Jovem do futuro,
Escrevo-te este texto no mês de setembro do ano 2020. Poderia dizer que te escrevo a partir do ano da pandemia, tal como se estivesse em 1939 te poderia dizer que te escrevia do ano da guerra, mas como esta durou até 1945, e por não te querer faltar à verdade, digo-te apenas que te escrevo do ano em que a pandemia foi declarada.
Olhando para o que vivemos desde o início da passada primavera, posso contar-te que tudo começou do outro lado do mundo, lá no extremo oriente onde as doenças respiratórias são frequentes. Mas na Europa desde há cem anos, desde a Gripe Espanhola, que nada desde género cá chegava. Os sofisticados níveis sanitários desta ponta da Eurásia explicavam a nossa falta de comparência nessas ninharias que só afligiam os países do terceiro mundo. Apesar dos primeiros casos terem já sido registados no final de 2019, a nossa surpresa foi total.
Este vírus, um Corona, apresentou-se com um leque de características que abalaram o mundo em que vivíamos.
Se consultares os dados de mortalidade desta época poderás achar que estou a exagerar. Escrevo-te no início do que será a segunda vaga da pandemia, mas de facto até agora a mortandade não é comparável a outras pestes e pragas. Mas não te esqueças que noutros tempos estes fenómenos, por não terem explicação racional, acabavam por serem justificados como sendo castigos transcendentais. Como nos dias de hoje a ciência já praticamente expulsou o transcendental da esfera de cada indivíduo, ficamos sem saber bem o que pensar.
Importa lembrar que a pandemia anterior deixou o nosso país numa quase guerra civil, a que se seguiu uma longa ditadura. A actual democracia é já uma quarentona que apesar de ser democraticamente jovem já tem rugas, vista cansada, pernas pesadas, triceps flácidos e no cabeleireiro manda disfarçar os cabelos brancos. Mesmo sem ter com que pagar o serviço insiste em deixar gorjeta. Três falências financeiras já ninguém lhas tira do curriculum.
Ainda antes da pandemia, um quinto dos portugueses vivia na pobreza. Os pobres são os esquecidos do regime, passam frio de inverno, têm ratos a passear à porta da cozinha e não têm férias para gozar. Os valores humanistas apregoados pela esquerda que governa contrastam com esta realidade que persiste.
Uma vez por ano celebra-se a liberdade e finge-se que os pobres são livres. O que não é verdade, pois estão aprisionados pelos impostos que incidem sobre os seus contratos de trabalho e que, de tão pesados, afastam possíveis alternativas de emprego ou o emprego em si mesmo. Os governos garantem que se conseguirem cobrar mais impostos irão resolver o problema e assim vivemos num eterno ciclo de impostos altos e de pobreza duradoura que se autoalimenta.
Os partidos mudaram mas para pior. Trocaram os operários por minorias identitárias escolhidas a dedo. Outros preferem os animais às pessoas. Mas nenhum representa os pobres, que não sendo poucos, são uma minoria demasiado grande para ter importância. A abstenção é coisa de gente deplorável e os jornais estão tão falidos quanto a classe dominante podia desejar.
As falências de bancos dos últimos anos foram somente parte de uma imensa destruição de riqueza que apenas teve consequências nas algibeiras dos contribuintes que através do Orçamento de Estado tiveram de assumir os seus custos infinitos. A acompanhar este empobrecimento colectivo, os serviços públicos degradaram-se.
Quem tiver dinheiro para isso, paga para ter assistência médica prestada por privados. Os servidores públicos têm um sistema autónomo de saúde que lhes garante serem assistidos pelos mesmos privados. A restante população sujeita-se a listas de espera inexplicáveis e até a morrer enquanto aguarda por uma cirurgia que não será feita a tempo.
A justiça inverteu o ónus da prova na cobrança de impostos e é vergonhosamente impotente perante os bem identificados criminosos que nos roubaram a todos.
Por sorte calhou-nos este canteiro no fim do mapa, quase sempre fora das rotas dos impérios continentais e que permitiu que sejamos uma nação antiga. A geografia arredou-nos assim do centro das disputas de poder e também fez do nosso país um Estado-Membro da União Europeia. É em resultado da geografia, e não por qualquer mérito próprio, que recebemos milhões de metros cúbicos de impostos cobrados nos países ricos do norte e do centro da UE. Enquanto o fluxo de dinheiro europeu não for interrompido o regime irá aguentar-se. De resto lidamos bem com a mediocridade de quem aceita as esmolas como modo de vida.
Foi neste cenário de total dependência económica e de marasmo moral que entrámos nesta pandemia.
No início sabíamos apenas que o vírus era, e continua a ser, muito contagioso. Pode ter até duas semanas de incubação e mesmo antes de a pessoa infectada sentir qualquer sintoma pode estar já a contaminar quem o rodeia. Qualquer amigo, apenas conhecido ou até desconhecido que não apresente qualquer sintoma, pode ainda assim estar infectado e contagiar-nos. Sabendo isso é normal que desconfiemos de todos. Por isso, por medo, banimos o contacto físico, deixamos de dar apertos de mão, beijos no rosto e também de dar abraços. Quer dizer, não totalmente, pois por vezes transportamos o vigor com que queríamos esmurrar esta doença e convertemos esse impulso num abraço inteiro e apertado a alguém que nos é querido. Há coisas e momentos pelos quais continua a valer a pena correr riscos.
Será que, depois de terminada esta provação, nos voltaremos a cumprimentar como antes?
O medo do contágio, e as primeiras imagens chegadas da região de Milão com camiões militares cheios de caixões, levou a um auto-confinamento tão rápido que antecedeu até a declaração do estado de emergência pelo governo. A brusca mudança de hábitos retirou os clientes dos restaurantes, cafés, bares, salas de cinema, discotecas, espaços de espectáculo e de cultura, levou ao cancelamento de festas populares, de festivais de verão, de viagens aéreas e de estadias turísticas. O tráfego aéreo foi reduzido em mais de 90% e os aviões ficaram estacionados nos aeroportos. A quebra de riqueza que resultou desta paragem brusca foi imediata e ainda não sabemos ao que nos irá levar.
Quem por razões profissionais e ou financeiras o pôde fazer, ficou em casa. As famílias passaram muito mais tempo juntas. Essa mudança fez com que algumas ficassem mais unidas, mas outras, e pelo mesmo motivo, desfizeram-se.
Os profissionais de saúde foram os primeiros a lidar directamente com o pesadelo. O norte de Itália foi o primeiro grande foco europeu. Os médicos e enfermeiros que estiveram na linha da frente tiveram de recorrer aos protocolos da medicina de guerra, em que por falta de equipamentos suficientes tiveram de definir critérios de escolha para prestar socorro a um jovem saudável deixando de lado um velho, ou até um jovem não saudável. Os ventiladores tornaram-se no aparelho mais desejado. Em resposta a isso e em poucos dias milhares de engenheiros colaboraram on-line para desenvolver novos modelos de fácil produção e de menor custo. Excluindo egoísmos pontuais, respirou-se um sentimento de partilha e de união perante este este inimigo invisível.
As escolas passaram a funcionar à distância através da internet, algo impensável há poucos anos atrás. Mas as queixas desta solução foram muitas. Demasiados alunos não tinham forma de assistir e, como sempre, os mais pobres ficaram em desvantagem. Excluindo egoísmos pontuais, os professores mostraram espírito de missão. Deram o seu melhor para não deixar os seus alunos sem aulas. As aulas não presenciais exigiram-lhes muito mais horas do que seria necessário no mundo pré-covid. Os alunos adaptaram-se igualmente. As redes sociais colmataram parte da ausência forçada, mas demasiadas coisas no mundo escolar foram interrompidas.
Durante o confinamento, as varandas dos prédios urbanos ganharam uma nova vida. Dali se aplaudiu em reconhecimento os sacrifícios dos profissionais de saúde, dali se cantou em coro com desconhecidos e dali se fizeram incríveis concertos para os vizinhos igualmente aprisionados. Quando nos emocionámos perante os vídeos incríveis de eventos avulsos que chegaram até nós pelos ecrãs dos telefones e dos computadores, descobrimos que se conseguimos colaborar em manifestações que não são mais do que arte espontânea e colectiva, se conseguirmos sorrir enquanto este pesadelo nos agride, então ainda há motivo para ter esperança.
Houve também uma outra casta de heróis quase esquecida. Os supermercados continuaram a funcionar, as suas prateleiras continuaram a ser abastecidas com verduras produzidas pelos agricultores e transportadas pelos camionistas. Estas foram as humildes obreiras que para continuar a abastecer a colmeia não se puderam dar ao luxo de se fechar em casa nem de ir cantar para a varanda. Sabe Deus o medo com que tiveram de lidar para que os circuitos de abastecimento não fossem interrompidos. E assim evitaram o caos. Se alguém lhes perguntar o que fizeram ou porque o fizeram, dirão apenas que fizeram o que tinha de ser feito, e isso para mim é a definição de coragem.
Pouco tempo depois, entendemos que o confinamento nos poupava da doença, mas em contrapartida arrastaria multidões para o desemprego e para a fome. Perante isso digerimos o risco e seguimos em frente. As máscaras de protecção tornaram-se omnipresentes e passaram a esconder os dentes careados e falhos dos pobres assim como os lábios das mulheres bonitas. Com elas postas, com os seus elásticos nas orelhas, aprendemos a sorrir com os olhos.
Triste foi ver os nossos governantes a fingir que sabiam o que fazer. É claro que não sabiam, nem podiam saber. Ninguém nunca poderia estar preparado para uma pandemia como esta. Mas como o fingimento é o seu modo de estar na vida e como só sabem representar, acabaram por dizer coisas completamente opostas com poucas horas de diferença, sempre com o mesmo ar confiante.
Felizmente em grande parte da Europa, é-nos permitido gozar com os políticos. Os políticos portugueses, em particular, são incansáveis em ridicularizar-se a si próprios, assim como ao regime de que fazem parte e que representam. Às vezes são tão risíveis que parecem estar apenas apostados em nos entreter pelas gargalhadas que provocam. Acabam até por nos aliviar da pressão causada pela incerteza. Se se assumissem como palhaços, que é o que são, perderiam a graça.
Gostava de saber como são os líderes do teu tempo. Nunca li nenhuma história de ficção científica em que se vivesse em democracia. Será que os tiranos conseguirão triunfar?
Enquanto isso, e indiferente a tudo isto, a natureza manteve o seu curso. Os pássaros continuaram a nascer nos ninhos, e a cantar nas árvores. Os ratos e os corruptos continuam longe da extinção. Os golfinhos continuam a deslizar pelas águas do mar onde os microplásticos são cada vez mais. E os bebés continuam a nascer. Como eles irão querer melhorar o mundo que receberam, continuamos com motivos para ter esperança.
Eu, continuo a questionar-me se a beleza se esgota nos olhos de quem a contempla e nos ouvidos de quem a escuta ou, pelo contrário, reside nas mais pequenas partículas das coisas belas. Se o nosso código genético é 98% idêntico ao dos macacos, em que escala atómica é possível definir uns olhos bonitos?
O pôr do sol, esse, continua a ocorrer a oeste. Ao longo da maior parte da linha da costa continental do nosso território, isso faz com que o sol desapareça no mar. Poder assistir a esse momento fugaz continua a ser um privilégio, desperdiçado com indiferença.