E pronto. Vinte e cinco álbuns depois (não necessariamente os melhores de 2015; ouvi uma ínfima parte dos que mereceriam atenção e deixei de fora não apenas vários que poderia ter incluído como todos aqueles que já salientara ao longo do ano), acabemos isto com uma obra representativa dos aspectos negativos e positivos de tanto já ter sucedido na música pop/rock, não obstante as suas poucas décadas de existência.
O uso intensivo de samplers pode ser visto como um modo de fugir às dificuldades de criar algo verdadeiramente novo mas é também uma forma de admitir, questionar, comentar e reinventar o passado. Digamos que Jamie XX, como a banda de que faz parte (os XX), produz metamúsica. A qual, num mês não particularmente simpático para os fãs da pop, até me permite terminar com uma nota de optimismo:
Da depressão resultam excelentes obras de arte. Once I Was An Eagle, o álbum anterior de Laura Marling, era um trabalho minimalista de auto-análise dorida e raivosa, que suscitou elogios unânimes. Short Movies é menos intenso - porque Marling terá recuperado estabilidade emocional (felizmente: sofrer pela arte é um conceito bonito mas convém fazer pausas) e porque só podia ser, após quatro trabalhos (antes dos 24 anos de idade*) em contínua ascendência qualitativa. Não se trata de um álbum pacífico ou estagnado: apresenta laivos de electricidade (foi composto na Gibson ES-335 do pai) e inclui toda a inquietação habitual em Marling, particularmente no que respeita às relações amorosas (a necessidade, a desilusão, a ameaça à autonomia). Mas revela uma certa falta de coesão (talvez até de propósito) e, acima de tudo, teve o azar de suceder a um álbum sublime.
* Fica a informação de que agora tem 25 e fará 26 no próximo dia 1. Só para o caso de estarem interessados em enviar-lhe uma mensagem de parabéns. Ou, sei lá, um pastel de nata.
Se Florence exorciza o final de uma relação amorosa através de música por vezes bombástica mas sempre melodiosa, a norte-americana de ascendência hondurenha Lorelei Rodriguez, movendo-se na mesma área (digamos pop dançável baseada em sintetizadores), aposta na estranheza e na fragilidade para examinar a relação estagnada (bem como as dificuldades económicas) de uma imigrante em Nova Iorque. Dona de uma voz menos adequada a hinos grandiosos do que Florence, Lorelei assenta a maioria dos temas em letras cruas («Nothing comes between us/ But a piece of latex/ When you tear my clothes off/ Like I was a paycheck») e numa sonoridade sincopada, menos imediata. Todavia, Me vai mais além: inclui um par de canções nas quais, lírica e musicalmente, ela promete parar de olhar tanto para dentro e para trás («our memories are a threat», garante) e começar a olhar mais para fora e para diante. Afinal, depois de se tornar imperatriz dela mesma, resta-lhe partir à conquista dos outros. Dos fãs de Florence, por exemplo.
O primeiro álbum foi uma surpresa e uma desbunda que não possibilitava nem merecia questões mesquinhas. O segundo forçou-as. O terceiro trouxe respostas contraditórias: a várias letras letras mais confessionais, de alguém que procura sentido para o fim de uma relação amorosa (sim, em grande medida trata-se de outro break up album), contrapõe-se uma sonoridade grandiosa, de música pronta para encher estádios. Mas talvez Florence esteja certa. Talvez esta esquizofrenia devesse estar presente em qualquer final de relação: o lamento submergido não apenas por uma fúria regeneradora mas por uma imensa e quase deslocada crença nas próprias capacidades. Aguardemos pelo quarto.
Rickie Lee Jones não lançava um álbum de originais há uma dezena de anos. Conseguiu o dinheiro para produzir The Other Side of Desire através de uma campanha de crowdfunding e da venda de material de palco. O resultado não foge muito ao que seria de esperar mas, neste caso, a formulação deve ser considerada elogio. Trata-se de uma mistura de rock e de blues, com Nova Orleães - a morada mais recente de Jones - em pano de fundo.
Estou longe de ser um grande apreciador de disco sound. Prefiro não apenas ver Travolta dançar em Pulp Fiction a vê-lo dançar em Saturday Night Fever como - e principalmente - escutar a música ao som da qual ele dança: o falsetto de Barry Gibbs deixa-me capaz de magoar gatinhos indefesos. As recorrentes sonoridades disco do último álbum dos Tame Impala podiam assim ser-me tão agradáveis como uma visita ao dentista. Acrescente-se a histeria que tomou de assalto os críticos por alturas da saída de Currents (dir-se-ia que, à laMars Attack, Kevin Parker acabara de salvar o universo recorrendo a um loop de sintetizador) e a minha boa vontade encontrava-se em parte incerta aquando das primeiras sessões auditivas.
Mas Currents (que afinal raras publicações elegeram como álbum do ano) merece elogios. Trata-se de um cocktail psicadélico mas de um psicadelismo íntimo, assente não apenas em sonoridades condizentes (dizem-me) com trips induzidas pelo consumo de alucinogénios (situação em que vai-se a ver e até a voz de Barry Gibbs soa bem) mas nas fragilidades de um ser humano que, como tantos outros, voga entre o desejo da solidão e do contacto humano; entre a auto-análise da música assente em palavras que expõem a alma e a desbunda entorpecedora da música de dança.
Não obstante terem iniciado a carreira em 1993, os Low (o casal Mimi Parker e Alan Sparhawk, de Duluth, no Minnesota, apoiados pelo baixista Steve Garrington) parecem continuar um segredo reservado a uma mão-cheia de fiéis. Evidentemente, a sonoridade intensa mas dolente da música que fazem nunca lhes permitirá atingir as posições cimeiras das tabelas de vendas ou de streaming. Mas uma voz tão singular merecia mais. E Ones and Sixes até consegue ser um dos seus álbuns mais acessíveis.
(O vídeo acima - do primeiro single - é bem representativo da sonoridade deles. Mas não resisto a mostrá-los num tema mais animado, também do último álbum.)
Não haverá muitas bandas que mantenham uma evolução consistente do primeiro ao quarto álbum. Os Maccabees conseguiram-no. Marks to Prove It tem uma sonoridade tipicamente britânica, com ecos da década de 1980 (U2, Echo & the Bunnymen, The Cure), e inclui um conjunto de temas nos quais a faceta épica amplia desencantos (por exemplo, com a gentrificação da zona de Londres onde os elementos da banda cresceram) em vez de servir como sinal de optimismo.
El Vy é um projecto de Matt Berninger, dos The National, em colaboração com Brent Knopf (Ramona Falls, Menomena). O álbum de estreia inclui temas que soam bastante a The National e temas que soam menos a The National. Os primeiros são bons mas fazem-me desejar um novo álbum dos The National. Os segundos dividem-se entre supimpas e assim-assim, sendo que mesmo os assim-assim são interessantes (digam lá isto em voz alta sem cecear) pelo que revelam da vontade de Berninger em fugir por momentos à grandiosidade aconchegantemente depressiva dos The National e abraçar uma vertente mais ligeira e auto-irónica: afinal, o homem de I'm the Man to Be (no vídeo) é uma estrela rock que obtém 8,4 em críticas que recusa ler, gozando uma paz duvidosa num quarto de hotel onde recebe prostitutas e mantém o dick apanhando luz do Sol (como toda a gente sabe, ter o pénis bronzeado é sinal de verdadeiro sucesso); isto, claro, se a sugestão de auto-asfixia erótica não for para levar a sério.
Cresci noutros tempos. Sou um ouvinte de álbuns. Não faço playlists e raramente uso funções de escolha aleatória. Nos dias que correm, até rádio evito - excepto as estações noticiosas, numa tendência masoquista que mereceria análise psiquiátrica. Ainda assim, há álbuns que me são excessivos. É-me difícil ouvir algumas obras de fado de uma só vez, por exemplo. O excesso de fatalismo - e, embora contrariado, sou fatalista - incomoda-me.
Algo similar ocorre quando escuto a música de Márcia. Tomadas individualmente, acho as canções deste último álbum magníficas. Ouvidas em sequência, começam a cansar-me. Encontro-lhes uma faceta ligeiramente lamurienta que me força a uma pausa. O trabalho é óptimo: sólido, coerente, pleno de bom gosto. Mas ainda um dia gostava de ouvir Márcia arriscar um pouco mais. Arriscar um grito. Uma bofetada. Um gemido verdadeiramente raivoso.
Vencedor do Mercury Prize, o álbum de estreia de Clementine (inglês do norte de Londres, leitor da Bíblia e da poesia de William Blake enquanto adolescente, fã da música de Antony & the Johnsons e de Erik Satie sensivelmente pela mesma altura, vagabundo das ruas de Paris no início da idade adulta) voga entre a pop, o jazz e - empurrado pelo timbre de voz como que para um destino - o classicismo crooner.
O outro concentrado de sonoridades do ano, impossível de apreender num único tema (talvez por isso o vídeo oficial inclua dois). Grimes (a canadiana Claire Boucher) faz apenas pop mas é pop que mistura e reinventa todas as regras. Ao contrário do que sucedia no álbum anterior (Visions, de 2012), nem sequer evita pisar os terrenos do kitsch.
Fraco conhecedor do universo do Jazz, remeto os fãs para um texto recente do José Navarro de Andrade. Contudo, não posso deixar de assinalar o lançamento do melhor álbum de Cassandra Wilson em mais de uma década. Com a ajuda do produtor Nick Launay (PiL, Kate Bush por alturas de The Dreaming, Nick Cave and the Bad Seeds e mais uma data de gente talentosa), Wilson elaborou um tributo a Billie Holliday que é ao mesmo tempo sólido e etéreo, escuro e iluminador, rouco e deliciosamente suave.
Torres chama-se na verdade Mackenzie Scott. Num bom exemplo da geografia móvel de tantos norte-americanos, nasceu em Brooklyn (em Janeiro de 1991), cresceu em Macon, na Georgia, e mudou-se para Nashville após o ensino secundário. A música do seu (já) segundo álbum funciona num permanente jogo de tensões (medos, raivas, desejos, arrependimentos) que remete para algumas cantoras surgidas na década de 1990 - e, mais especificamente, para P. J. Harvey. Resta esperar que, saída da fase de pós-adolescência, Mackenzie (o nome «Torres» faz-me pensar num tipo alto e com bigode, ligado ao futebol) seja capaz de construir um percurso tão consistente e relevante como o da britânica.
Há um conceito por trás do álbum, uma tentativa de transferir para o plano humano a alotropia (capacidade de um elemento químico apresentar formas e propriedades distintas) do carbono. Ele pode encontrar-se na mistura de sonoridades (que vão da tradição sertaneja ao rock mais desbragado) e no cariz humanista das letras (preocupadas com o equilíbrio ecológico mas, de forma quase geral, louvavelmente desprovidas de declarações grandiosas ou de proclamações políticas). No entanto, como tantas vezes sucede em casos similares, é perfeitamente possível apreciar-se este lote de canções sem o conhecer.
O primeiro álbum de Natalie Prass, gravado em 2012 e deixado a marinar até 2015, encontra-se repleto de canções delicadas assentes em orquestrações ambiciosas. Na Pitchfork escreveram que se destacou dos restantes trabalhos de música de autêntica raiz americana (definida em pinceladas largas como uma mistura de soul, country e sonoridade dos musicais da Broadway) não pela sua genuinidade (disso há aos montes, aparentemente) mas pela sua artificialidade. Talvez tenham razão. Há no trabalho um lado cerebral, polido, meticuloso, que poderia revelar-se excessivo e afastar o ouvinte. Em vez disso, mantém-no envolvido e expectante.
(Numa análise rápida, é possível que este vídeo também pareça demasiado artificial e, acima de tudo, demasiado colorido para o Inverno; e, todavia - desculpem-me desde já mas ao sábado permito-me o ocasional excesso -, um raio de Sol por entre a chuva gera quase sempre um arco-íris.)
Depois de um par de magníficos álbuns intimistas, Julia Holter soltou-se e realizou o que, forçado a escolher sob ameaça de um leitor de CDs carregado com um disco de Tony Carreira, eu provavelmente designaria álbum do ano.
Armando Teixeira (aka Balla) continua a fazer alguma da melhor pop nacional. E ou fui eu que me habituei à sua voz ou canta hoje muito melhor do que no início da carreira.
Na música como noutras artes, o niilismo tem uma vertente reconfortante: existe afinal alguém com quem partilhar raiva e desencanto. Nos álbuns anteriores, as canções da californiana Chelsea Wolfe (intituladas Feral Love, Destruction Makes the World Burn Brighter ou They'll Clap When You're Gone) pareciam encontrar-se sempre à beira da explosão - mas esta nunca ocorria. Nos quatro primeiros temas de The Abyss, Wolfe permite que a sua música se expanda e entre quase no território do heavy metal. Depois acalma, como que percebendo a inutilidade do exercício.