IV – "OPERAÇÃO DULCINEIA"
O "assalto" ao Santa Maria (3)
(continuação)
A 25 de Janeiro de 1961, o Santa Maria já navega há quatro dias conduzido pelos seus sequestradores quando é avistado e contactado pela primeira vez. O alerta é dado por um avião de patrulha dos EUA sobre as Caraíbas. Sobrevoado e intimado para se dirigir a Porto Rico, por haver mais de três dezenas de norte-americanos a bordo, o capitão Henrique Galvão faz saber que recusa ser tratado como pirata e receber ordens de estrangeiros. Porém, já há navios de guerra a interceptá-lo.
Como já pedira à ONU e a Washington o reconhecimento do estatuto de "rebeldes políticos em guerra" e pretende ampliar a visibilidade internacional que o move, Galvão responde que quer dar uma conferência de imprensa internacional a bordo, mas sem jornalistas portugueses e espanhóis.
O paquete continua a navegar — com as luzes apagadas à noite, para se confundir com um cargueiro — e não há tensão por parte dos tripulantes e passageiros, que estão a colaborar pacificamente com os seus "piratas": «passam-se filmes nos cinemas, que são bastante frequentados», enquanto «nos salões, com as cortinas corridas, as orquestras do navio tocam e os passageiros dançam», e «o nosso grupo» mantém-se «sempre nas melhores relações com a tripulação» (Henrique Galvão, O Assalto ao "Santa Maria"). É um quebra-cabeças para as autoridades em terra, pois ninguém entende se o navio se dirige para o Brasil, Angola, Cabo Verde ou outro lugar. Portugal aposta em Cabo Verde e mobiliza para aí meios aéreos e navais no dia 26, mas o paquete, a 27, parece rumar ao Recife (Brasil).
No mesmo dia, o poeta angolano e activista político Mário Coelho Pinto de Andrade (1928–1990), presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), emite uma declaração a dizer que a luta pela libertação das colónias é independente dos planos de Galvão e Delgado para pôr fim à ditadura.
Henrique Galvão percebe que começa a ser encarado como rebelde quando é informado de que os comandos navais dos EUA pretendem negociar com ele. Vendo-se respeitado de acordo com as circunstâncias, aceita receber um representante em mar aberto e coloca a condição de ser escoltado e protegido. Comunica também a Humberto Delgado que, até aí, a operação está a ser bem sucedida.
Depois de negado um pedido de asilo enviado ao Congo, que manifesta já ter problemas internos que cheguem, o Santa Maria continua a aproximar-se do Brasil, seguido por meios aeronavais dos EUA. Com a falta de colaboração de outros países (excepto a Espanha), Portugal continua a desenvolver palpites e a proceder a buscas em vão, que se prolongam pelo dia 28.
Não há dúvida: Washington está a velar pelos 34 norte-americanos a bordo e quer evitar qualquer ataque que os ponha em perigo, eventualmente ordenado por Salazar ao saber do paradeiro do paquete. Portanto, os EUA não estão a informar Lisboa, que demora a ficar ao corrente dos acontecimentos. Entretanto, a 29 e já em águas brasileiras, a audácia de alguns jornalistas leva-os a chegar ao barco em primeiro lugar. Um deles é o activista comunista português Miguel Urbano Rodrigues, repórter do jornal O Estado de S. Paulo, exilado depois de trabalhar no Diário de Notícias e no Diário Ilustrado.
Sempre escoltado pelos norte-americanos, o navio aproxima-se definitivamente da costa de Pernambuco e, a 30, está a posicionar-se em frente ao Recife. Galvão faz contas, pois sabe que precisa de esperar pela substituição de Kubitschek de Oliveira — que actuaria conforme a vontade de Salazar — por Jânio Quadros, cuja tomada de posse está marcada para o dia seguinte. A bordo, a vida continua descontraída: além do menu para o jantar do dia 30, prepara-se uma festa de despedida; não falta quem se tenha colocado ao lado dos rebeldes e já se dá como certo que o desfecho do golpe está para breve.
Salazar fica furioso quando toma conhecimento de que o Santa Maria, no dia 31, está ancorado ao largo do Recife e que Galvão recebe a bordo, ainda de madrugada e com honras militares, o vice-almirante Allen Smith, com quem conferencia e que se faz acompanhar por outras individualidades (incluindo o elemento para os assuntos políticos da embaixada dos EUA no Rio de Janeiro e o cônsul no Recife), além de vários jornalistas. Confirma-se formalmente que o estatuto reivindicado pelos rebeldes é reconhecido pelos EUA e pela comunidade internacional em geral.
Galvão ainda não está informado, mas o dia 31 de Janeiro é muito complicado em Portugal e não só por causa do Santa Maria: o governo não reconhecera a eleição democrática da direcção da Casa dos Estudantes do Império e enfrenta uma agitação estudantil, o jornal República é suspenso e, como se não bastasse, estala uma revolta do MPLA na Baixa do Cassange, onde a situação se encontra muito instável desde os primeiros dias do ano.
A ira de Lisboa ainda cresce mais a 1 de Fevereiro, por saber que o novo presidente Jânio Quadros faz chegar a Henrique Galvão uma mensagem de boas-vindas e de solidariedade democrática, com a total disponibilidade para conceder asilo político no Brasil a todos os rebeldes. Quadros e Galvão já se conheciam e tinham estado juntos na Venezuela no ano anterior.
No dia seguinte, o paquete dá entrada no porto de Recife. O mentor da arrojada operação entende que esta tem de ficar por ali. Sem dinheiro para reabastecimentos e com asilo político garantido em terra amistosa, basta-lhe assegurar o maior eco possível através da comunicação social internacional. A imprensa britânica, bem informada, já está a influenciar a opinião pública interna e externa com este desafio ao salazarismo, mas pode atrair-se maior atenção graças à presença dos muitos jornalistas enviados a Pernambuco para cobrir o caso. Ignorado pelos governos a que pedira apoio e já muito abalado, o Estado Novo vai sofrer danos maiores nos momentos que se seguem.
(continua)
Imagens
· O Santa Maria sobrevoado em alto mar
· O paquete freguentava o porto do Funchal:
muitos madeirenses viajaram no Santa Maria
· Miguel Urbano Tavares Rodrigues
· António de Oliveira Salazar nos anos 60
· Recife no início da década de 60: ponte de Santo António para as ilhas
· Vista da popa do navio à chegada ao Recife