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Delito de Opinião

Os melhores filmes de 2012 - parte 3

José Navarro de Andrade, 29.12.12

O povo português revelou-se o melhor activo de Portugal

Qualquer médico que vá à televisão predispõe-se a dizer coisas como “foi diagnosticada no paciente uma patologia de índole cutânea” só para complicar a frase “o doente tinha comichão”. Quando ele assim fala não é a nós leigos e abstractos que se dirige mas aos seus colegas de serviço que não o levariam a sério se se exprimisse doutro modo. Um dia numa viagem com um emérito gestor ele propôs que “consolidássemos as malas num dos quartos” antes de fazer check out no hotel. Pobre prisioneiro do seu linguajar, que já dele não se libertava mesmo em situações profanas.

A máxima em epígrafe, proferida com o crispado e possível enlevo, como o maior elogio ao seu alcance, é toda uma autópsia da mentalidade reduzidíssima do sr. Vítor Gaspar. Adeus ó personalismo cristão, sus ao humanismo existencialista, arreda-te ó cidadania iluminista; pela voz do Ministro passámos a existir meramente na coluna dos activos na folha de excel, como mais uma variável no cálculo.

 

Os melhores filmes de 2012 - parte 2

José Navarro de Andrade, 28.12.12

Com a notória excepção das comédias românticas, e por vezes nem essas escapam, impressiona o facto de todos os filmes americanos serem sempre tão marcadamente políticos. Nem é preciso referir os casos evidentes dos dramas jurídicos, ou militares, ou detectivescos, ou policiais – o comentário institucional faz parte do DNA do cinema americano.

Ainda assim, atrevo-me a votar em “Being there” (“Benvindo mr. Chance” em português) como o melhor, e de certeza o mais premonitório, filme político de sempre. Peter Sellers interpreta supinamente o jardineiro de mente simples como uma criança, que nas voltas do enredo acaba consagrado como um formidável comentador político. Ao dizer na televisão coisas tão profundas como “First comes spring and summer, but then we have fall and winter.”, levanta um vendaval de análises, porque ninguém deixa de ver profundas alegorias no que ele profere literalmente.

Até este Dezembro de 2012 nunca entendi por que razão o realizador Hal Ashby arruína o filme com o plano final em que Chance caminha sobre as águas. Mas ao ver a prodigiosa esparrela do sr. Artur Baptista da Silva fez-se-me luz: o cineasta queria salvaguardar com aquele plano o carácter ficcional da sua obra, não fosse a realidade superar o resto.

Os melhores filmes de 2012 - parte 1

José Navarro de Andrade, 27.12.12

 

A cerviz dobrada, o olhar abaixado, a pose mendicante, foi deste modo que o crespo meridional se dirigiu ao seu equivalente alemão a pedir-lhe pela mercê de deus. O germano tem rugas na testa como se tivesse sido abordado por um pedinte famélico à entrada de um restaurante de luxo. Nem se levanta nem olha de frente – enfadado.

O nosso murmura “that’s much appreciated” querendo dizer “obrigado” em idioma técnico.

Isto é o que se vê, mas na verdade trata-se de uma emboscada.

O manhoso do tuga foi lá pedir batatinhas, na crença de que o otário se descairia. Este, habituado ao escrúpulo dos media alemães, e julgando, como é próprio deles, que todo o mundo se pauta pelas suas regras, murmurou umas vacuidades para despachar o inconveniente, ignorando que estava uma câmara a compromete-lo.

Ficaremos sempre por saber o grau de ressentimento e de má vontade que desta cena em diante terá havido da parte de Wolfgang Shauble nos assuntos referentes a Portugal.

Há lá melhor exemplo de como nos dispomos a sermos vistos no mundo.

Discworld e a minha resolução de 2012

João Campos, 07.01.12

Há alguns meses, comprei uma antologia de contos intitulada Legends, de 1998. Editada por Robert Silverberg, Legends junta contos de fantasia de alguns dos melhores escritores do género da actualidade. Entre estes figuram, por exemplo, George R.R. Martin, autor da consagrada série A Song of Ice and Fire - o conto The Hedge Knight foi o que me levou a comprar a antologia, e só por si vale os sete euros e vinte cêntimos que custou o livro - ou Robert Jordan, falecido em 2007, autor da série The Wheel of Time. E, claro, Terry Pratchett, com um conto saído directamente da série de fantasia que o celebrizou - Discworld. O conto publicado nesta antologia intitula-se The Sea and Little Fishes, e é a coisa mais divertida que já li desde The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, de Douglas Adams. Discworld é, para todos os efeitos, um marco na literatura de fantasia, pela sua longevidade - já conta com trinta e nove livros publicados desde 1983 - e pelo seu inigualável sentido de humor, a satirizar naquele mundo plano assente em quatro enormes elefantes que viajam pelo Universo empoleirados na carapaça da gigantesca tartaruga Great A'Tuin clássicos da literatura, como Tolkien ou Lewis, como inúmeras referências da cultura popular. 

 

A minha curiosidade quanto ao universo de Discworld era já antiga, e aquele conto foi a gota de água. Dada a minha incapacidade (não é só minha, mas adiante) de fazer e cumprir as tradicionais resoluções de ano novo - deixar de fumar, comer melhor, dormir mais, fazer exercício, tirar carta de condução, etc. -, decidi fazer desta série literária de Pratchett a minha resolução para 2012 - começar a ler Discworld, partindo do primeiro livro - The Colour of Magic - e ver até onde consigo ir sem estar necessariamente a fazer uma maratona e lendo outras coisas nos entretantos. Não que a série tenha necessariamente de ser lida por ordem cronológica - simplesmente preciso de alguma ordem, ou a coisa cedo descarrila. Ainda não comprei o primeiro volume, mas um vale de compras de uma livraria que recebi no Natal levou-me a comprar o décimo, Moving Pictures. Tem sido resistir a lê-lo de fio a pavio - aliás, tem sido impossível, dado que já li algumas páginas do início. Deixo aos leitores do Delito a seguinte passagem, que é capaz de dar uma ideia do estilo do autor e do seu mundo fantástico: 

There's a saying that all roads lead to Ankh-Morpork, greatest of Discworld cities. 

 

At least, there's a saying that there's a saying that all roads lead to Ankh-Morpork.


And it's wrong. All roads lead away from Ankh-Morpork, but sometimes people just walk along them the wrong way.


Poets long ago gave up trying to describe the city. Now the more cunning ones try to excuse it. They say, well, maybe it is smelly, maybe it is overcrowded, maybe it is a bit like Hell would be if they shut the fires off and stabbed a herd of incontinent cows there for a year, but you must admit that it full of sheer, vibrant, dynamic life. And this is true, even though it is poets that are saying it. But people who aren't poets say, so what? Mattresses tend to be full of life, too, and no-one writes odes to them. Citizens hate living there and, if they have to move away on business or adventure or, more usually, until some statute of limitations runs out, can't wait to get back so they can enjoy hating living there some more. They put stickers on the back of their carts saying 'Ankh-Morpork - Loathe It or Leave It'. They call it The Big Wahooni, after the fruit.

 

Every so often a ruler of the city builds a wall around Ankh-Morpork, ostensibly to keep enemies out. But Ankh-Morpork doesn't fear enemies. In fact it welcomes enemies, provided they are enemies with money to spend. It has survived flood, fire, hordes, revolutions and dragons. Sometimes by accident, admittedly, but it has survived them. The cheerful and irrecoverably venal spirit of the city has been proof against anything...

 

Until now. 

Antes desta descrição há um diálogo hilariante de um fantasma com a Morte (um dos protagonistas da série), mas este texto já vai longo. 2012 pode ser o ano terrível que os comentadores andam a anunciar na imprensa todos os dias, mas pelo menos em termos literários espero que o meu 2012 seja bastante divertido. 

Mãos à obra

Teresa Ribeiro, 31.12.11

O melhor é ser pragmático, tirar as pedras do sapato, escolher uma nuvem e deitar mãos à obra. O Pessoa percebia disto. Sigamo-lo em 2012.

 

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo,
e posso evitar que ela vá à falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios,
incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…"

Fernando Pessoa

Feliz Ano Novo

Receita de Ano Novo

Laura Ramos, 31.12.11



Para você ganhar belíssimo Ano Novo

cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
                                                                                           Carlos Drummond de Andrade
                                                                                    
"Jornal do Brasil", Dezembro/1997.