão.

 

Pequenos fogos por todo o lado

Maria Dulce Fernandes, 01.01.21

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2021 entrou com pompa e circunstância. Entrou com estrondo, com cor e aplausos.

Por todo o lado, pequenos foguetes, luz e cor espelharam a esperança e a resiliência herdada de um ano que saiu de mansinho, envergonhado e triste por ter sido o ano de todos os tormentos, de todos os medos, de todas as angústias e contradições.

A humanidade depositou a sua fé no porvir e recebeu ruidosa o novo ano desanuviando os céus e espanando a alma com estrépito para afastar o mal, os maus espíritos encarnados num morbo vil.

Dos telhados do seu isolamento lançaram o seu clamor muitas luzes ao céu e de tal modo que, durante largos minutos, a noite virou um arrebol de claridade por toda a parte, com uma toada alegre e barulhosa.

Esta noite todos os que olharam os céus iluminados, crentes e ateus, olharam com um sorriso no peito.

Com um misto de saudade, confiança, coragem, esperança e triunfo recebemos 2021.

 

Bom Ano Novo

Adeus, 2020

Pedro Correia, 01.01.21

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PASSAGEM DO ANO

 

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

 

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

 

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

 

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

 

Surge a manhã de um novo ano.

 

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

 

Carlos Drummond de Andrade