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Delito de Opinião

Há 50 anos

Luís Menezes Leitão, 18.12.11

 

Faz hoje precisamente 50 anos sobre a operação Vijay, através da qual a União Indiana procedeu à tomada de Goa. Historicamente foi o início da queda do orgulhoso Império Português, que o regime de Salazar acreditava ser eterno. Goa não tinha à altura qualquer importância económica ou estratégica para Portugal, possuindo apenas um valor simbólico e cultural. Era por outro lado um território militarmente indefensável, pelo que só por obstinação o país poderia pretender conservá-lo após a declaração de independência da Índia.

 

A estratégia de Salazar em defender obstinadamente Goa representou por isso um irrealismo total, que não hesitou em pedir um sacrifício humano inaceitável. Salazar pretendia a morte de todos os militares portugueses em Goa, apenas com o fim de provocar uma condenação internacional da Índia. Ao mesmo tempo ordenou que fossem retiradas de Goa as relíquias de São Francisco Xavier, algo que seria traumatizante para os católicos de Goa.

 

O absurdo da estratégia de Salazar atingiu o ponto de solicitar ajuda à Inglaterra com base na antiga aliança para combater a União Indiana em Goa. Como se os ingleses que foram expulsos de toda a Índia fossem a seguir entrar em guerra com a Índia apenas por causa de Goa. Seria como se a Inglaterra fosse pedir a Portugal que entrasse em guerra com o Brasil se o Brasil decidisse invadir a Guiana Inglesa.

 

Perante esta estratégia absurda o governador Vassalo e Silva tomou as decisões que se impunham. Não aceitou conduzir os militares seus subordinados a uma morte inútil, nem devolveu a Portugal as relíquias do santo, uma vez que sabia perfeitamente que os goeses nunca lhe perdoariam se o fizesse. Tal valeu-lhe a fúria do regime, tendo ficado com a carreira militar destruída. Mas teve o devido reconhecimento dos habitantes de Goa. Quando uns anos mais tarde lá voltou, foi apoteoticamente recebido. Os goeses sabiam que tinha sido graças a ele que a libertação de Goa não ficou manchada por um banho de sangue.

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 15.03.11

 

VIII — ANGOLA É NOSSA!

«Andar rapidamente e em força»

 

A 15 de Março de 1961, poucas semanas depois de ter estalado "oficialmente" a guerra em Angola, Lisboa assistia ao embarque no Niassa das primeiras tropas (quatro companhias de Caçadores) para reforçar a modesta guarnição angolana. Nesse dia, a União das Populações de Angola (UPA), de Holden Roberto, com apoio congolês, atacava brutalmente e de surpresa a região de Dembos, no distrito de Cuanza-Norte.

Era manhã. A estrada Luanda–Carmona, alargada e arranjada através de um investimento apreciável, continuava a ser em terra batida e ainda estava alagada e quase intransitável pelas chuvas fortes da época, à espera da estação do cacimbo que voltaria a secá-la e a alisá-la. O estado dessa longa "via do ouro" (pela qual transitavam muitas riquezas a caminho do porto de Luanda), encharcada e ladeada por matas espessas e cafezais extensos, não assustava os rebeldes negros: cedo, pelas 7 horas, já se movimentavam em direcção a Quitexe, onde não havia razão para que a sua presença nesse dia pudesse ser estranha. Uma hora antes, porém, começara a circular a notícia de que uma centena de homens tinham abandonado uma fazenda próxima e o chefe do posto administrativo decidira percorrer algumas roças da região para verificar se estava tudo normal.

 

As primeiras vítimas foram encontradas nessa ronda, em poucas horas: proprietários e famílias inteiras, bem como empregados e criados, jaziam em poças de sangue, mortos à catanada. Os grupos rebeldes perseguiam os que procuravam fugir, armar-se ou pedir socorro. Muitos empregados, previamente recrutados em segredo pelos revoltosos, foram os próprios carrascos dos patrões; os que não pertenciam aos rebeldes, tombavam também com os brancos. Propriedade atrás de propriedade, homens, mulheres e crianças, brancos e negros, foram procurados, apanhados, violados e degolados ou retalhados.

A Quitexe seguiu-se Nambuangongo, que ficava mais isolada e que, por isso, a UPA reivindicou como seu quartel-general. A chacina prolongou-se por outras povoações da região e passou de Dembos a Uíge e à zona fronteiriça com o Congo ex-belga. Pelo caminho, eram destruídas pontes e assassinados os chefes de posto e as mulheres e filhos. A falta de forças policiais, de pistas de aviação e de unidades militares impediu praticamente qualquer reacção à escala.

 

Há quem afirme que agentes da CIA apoiaram discretamente Holden Roberto, com os EUA a alimentar sonhos de petróleo angolano. Há igualmente quem afirme que a acção envolveu uns 200 mil rebeldes, para os quais o alvo era uma comunidade com cerca de 50 mil brancos. A verdade é que a rebelião irrompera do Congo, em grande parte, e a surpresa da operação, preparada fora de portas com a ajuda do exército congolês, permitira que as vítimas fossem facilmente cercadas.

O massacre espalhou o terror por todo o Norte de Angola, em poucos dias transformado num mar de sangue. O resultado da chacina impiedosa e de invulgar violência nem sequer serviu os interesses a prazo de Holden Roberto ou foi útil para a UPA. Contudo, o saldo de milhares de pessoas barbaramente mortas e mutiladas não se adivinha no comunicado oficial de 17 de Março que foi publicado pela imprensa angolana: «Verificaram-se na zona fronteiriça do Norte de Angola alguns incidentes a que deve atribuir-se gravidade por demonstrarem a veracidade de um plano destinado a promover actos de terrorismo que assegurem, a países bem conhecidos, um pretexto para continuarem a atacar Portugal perante a opinião pública internacional (...) Chegaram a Luanda alguns feridos que foram carinhosamente recebidos, e toda a população de Angola demonstra a mais clara determinação em colaborar com as autoridades (...)»

 

A comunidade internacional criticava Portugal e o salazarismo fingia ignorar o que todos sabiam há muito que ia passar-se. Assim, o Estado Novo reagia sempre tarde e mal. Mesmo quando Salazar se dirigiu ao País e tirou partido da indignação popular para promover a situação intocável de Angola através da sua defesa militar, dizer que «andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão» não evitou milhares de mortes nem pôs a salvo muitas famílias que tombaram cruelmente sem direito a qualquer protecção.

Já a 20 de Fevereiro a Libéria pedira uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU para apreciação do caso angolano. Nesse mesmo dia 15 de Março, a reunião urgente terminava com uma moção a condenar a situação em Angola e a política portuguesa que a conduzia, moção essa que foi pela primeira vez votada simultaneamente pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Mas a guerra vai ser longa e revigora o salazarismo, que entende fazer peito não apenas aos EUA e URSS, como também às Nações Unidas. No isolamento de Portugal que se acentua, a marcha Angola É Nossa! há-de tornar-se uma espécie de hino angolano em tempo de guerra, só que cantado apenas do lado colonial.

 

Imagens

· Angola, 1961: elementos da Juventude da UPA

treinam com armas

· Vítimas do massacre de 15 de Março

· Manchete d' O Século (Março de 1961)

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 04.02.11

 

VII – COMEÇA A GUERRA COLONIAL

"O assalto às prisões de Luanda"

 

A 4 de Fevereiro de 1961, uma conjugação de acontecimentos em Luanda volta a abalar o Estado Novo. Desta feita, o abalo é para durar: formalmente, marca o início da longa guerra que Portugal vai travar nas colónias africanas, a que o regime vai chamar Guerra do Ultramar (para dar sentido ao fim da designação de "colónias" e à sua consagração, irrelevante, como "províncias ultramarinas"). A data é tão importante para Angola que o aeroporto de Luanda, depois da independência, vem a receber o nome de Aeroporto 4 de Fevereiro.

O conjunto de acções vulgarmente apelidado como "o assalto às prisões de Luanda" refere-se ao ataque concertado levado a cabo naquela cidade a 4 de Fevereiro, por militantes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), contra a Cadeia de S. Paulo, a casa de reclusão militar, uma esquadra ou posto policial, as instalações da Emissora Oficial de Angola (Emissora Nacional) e outras repartições públicas.

 

A iminência de uma guerra inevitável já é sabida em Lisboa, naquela altura. Esse dia 4, de resto, não parece que tenha sido escolhido ao acaso: apesar do desfecho do "assalto ao Santa Maria" em terras do Brasil, na véspera, ainda muita gente espera que Henrique Galvão acabe por conseguir levar o paquete até Angola e, por isso, há uma quantidade de repórteres de vários países em Luanda, prontos a cobrir esse caso.

Tudo indica que é a possibilidade de ampla cobertura internacional que despoleta a acção do MPLA, interessado em ganhar visibilidade. A decisão tem de ser tomada rapidamente, para assim aproveitar a presença favorável de diversos órgãos de comunicação social estrangeiros.

 

É impossível escamotear a ligação entre a acção em Luanda e a revolta prolongada e mal pacificada na Baixa do Cassange, onde os negros que trabalham na cultura do algodão da poderosa Cotonang (luso-belga) se manifestam desde o início do ano contra as condições impostas e os salários. Ainda em Janeiro, à greve dos indígenas no Cassange contrapõe-se a força de militares e polícias mobilizados para essa região e que os perseguem por ar e por terra. Os tumultos agudizam-se e o regresso à normalidade — apenas aparente — dá-se à custa da chacina de muitos revoltosos e seus familiares, fuzilados entre os supostos cabecilhas da revolta.

A Baixa do Cassange é influenciada pela região vizinha do ex-Congo Belga, país já independente desde 30 de Junho do ano anterior, onde também se estendem  as imensas plantações de algodão que exploram mão-de-obra intensa e com obrigações que são praticamente impossíveis de cumprir. Com a deslocação de efectivos militares e policiais para controlar os protestos no Cassange, Luanda é uma cidade pouco segura nesse momento. A segurança precária e a presença de jornalistas estrangeiros são os aspectos determinantes, mas o primeiro objectivo do assalto às prisões consiste em soltar dirigentes do MPLA que estão presos.

 

Além de diversos atacantes mortos nesse 4 de Fevereiro, do lado oposto perdem também a vida um cabo do Exército e sete agentes policiais. O funeral destes em Luanda culmina em mais violência: previamente armados, vários elementos da população branca perseguem os indígenas pelas ruas da cidade e arredores, matando muitos deles (há quem fale em três mil mortos).

Estas feridas abertas juntam-se às hostilidades mais antigas. De acção em acção, de resposta em contra-resposta, estão traçados os contornos de uma guerrilha que opõe, numa visão grosseira, colonos e negros ou brancos e indígenas, sujeitos a um estatuto oficial que não concede igualdade de cidadania às duas partes. Lá no fundo, cresce e persiste a vontade de libertação, consubstanciada no direito à autodeterminação reivindicado pelos líderes, muitos deles possuidores de preparação intelectual e académica obtida em território continental — na velha Metrópole, que acorda tarde para a necessidade de ter quadros superiores no seu Ultramar.

 

A guerra colonial há-de estender-se à Guiné, em 1963, e a Moçambique, em 1964. Vai durar longos anos e, em certa medida, como que acaba por fornecer uma inesperada legitimidade ao salazarismo, que sai reforçado ao aproveitar para unir os portugueses, tanto quanto possível, em torno de uma causa nacional de relevância óbvia. Por outras palavras: há muito que não há uma causa que justifique o prolongamento do regime e essa defesa do solo pátrio vem dar um novo fôlego (apenas interno, que não externo) à manutenção do Estado Novo. Tratando-se de operações de guerrilha, é de fraca precisão tentar saber quem ganha ou quando e onde se ganha. Só se sabe que Portugal apresenta o maior esforço de guerra europeu no pós-Guerra e que, à época, as antigas colónias africanas pertencentes a países da Europa estão a obter a sua independência a bom ritmo.

O nosso país (leia-se: o regime) não quer abdicar dos territórios do velho Império, mas o quadro social muda substancialmente a partir de 1961. Por um lado, a emigração (clandestina ou "a salto") tem mais uma razão de ser: fugir à guerra, o que significa recusar o cumprimento do serviço militar obrigatório. Por outro lado, as famílias portuguesas absorvem um novo ritual: a despedida dos seus filhos, pais, irmãos e maridos que embarcam no cais de Alcântara, o drama do adeus aos soldados que partem. Muitas vezes, é o último adeus.

 

Imagens

· Luanda: o Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro

· Monumento angolano aos Heróis do 4 de Fevereiro

· Placa com palavras de Agostinho Neto alusivas

à fundação do MPLA em 1956

· Primeiro dístico (raro?) do MPLA (integralmente

escrito em francês)

· Funerais em Luanda após o 4 de Fevereiro

· Embarque de tropas no Tejo

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 03.02.11

 

VI – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (5)

(conclusão)

A 3 de Fevereiro de 1961, antes do desembarque no Recife, os passaportes dos passageiros portugueses e espanhóis do Santa Maria são carimbados com um visto assinado por Henrique Galvão e um selo do grupo rebelde, o DRIL, «numa cerimónia bem-humorada» e «sem qualquer formalidade», mas apenas porque «fará irritar certamente os funcionários de Salazar» (Henrique Galvão, O Assalto ao "Santa Maria").

Nesse derradeiro momento, vê-se que Galvão conserva a preocupação de deixar uma boa impressão e quer descontrair aqueles com quem andou no mar treze atribulados dias.

 

A edição da revista Paris Match de 4 de Fevereiro sai para todo o mundo com uma reportagem amplamente ilustrada de 12 páginas. Na capa, dedicada por inteiro ao caso, a chamada para o «Exclusivo – A bordo do Santa Maria – Fotos e relato» é completada assim: «La fantastique aventure de Galvao et des pirates de la révolution». No interior, lê-se: «Désormais sur le paquebot de luxe règne l'aventurier de la révolution: Galvao». Referindo-se ao encontro com aquele a quem chama "aventureiro", o jornalista descreve-o como um «adversário severo do presidente que governa Portugal há mais de 30 anos», um «capitão, autor dramático, deputado e evadido da prisão» e um «homem desesperado de 65 anos que fez a entrada mais espectacular no palco do mundo».

Sobre o paquete, diz que «o palácio flutuante era o "primeiro pedaço da pátria libertada"». A revista transcreve o que Galvão comunica quando se dirige aos passageiros no pequeno-almoço «dans les salles à manger où fument le thé et le café habituels», após assumir o comando do navio: «Mesdames, messieurs, vous êtes désormais sur une parcelle de Portugal libre... Nous ne nous rendrons à personne, mais nous nous portons garants de vos existences et même de votre confort...» Convenhamos que, apesar da forçada mudança de planos no início da acção — para desembarcar os feridos em Santa Luzia — a simbólica declaração de liberdade resulta em pleno: o golpe mais rude para o Estado Novo não é o desafio a Salazar, mas o velho regime passar a ser alvo de uma azeda atenção mundial.

 

O Santa Maria deixa o Recife no dia 7 para regressar a Lisboa e entrar engalanado no Tejo a 16. A 17, quando atraca perante uma multidão no cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, é recebido por Salazar em pessoa. "Obrigado, portugueses" — diz o presidente do conselho. "O Santa Maria está connosco." No mês seguinte, o paquete passa de novo a operar e, sete anos depois, é alvo de uma boa remodelação e faz cruzeiros à Madeira, Canárias e Caraíbas.

Em 1973, ao sair do Tejo para uma viagem, o navio sofre uma avaria e já não parte. A desfocada visão da época (aliada a um regime político fechado) só tem olhos para o crescimento da aviação comercial e não percebe o caminho favorável que leva o mercado dos cruzeiros de luxo. Assim, é desperdiçado o potencial do Santa Maria, apesar do seu requinte e de ainda não ter 20 anos. Em resultado dessa falta de visão, o paquete é vendido a um sucateiro naval de Taiwan, onde acaba desmantelado. (O filme Assalto ao Santa Maria, de Francisco Manso, estreado em 2010, recorre ao navio-hospital Gil Eanes, no qual se introduzem alterações cénicas no convés para o efeito.)

 

Henrique Galvão fica a viver no Brasil. Continua a escrever e a encontrar-se com alguns opositores de Salazar, sempre na mira de conspirar contra o regime, e conserva uma ideia: ver Portugal longe do salazarismo e do comunismo.

Mentor e líder da "Operação Dulcineia", a qual fica nos anais da acção política pela insólita tomada de meios aeronavais, acaba por não assistir ao enterro do Estado Novo. Morre exilado em São Paulo, a 25 de Junho de 1970, aos 75 anos, com a doença de Alzheimer.

 

Imagens

· Capa e página interior da Paris Match de 4 de Fevereiro de 1961

· Recife: Galvão e Delgado (no canto inferior direito) deixam o paquete

· Fotografia de Henrique Galvão na Paris Match

· Na ilha de Santa Luzia: lancha do Santa Maria que transportou

dois feridos, acompanhados por cinco tripulantes,

e cuidados hospitalares aí recebidos

· Regresso a Lisboa: o Santa Maria atracou engalanado em Alcântara

· O Assalto ao Santa Maria foi realizado por Francisco Manso

· Henrique Galvão ficou exilado até morrer, com 75 anos, em 1970

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 02.02.11

 

V – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (4)

(continuação)

A 2 de Fevereiro de 1961, o Santa Maria dá entrada e fica ancorado no porto de Recife. Há centenas de jornalistas a cobrir o caso, o que chama a atenção da comunidade internacional para o regime político instalado em Portugal. Paralelamente, quem está também no Recife é Humberto Delgado, que chegara ao paquete na véspera, no barco de pesca alugado por repórteres da Time e da Life. A presença de Delgado e a maneira como ele quer sobressair gera grande desaguisado entre os rebeldes espanhóis, já crispados pela evidente liderança portuguesa da operação.

Dias antes, o francês Dominique Lapierre, jornalista do prestigiado semanário francês Paris Match, está nos EUA quando se sabe do caso na sede da revista. Recebe dez mil dólares (montante então apreciável) e instruções para voar para o Recife, a fim de obter toda a história da "Operação Dulcineia" da boca do próprio Henrique Galvão — e em exclusivo.

 

Ao chegar ao Recife, com o paquete ainda a movimentar-se ao largo da costa, Dominique Lapierre calcula que encontra aí um milhar de enviados especiais em reportagem e fica aflito. "Pela primeira vez vi um jornalista chinês!" — diz ele mais tarde. Acompanhado pelo fotojornalista da Paris Match Gil Delamare, percebe que tem de improvisar: aluga uma avioneta e toma parte entre os poucos que vão com antecedência ao encontro do paquete. Delamare até se lança do pequeno avião para fazer as primeiras fotografias e é recolhido da água pelos norte-americanos. Deste modo, já faz tempo que estão instalados a bordo quando começam a subir ao barco muitos outros repórteres.

Lapierre tem apenas de continuar a ser imaginativo para ganhar a confiança de Henrique Galvão e obter o exclusivo para a revista. Entrara disfarçado de bombeiro e não perde tempo ao avistar Galvão. Estende-lhe a mão e dispara: "Tem aqui dez mil dólares para a sua causa." É assim que combinam encontrar-se numa cabina previamente destinada ao jornalista, onde este recebe do "pirata" português o relato pormenorizado da operação e a garantia do exclusivo (o que interessa a ambos, afinal). "Foi um exclusivo mundial" — conta Lapierre. "Falou um francês sublime durante toda a noite. Via-se que era um fidalgo."

 

Salazar mandara agentes da PIDE e membros da Legião Portuguesa para o Recife: não podem actuar, mas podem ser úteis. Durante a noite daquela entrevista, alguns homens da PIDE estão já a bordo e mantêm-se à escuta do lado de fora da porta da cabina até às tantas da madrugada. No final, quando os dois saem para comer qualquer coisa, Lapierre mostra receio pelo perigo de serem surpreendidos pelos agentes, mas Galvão tranquiliza-o com ironia: "A polícia secreta de Salazar tem horários de funcionário público."

O jornalista há-de recordar essa e outras passagens da conversa que mais o impressionaram, entre as quais a descrição do momento em que Henrique Galvão tinha mudado o nome do paquete. «Os passageiros estavam a tomar o pequeno-almoço quando ele falou aos microfones e disse: "Tenho a honra de vos informar que não estão mais no Santa Maria, mas no 'Santa Liberdade'."»

 

Os passageiros começam a mostrar-se nervosos e a tripulação está a ficar tensa. Já é dia 3 e ainda se sucedem as negociações entre os rebeldes e as autoridades norte-americanas (com o vice-almirante Allen Smith à cabeça) e brasileiras. Henrique Galvão está a assegurar que o desembarque e a entrega do navio hão-de correr pelo melhor. Sobretudo, apesar da impaciência de muitos passageiros, está a fazer render o tempo, não só para que o novo governo brasileiro entre plenamente em funções, mas também para deixar que continue a haver despachos noticiosos e reportagens para toda a parte.

Por fim, chega a hora de desembarcar os passageiros e, a seguir, a tripulação. O navio é entregue às autoridades do Brasil, que o devolvem aos representantes de Portugal: um comando e elementos da Legião Portuguesa entram a bordo nessa noite. Por seu lado, Galvão e Delgado sentem-se satisfeitos: acreditam ter provocado os estragos possíveis ao salazarismo e alertado a comunidade internacional para a realidade política que vigora em Lisboa. Pela mão de Lapierre, uma conhecida revista francesa vendida em muitos países está prestes a confirmar isso mesmo.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria ancorado no porto de Recife

· O paquete (duas fotos) ao largo da costa de Pernambuco

· 'Santa Liberdade': os rebeldes conservam o novo nome até ao fim

· Recife: Galvão em dois momentos das negociações a bordo

(o vice-almirante Allen Smith à esquerda)

· Momentos (duas fotos) do desembarque dos passageiros

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 25.01.11

 

IV – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (3)

(continuação)

A 25 de Janeiro de 1961, o Santa Maria já navega há quatro dias conduzido pelos seus sequestradores quando é avistado e contactado pela primeira vez. O alerta é dado por um avião de patrulha dos EUA sobre as Caraíbas. Sobrevoado e intimado para se dirigir a Porto Rico, por haver mais de três dezenas de norte-americanos a bordo, o capitão Henrique Galvão faz saber que recusa ser tratado como pirata e receber ordens de estrangeiros. Porém, já há navios de guerra a interceptá-lo.

Como já pedira à ONU e a Washington o reconhecimento do estatuto de "rebeldes políticos em guerra" e pretende ampliar a visibilidade internacional que o move, Galvão responde que quer dar uma conferência de imprensa internacional a bordo, mas sem jornalistas portugueses e espanhóis.

 

O paquete continua a navegar — com as luzes apagadas à noite, para se confundir com um cargueiro — e não há tensão por parte dos tripulantes e passageiros, que estão a colaborar pacificamente com os seus "piratas": «passam-se filmes nos cinemas, que são bastante frequentados», enquanto «nos salões, com as cortinas corridas, as orquestras do navio tocam e os passageiros dançam», e «o nosso grupo» mantém-se «sempre nas melhores relações com a tripulação» (Henrique Galvão, O Assalto ao "Santa Maria"). É um quebra-cabeças para as autoridades em terra, pois ninguém entende se o navio se dirige para o Brasil, Angola, Cabo Verde ou outro lugar. Portugal aposta em Cabo Verde e mobiliza para aí meios aéreos e navais no dia 26, mas o paquete, a 27, parece rumar ao Recife (Brasil).

No mesmo dia, o poeta angolano e activista político Mário Coelho Pinto de Andrade (1928–1990), presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), emite uma declaração a dizer que a luta pela libertação das colónias é independente dos planos de Galvão e Delgado para pôr fim à ditadura.

 

Henrique Galvão percebe que começa a ser encarado como rebelde quando é informado de que os comandos navais dos EUA pretendem negociar com ele. Vendo-se respeitado de acordo com as circunstâncias, aceita receber um representante em mar aberto e coloca a condição de ser escoltado e protegido. Comunica também a Humberto Delgado que, até aí, a operação está a ser bem sucedida.

Depois de negado um pedido de asilo enviado ao Congo, que manifesta já ter problemas internos que cheguem, o Santa Maria continua a aproximar-se do Brasil, seguido por meios aeronavais dos EUA. Com a falta de colaboração de outros países (excepto a Espanha), Portugal continua a desenvolver palpites e a proceder a buscas em vão, que se prolongam pelo dia 28.

 

Não há dúvida: Washington está a velar pelos 34 norte-americanos a bordo e quer evitar qualquer ataque que os ponha em perigo, eventualmente ordenado por Salazar ao saber do paradeiro do paquete. Portanto, os EUA não estão a informar Lisboa, que demora a ficar ao corrente dos acontecimentos. Entretanto, a 29 e já em águas brasileiras, a audácia de alguns jornalistas leva-os a chegar ao barco em primeiro lugar. Um deles é o activista comunista português Miguel Urbano Rodrigues, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, exilado depois de trabalhar no Diário de Notícias e no Diário Ilustrado.

Sempre escoltado pelos norte-americanos, o navio aproxima-se definitivamente da costa de Pernambuco e, a 30, está a posicionar-se em frente ao Recife. Galvão faz contas, pois sabe que precisa de esperar pela substituição de Kubitschek de Oliveira — que actuaria conforme a vontade de Salazar — por Jânio Quadros, cuja tomada de posse está marcada para o dia seguinte. A bordo, a vida continua descontraída: além do menu para o jantar do dia 30, prepara-se uma festa de despedida; não falta quem se tenha colocado ao lado dos rebeldes e já se dá como certo que o desfecho do golpe está para breve.

 

Salazar fica furioso quando toma conhecimento de que o Santa Maria, no dia 31, está ancorado ao largo do Recife e que Galvão recebe a bordo, ainda de madrugada e com honras militares, o vice-almirante Allen Smith, com quem conferencia e que se faz acompanhar por outras individualidades (incluindo o elemento para os assuntos políticos da embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e o cônsul no Recife), além de vários jornalistas. Confirma-se formalmente que o estatuto reivindicado pelos rebeldes é reconhecido pelos EUA e pela comunidade internacional em geral.

Galvão ainda não está informado, mas o dia 31 de Janeiro é muito complicado em Portugal e não só por causa do Santa Maria: o governo não reconhecera a eleição democrática da direcção da Casa dos Estudantes do Império e enfrenta uma agitação estudantil, o jornal República é suspenso e, como se não bastasse, estala uma revolta do MPLA na Baixa do Cassange, onde a situação se encontra muito instável desde os primeiros dias do ano.

 

A ira de Lisboa ainda cresce mais a 1 de Fevereiro, por saber que o novo presidente Jânio Quadros faz chegar a Henrique Galvão uma mensagem de boas-vindas e de solidariedade democrática, com a total disponibilidade para conceder asilo político no Brasil a todos os rebeldes. Quadros e Galvão já se conheciam e tinham estado juntos na Venezuela no ano anterior.

No dia seguinte, o paquete dá entrada no porto de Recife. O mentor da arrojada operação entende que esta tem de ficar por ali. Sem dinheiro para reabastecimentos e com asilo político garantido em terra amistosa, basta-lhe assegurar o maior eco possível através da comunicação social internacional. A imprensa britânica, bem informada, já está a influenciar a opinião pública interna e externa com este desafio ao salazarismo, mas pode atrair-se maior atenção graças à presença dos muitos jornalistas enviados a Pernambuco para cobrir o caso. Ignorado pelos governos a que pedira apoio e já muito abalado, o Estado Novo vai sofrer danos maiores nos momentos que se seguem.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria sobrevoado em alto mar

· O paquete freguentava o porto do Funchal:

muitos madeirenses viajaram no Santa Maria

· Miguel Urbano Tavares Rodrigues

· António de Oliveira Salazar nos anos 60

· Recife no início da década de 60: ponte de Santo António para as ilhas

· Vista da popa do navio à chegada ao Recife

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 22.01.11

 

III – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (2)

(continuação)

A 22 de Janeiro de 1961, pouco passa das 0 horas, o paquete Santa Maria navega em águas internacionais rumo a Miami, com o arquipélago das Antilhas Holandesas já para trás. A bordo, no sossego da noite, ainda ninguém desconfia da "Operação Dulcineia", entre os mais de 350 tripulantes e cerca de 600 passageiros: conforme fontes oficiais, à saída de Vigo o navio leva 371 tripulantes, incluindo 22 oficiais, um médico português, um médico espanhol e nove marinheiros espanhóis; quanto a passageiros, à saída da ilha de Curaçau há 237 espanhóis, 189 portugueses, 87 venezuelanos, 44 holandeses, 34 norte-americanos, quatro cubanos, dois brasileiros, um italiano e um panamiano.

Ainda ninguém desconfia, mas a operação está prestes a entrar na sua fase decisiva. O objectivo do golpe é tomar posse do paquete e dispor dos três dias que a viagem levaria até Miami, talvez até quatro se telegrafarem a dizer que estão atrasados por uma avaria no motor. Isso permite-lhes navegar fora da rota sem levantar suspeitas, pelo que só andariam a ser procurados a partir do sexto dia, provavelmente, altura em que já hão-de estar distantes. Contam chegar de surpresa à ilha de Fernando Pó e à Guiné Equatorial, colónias espanholas onde podem arranjar armamento, canhoneiras, lanchas de desembarque e dois ou três aviões, e seguir depois para Angola, para obter apoio e aí proclamar um governo revolucionário capaz de derrubar o governo de Lisboa e de fazer de Portugal um Estado federado.

 

Passa da meia-noite e as armas já estão montadas e distribuídas. Todos os elementos do grupo se reúnem discretamente no deck superior, mas Henrique Galvão e José Fernandéz Vásquez (o líder da parte espanhola, também conhecido por Jorge Soutomaior) desentendem-se quanto a alguns detalhes da acção. Soutomaior tem a seu cargo a chefia militar do golpe desde o início e Galvão, mentor da operação e com a chefia política, cede na discórdia entre os dois. No espaço do convés usado para lazer dos passageiros da 1.ª e 2.ª classe, estabelecem dividir-se em dois grupos de assalto: o do líder português é destinado às instalações do segundo convés, onde estão as cabinas do comandante, do imediato e de outros oficiais; o do líder espanhol fica com o encargo de neutralizar a sala de transmissões, a ponte e a casa do leme.

É pouco provável que Galvão já saiba da morte de João Villaret em Lisboa, ocorrida na véspera. Fica a ler um livro, até dar ordem para avançar. É 1 hora e 45. As várias posições são ocupadas e o pessoal de serviço dominado. Apenas o grupo espanhol, ao ocupar a ponte de comando, depara com a resistência de um dos pilotos e gera-se um curto tiroteio, que termina com a morte do piloto e deixa mais três feridos em estado crítico. As comunicações são rapidamente interrompidas para impedir que o barco seja localizado, mas o plano tem de ser alterado: rumam à ilha de Santa Luzia (então possessão britânica nas Pequenas Antilhas) para desembarcar os dois feridos mais graves a precisar de cuidados hospitalares, acompanhados por cinco tripulantes. Está comprometida a possibilidade de atingirem a costa de África sem ser descobertos. Os desembarcados não perdem tempo a informar Lisboa do sucedido.

 

Quando o paquete se afasta de Santa Luzia, as comunicações são retomadas, por ser escusado manter o silêncio. Passageiros e tripulantes podem contactar as famílias. Nessa altura, considerando que o Santa Maria já é uma parcela livre do território português, Henrique Galvão muda-lhe o nome para 'Santa Liberdade', num dístico branco escrito a vermelho e colocado no castelo da proa (onde também é colocada uma bandeira do DRIL).

Ao tomarem conhecimento do caso, as autoridades portuguesas criam um gabinete de crise e desenvolvem contactos diplomáticos, no sentido de obter ajuda aérea e naval para localizar o navio. Londres disponibiliza-se e Washington (onde John Kennedy acabara de tomar posse no dia 20) coloca aviões e barcos de guerra na busca.

 

O plano falhado não é a derrota. Galvão adapta-se e reage à altura da situação, para tirar partido dela. Contacta a France Press e a United Press e consegue falar através da NBC, para atrair a atenção da opinião pública internacional: dá a conhecer o "sequestro político" do paquete, declara-se disposto a desembarcar os passageiros e tripulantes no primeiro porto neutro que lhes garanta a segurança e diz que actua em nome do general Humberto Delgado, «presidente-eleito da República Portuguesa, privado dos seus direitos de forma fraudulenta pelo governo de Salazar» (Henry A. Zeiger, The Seizing of the Santa Maria). É então que Kennedy põe termo à busca, visto que não se trata de pirataria, mas de um acto político contra uma ditadura. O próprio Delgado, no Brasil (onde Jânio Quadros está a poucos dias de substituir Juscelino Kubitschek de Oliveira), assume a liderança da operação e sublinha que esta é exclusivamente política. Só em Madrid, naturalmente, vinga a tese do "assalto de piratas".

Os EUA vão limitar-se a assegurar que os passageiros norte-americanos chegarão a bom porto sãos e salvos, mas o Santa Maria ainda vai passar alguns dias a despistar muitos perseguidores sem precisar de consumir muito combustível, alimentos e água. Entre a costa americana e a costa africana, sem alargar excessivamente a sua navegação, continuará a ser procurado em diferentes regiões e a queimar muitos cérebros em terra consumidos com os mais variados palpites.

(continua)

Imagens

· O Santa Maria durante a operação: o nome de 'Santa Liberdade'

e a bandeira do DRIL colocados na ponte de comando

· O paquete visto de proa

· João Henrique Pereira Villaret (1913–1961)

· Henrique Galvão a bordo do Santa Maria durante a operação

· Jânio da Silva Quadros (1917–1992)

 e John Fitzgerald Kennedy (1917–1963)

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 21.01.11

 

II – "OPERAÇÃO DULCINEIA"

O "assalto" ao Santa Maria (1)

 

A 21 de Janeiro de 1961, o paquete Santa Maria chega à Venezuela numa viagem rotineira. Entre os passageiros que embarcam há um punhado ainda insuspeito de activistas, comandados por um grupo luso-espanhol de revolucionários. Está posta em marcha a "Operação Dulcineia". O ousado e inédito golpe centra-se no ex-capitão Henrique Carlos da Malta Galvão (1895–1970). A operação é de natureza política — visa abalar Salazar e o Estado Novo — mas em Lisboa é oficialmente considerada um acto de pirataria. A atitude, porém, não impede que o regime salazarista salte para as primeiras páginas da imprensa ocidental, começando a desfazer-se a ideia enraizada em muitos meios internacionais de que os portugueses aceitam conformados o salazarismo, sem oposição digna de nota.

Aliás, o "assalto ao Santa Maria" só abusivamente pode ser considerado um acto de pirataria, pois colide com as normas do Direito internacional, que consagram um barco como parte do território do país a que pertence.

 

O Santa Maria era o mais luxuoso transatlântico português. Com casco em aço, deslocava 20.906 toneladas, podia navegar a uma velocidade cruzeiro de 20 nós e conseguia atingir 22 nós. Tinha sido encomendado a um estaleiro belga (juntamente com o paquete Vera Cruz), fôra entregue em 1952 e pertencia à Companhia Colonial de Navegação (CCN).

Em tempos de grande emigração, o Santa Maria estava destinado à rota entre a Península Ibérica e as Américas, na qual operava desde 1954 (o irmão gémeo Vera Cruz fazia a ligação com África e, após o início da guerra nas colónias, foi um dos barcos usados no transporte de tropas).

 

O capitão Henrique Galvão está exilado na Venezuela. Tinha sido um sidonista e um salazarista convicto, depois desiludido e conspirador contra o regime. Descoberto, preso e expulso do Exército, conseguira fugir e refugiar-se na embaixada da Argentina, de onde partiu para viver em Caracas com grandes dificuldades financeiras.

Tal como Humberto Delgado (que está no Brasil e com quem coordena a "Operação Dulcineia"), Galvão é um homem muito do agrado dos opositores não-afectos ao PCP. O grupo revolucionário que concebe o golpe em alto mar auto-intitula-se Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação (DRIL).

 

A data tinha sido adiada várias vezes — com o paquete a chegar e a partir outras tantas — quer pela falta de fundos para comprar armas no mercado negro (poucas, usadas e sem critério) e adquirir as passagens para viajar no paquete, quer pela saúde de Henrique Galvão, que teve problemas cardíacos com alguma gravidade.

O DRIL reúne também espanhóis anti-franquistas, o que justifica a sua designação. É uma operação conjunta de revolucionários de ambos os países, mas os acontecimentos vão fazer sobressair o pendor português e esvaziar o peso da parte espanhola. O comando recrutara elementos em Caracas com muito esforço, mas já só restavam duas dezenas de homens. A favor, apenas uma maqueta do navio que encontraram numa agência de navegação venezuelana, agente da CCN.

 

O Santa Maria tinha partido de Lisboa a 9 de Janeiro, com o comandante Mário Simões da Maia e com destino a Miami. Trata-se de mais uma viagem regular: a 20 faz escala no porto de La Guaira, em Caracas (Venezuela), segue no dia seguinte para a ilha de Curaçau (Antilhas Holandesas) e daí ruma a Port Everglades, na Florida (EUA). Deixara de aportar em Cuba desde que Fidel Castro passara a dar guarida a opositores portugueses.

A cumprir os tempos, o paquete acosta em Caracas e os activistas instalam-se a bordo pelo final da tarde do dia 20, com as armas desmontadas e espalhadas pela bagagem, graças a um funcionário aduaneiro subornado. Só não embarca o rádio-especialista, que é procurado pela polícia venezuelana e detido à última hora.

 

O navio deixa o porto venezuelano à noite. Entretanto, Galvão não quer que o seu nome seja visto na lista de passageiros com antecedência e, para não levantar suspeitas, segue de avião nesse dia para Curaçau (acompanhado por José Frias de Oliveira), a quem se juntam mais dois na manhã seguinte, atrasados em Caracas com a documentação.

Às 9 horas do dia 21, quando o paquete está a ser amarrado na ilha e nenhuma notícia alarmante circula, Galvão tranquiliza-se e prepara-se para embarcar com os três homens que estão em terra com ele. O Santa Maria deixa Curaçau ao fim da tarde. A acção está combinada para depois da meia-noite, a fim de ter lugar com as luzes apagadas e já em águas internacionais.

(continua)

Imagens

· Viagem e "Operação Dulcineia": infografia (AR/Visão)

· Reprodução do bar da 3.ª classe do Santa Maria

· Logótipo com pavilhão da CCN

· Folheto publicitário da CCN datado de 9 de Setembro de 1957

 para a linha da América Central no primeiro semestre de 1958

· Maqueta do Santa Maria

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 13.01.11

 

I — O ANO QUE FEZ TREMER O REGIME

Salazar e a Igreja

 

A 13 de Janeiro de 1961, o cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira (1888–1977), Patriarca de Lisboa, emite — pressionado por Salazar — uma nota pastoral a pretexto da notória instabilidade que se vive no Ultramar português e, sobretudo, para contrariar um documento recente da diocese de Luanda, no qual o prelado Moisés Alves de Pinho defende as «aspirações justas e legítimas dos negros», apoiado por outros elementos do clero angolano.

No dia seguinte, a imprensa dá ampla conta da posição oficial da Igreja, assim considerada por ser proveniente do Patriarcado e por este distribuída. Só que a guerra em Angola já se sabe que é inevitável e está iminente. O que não se sabe é que vários outros acontecimentos ao longo dos doze meses do ano vão provocar muitos abalos e alguns danos externos ao regime.

 

Fora do País, quem está em oposição àquela nota pastoral — e até contra uma sequência de posições do cardeal-patriarca e da conferência episcopal — é D. António Ferreira Gomes (1906–1989), bispo do Porto. Posteriormente, há-de garantir que, se estivesse em Portugal, nunca teria permitido que o cardeal se pronunciasse em nome do episcopado nem que aquela nota saísse, por ser abusivo dar a ideia de que a Igreja está solidária com aquela linha de pensamento. Exilado pelo regime, as suas atitudes frontais são já conhecidas há muito. Recorde-se o que acontecera.

«Em 1958, o bispo do Porto, depois de duas intervenções entendidas como críticas à situação, dirige uma carta a Salazar em que reclama a liberdade de os católicos defenderem os princípios sociais da Igreja. Considerado incómodo para o regime e aconselhado a afastar-se, o bispo desloca-se a Roma no ano seguinte (atraído pelo ex-arcebispo de Goa D. José da Costa Nunes, que está na Santa Sé e aceita concertar a cilada com Salazar) e, na volta, é impedido de entrar no País, ficando em Tuy (na Galiza) e passando a viver entre Espanha, França (em Lourdes) e o Vaticano.

Em rigor, não tem o estatuto de exilado político e não chega a ser substituído como bispo do Porto. O Papa João XXIII — Ângelo Giuseppe Roncalli (1881–1963) — nomeia-o para uma das comissões que preparam o concílio Vaticano II e o seu regresso só vai ser possível dez anos mais tarde, em 1969, na sequência de um movimento em que sobressai o advogado portuense e católico activo Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro (1934–1980), num envolvimento que o transporta à política, para se destacar depois como deputado da "ala liberal" nos finais do Estado Novo, durante a prometida e gorada "primavera marcelista".» (João Carvalho, O Supremo Tribunal de Justiça em Portugal: Dois Séculos e Quatro Regimes de Memórias, STJ/Almedina, 2003.)

 

Apesar do afastamento do bispo do Porto, Salazar não conseguira que a Igreja o substituísse, nem evitara o epíteto de «exilado político». Podia dar a batalha como ganha, mas não fôra limpa como lhe seria conveniente e, ainda por cima, não vira todas as suas vontades satisfeitas pela Igreja — apenas algumas e, mesmo assim, fora do tempo útil — tanto em relação a D. António Ferreira Gomes como a outros membros do clero. O que o Presidente do Conselho não parecia adivinhar é que havia uma guerra surda já em marcha contra o regime, além da guerra aberta que vai estalar em África, e que aquela batalha, mal resolvida pelo cardeal-patriarca nesse dia 13 de Janeiro, era apenas uma pequena parte dos confrontos que iam seguir-se.

Se ele estava em condições de adivinhar que a situação ia tremer, talvez preferisse não acreditar que houvesse figuras com atrevimento bastante para saltar do sistema e virar-se contra ele. Por isso, ainda esticou a corda: vários clérigos de Angola tiveram de enfrentar a PIDE, regressaram à Metrópole e foram "emprateleirados" longe dos púlpitos, alguns deles com a obrigação de se apresentar regularmente às autoridades. Salazar ficara agastado com o cardeal-patriarca por este não controlar o clero e por não ver a Igreja reconhecer com clareza o que devia ao Estado Novo.

 

O ano de 1961 vai ser agitado e acabará por deixar marcas num salazarismo desnecessariamente duro e bolorento que se prolonga sem motivo, depois de perder todas as oportunidades para se afastar. O Portugal do pós-Guerra, que se pôs a jeito para receber uma fatia do Plano Marshall (destinado à recuperação da Europa devastada por um conflito em que o nosso país não entrara) e que consegue equilibrar as contas públicas, recusara abrir-se e participar na renovação europeia.

Portugal ficava "orgulhosamente" só ou mal acompanhado pela Espanha franquista, com a qual nem sequer mantinha relações de especial proximidade. Faltou até o rasgo para seguir o exemplo do Benelux, quando a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo se adiantaram ao pacto europeu posto em marcha e deram um inteligente e feliz passo em frente. Salazar e Franco foram incapazes de conceber um espaço ibérico de desenvolvimento partilhado e os portugueses tiveram de continuar a ir comprar à socapa caramelos espanhóis e a ser revistados até ao tutano na fronteira por causa de uns artigos caseiros que pudessem trazer.

Nesta situação, é natural que o Estado Novo enfrente sérios contratempos, gerados no interior do próprio poder e projectados além-fronteiras. Recordaremos de forma sucinta, nesta série que começa hoje e culminará em Dezembro, esse Portugal há meio século, através da cronologia do annus horribilis para o regime de Salazar que foi 1961.

 

Imagens

· Fátima: fiéis durante a "dança do Sol" (13 de Outubro de 1917)

· D. António Ferreira Gomes (retrato a óleo)