À atenção do Presidente da República
«Os portugueses deram de facto novos mundos ao Mundo e aproximaram povos e continentes.»
Amílcar Cabral, citado por Manuel Alegre no seu novíssimo livro Memórias Minhas
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«Os portugueses deram de facto novos mundos ao Mundo e aproximaram povos e continentes.»
Amílcar Cabral, citado por Manuel Alegre no seu novíssimo livro Memórias Minhas
(Postal que deixei no meu Nenhures. Dado o seu conteúdo presumo que seja menos interessante aos visitantes do DO. Mas como é feriado, dia de leituras mais distendidas, aqui o replico).
Há dias países europeus vedaram o acesso a voos comerciais vindos da África Austral, na sequência do anúncio da variante Ômicron da Covid-19. Entretanto quatro escritores renomados, residentes em Moçambique, publicaram críticas contundentes dessa decisão, e do que consideram ser a mundivisão que a promoveu, os quais muito se têm repercutido e, também, induzido uma miríade de posicionamentos similares nas redes sociais dominantes: o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano Mia Couto publicaram o manifesto "Duas Pandemias", o português António Cabrita o ditirambo "A Vergonha, ou do Diabo à Entropia", e o moçambicano Armando Artur deixou agora o poema "Ómicron e os Outros".
Sobre este assunto vou botar um postal que (me) é antipático. Pois concordo com muito do que os autores referem - sendo que essa medida logo foi criticada pela Organização Mundial de Saúde, e pelo próprio secretário-geral da ONU, ainda que este tendo expressado a sua oposição em termos infelizes e até inaceitáveis (o "apartheid" foi uma política demasiado violenta para servir agora de material para analogias superficiais e mesmo provocatórias, como escorregou Guterres). E porque tenho apreço pessoal por três destes escritores, os que conheço pessoalmente, e por vários daqueles que os secundam e aplaudem. Mas discordo, e imenso, do sub-texto que perpassa estas proclamações, o feixe de mundivisão que os habita.
Dado esse conteúdo antipático do texto começo por uma ressalva (aquilo a que os ignorantes chamam agora, por pirosice arrivista, "disclaimer"), explicitando o que penso (mais do que tudo, o que intuo) sobre a situação. Em primeiro lugar, e ainda que sendo leigo nestas matérias, desde o anúncio da nova variante Ômicron esperei (perspectivei; tive esperança) que, à imagem de outras variantes que foram surgindo (a "brasileira", a "sul-africana"), não tivesse repercussões muito gravosas - mesmo que tenha efeitos preocupantes em nichos populacionais -, uma relativa amenidade que se vem confirmando, ainda que pareça ser mais contagiosa do que as variantes vigentes.
De Palma, capital do distrito a nordeste do Cabo Delgado, sede das grandes unidades de exploração de recursos combustíveis, chegam imagens do rescaldo em curso após o violento ataque da passada semana, já reclamado pelo "Estado Islâmico" da África Central. Evito mostrar as mais duras. Fica esta, como ilustração do que vem acontecendo.
No sábado passado participei num debate sobre a expansão do terrorismo em África, com particular enfoque na situação moçambicana - algo ainda mais sublinhado pelo ataque a Palma. Foi uma conversa entre Cátia Moreira de Carvalho, Paulo Baptista Ramos, eu jpt, Luís Bernardino e moderada por Miguel Ferreira da Silva, numa organização da Africa Sessions. Aqui deixo a gravação da sessão, para quem tiver alguma curiosidade sobre o fenómeno no continente e, em especial, em Moçambique.
Se o primeiro homo sapiens existiu no continente africano, como a teoria prevalecente na paleoantropologia contemporânea vem acentuando, somos todos afrodescendentes. Ou não?
O partido LIVRE - do historiador Rui Tavares (ex-coligação trotskistas/estalinistas/maoistas) e do advogado Sá Fernandes (ex-candidato do MDP, ex-membro do governo PS, aquele partido do "socialismo democrático/social-democracia") e que como tal diz surgir com a inovação de ser esquerda que nada tem a ver com o marxismo - acaba de propor a devolução do "património cultural" aos países africanos.
Eu sou tintinófilo. E como tal nada me choca a ideia. Cresci com ela. [Sim, eu sei que há antropólogos aldrabões e outros funcionários públicos intelectuais ignorantes que dizem ser Tintin obra racista, bem demonstrando a sua desonestidade demagógica]. Só me pergunto a que dinâmicas externas e internas é que responde esta proposta parlamentar e quais as condições da sua realização. Pergunto-me e respondo-me. Isto é demagogia pura do advogado Sá Fernandes e do historiador Rui Tavares. E da tralha restante que os acompanha. Entenda-se, entre outras coisas, trata-se de (mais) um advogado aldrabando na vida pública.
E mais, para não entrar em detalhes mais "técnicos" e políticos sobre esta questão do património e da museologia: o Partido LIVRE (dos tais importantes e ponderados cidadãos, em especial do referido Ilustre Causídico) quer comissões de devolução desse património constituídas por "activistas antiracistas". O Dr. Ba, deles compagnon de route, propôs há tempos a instalação de "policiamento comunitário" nas cidades. Agora o dr. Sá Fernandes e o historiador Tavares avançam com a ideia da activação de "comissários políticos".
E a gente não os pode insultar. Tem até que os tratar como "democratas". Há até gente que lhes soletra os nomes. E há mesmo quem respeite, tipo "Doutor Sá Fernandes". Que gente ...
Lalibela - fotografia minha
Na primeira metade da década de 1980 a Etiópia foi assolada por uma fome severa que vitimou um milhão de pessoas e deixou oito milhões numa miséria absoluta. Os repórteres da BBC que estavam no terreno descreveram o drama como sendo de proporções bíblicas. As imagens de morte e sofrimento impressionaram o mundo, dando ao país uma atenção mediática sem precedentes.
Para esta atenção internacional muito contribuiu o festival Live Aid. Realizado simultaneamente em Londres, Reino Unido, e em Philadelphia, Estados Unidos da América, o Live Aid foi uma ideia do músico Bob Geldof destinada a angariar fundos para combater a fome em África, em particular na Etiópia. O festival, que contou com mais de 70 artistas, entre os quais Madonna, U2, Bob Dylan, Mick Jagger e Neil Young, foi visto por cerca de 1,5 mil milhões de pessoas em 100 países. Do Live Aid saiu o tema “We are the World”, acolhido como um hino por aquela geração.
Cartaz do Live Aid
O que Geldof e as demais estrelas da pop internacional não explicaram foi que, ao contrário de secas anteriores, cíclicas na Etiópia, aquela não era apenas uma acção da natureza. Contou com o ímpeto genocida e com as políticas de “transformação social” do regime ditatorial comunista Derg. O bombardeamento de campos agrícolas e os programas de realojamento forçado foram duas das várias atrocidades que agravaram a carência alimentar provocada pela seca. A fome foi um instrumento de guerra.
Alguns trabalhos de investigação jornalística publicados na altura sugeriam que parte dos mais de 100 milhões de dólares angariados pelo Live Aid foram usados pelo regime e pelas forças que o combatiam para adquirir armamento soviético usado para intensificar os conflitos em curso. A equipa especial de procuradores que investigou os crimes do Derg descobriu 725 valas comuns e os restos mortais de aproximadamente 5.000 pessoas, uma pequena amostra dos efeitos do terror implementado pelo comunismo do Derg (a Amnistia Internacional coloca o número total de vítimas mortais na ordem do meio milhão de pessoas).
Restos mortais de vítimas do regime Derg. "Red Terror" Martyr's Memorial Museum, Adis Abeba - fotografia minha
O regime ditatorial acabou e o tempo passou. Chegou o crescimento económico impressionante. Porém, os abismos sociais permanecem praticamente inalterados.
O desequilíbrio no desenvolvimento entre cidades e campo é um aspecto central da vida social e política desde pelo menos a década de 1960, etapa que corresponde à fase final do reinado do Imperador Haile Selassie. O processo de modernização conduzido por Selassie foi intenso: a criação de uma rede de escolas que não discriminava géneros, a introdução do sufrágio universal, a criação de redes de comunicação e de transportes são exemplos de metas tangíveis e, naqueles anos, inovadoras.
No entanto, este desenvolvimento estava circunscrito aos centros urbanos e foi implementado de forma a não alterar a dinâmica autocrática e feudal da arena política. Estas limitações intencionais do processo de modernização contribuíram para que Selassie fosse deposto em 1974. O regime Derg, por via do que ficou conhecido como “Terror Vermelho”, destapou as tensões étnicas latentes, agravou o abismo entre urbes e meio rural, e juntou-lhes uma violência sanguinária sem precedentes.
Hoje, o milagre económico etíope é um fenómeno citadino enquanto que nas zonas rurais, a imensa maioria do país, a agricultura de subsistência domina a paisagem. O desequilibro nota-se na dicotomia urbano-rural, mas é também visível dentro e entre regiões. A industrialização e os serviços são agora maiores do que no passado e o turismo assume um papel crescente, mas apresentam-se tímidos quando comparados com uma economia rural frágil e assente em meios de produção arcaicos.
O crescimento económico e os avanços sociais que dele resultaram são inegáveis e fazem da Etiópia um caso raro no panorama africano. De tal forma que a coligação no poder desde 1991 fez da economia uma bandeira que cobre a inexistência de liberdades políticas e o ambiente de intimidação no qual vivem as oposições à FDRPE.
É certo que o número de habitantes do país duplicou desde que a FDRPE chegou ao poder e que isso se traduz numa pressão acrescida sobre a gestão e distribuição de recursos. É igualmente certo que, no contexto africano, combater forças potencialmente desagregadoras com mais centralismo e repressão é uma reacção quase natural. Porém, os desafios à viabilidade da arquitectura política parecem crescer de ano para ano. O perigo da desagregação territorial e política não terminou com a independência da Eritreia. De resto, ao decretar o Estado de Emergência em Outubro de 2016 o Governo etíope reconheceu tacitamente esse risco.
Pelo que se vê, ouve e lê no país, não é o federalismo que é contestado. É esta federação em concreto. Há tempo e espaço para ultrapassar as limitações e deficiências que inquinam o modelo político. Contudo, as estatísticas dizem que o país vai bem. Quando assim é, a disponibilidade para mudar é reduzida.
NOTA: Os textos que integram esta série foram escritos há mais de um ano. No geral, resistiram bem ao teste do tempo, pois continuam a explicar muito do que se passa na Etiópia nos planos social, político e económico. Porém, o último parágrafo deste último texto estará a ser desmentido pelos novos protagonistas políticos, cujas acções e propostas sugerem uma intenção real de mudança. Espero que demonstrem que, nestas últimas linhas, me enganei redondamente.
Em 2005 o primeiro-ministro chinês Wen Jiabao visitou Portugal. José Socrates, então recente primeiro-ministro, incentivou o visitante a usar Portugal como intermediário nas crescentes relações sino-"palop". Na época eu trabalhava na área da "cooperação" (ajuda pública ao desenvolvimento) e muito me chocaram aquelas declarações do ainda relativamente desconhecido Sócrates (não se perspectivava tamanho descalabro), por razões subjectivas e objectivas.
As subjectivas eram algo óbvias. Qualquer pessoa da minha geração se poderá lembrar o que foi o governo de Macau nos últimos quinze anos de tutela portuguesa. A coabitação entre os governos de Cavaco Silva e as presidências de Soares e Sampaio - sendo a presidência da república a responsável por aquela região - significaram que Macau foi administrado, num período de grande crescimento infraestrutural, pelos quadros socialistas. E foi público que se o PSD (e não só) se conspurcou na gestão da inserção europeia, o PS saiu profundamente lesionado da "coisa macaense", no afã da "árvore das patacas". Infecção que levou para os governos de Guterres e que este, criticável político mas homem honrado, deixou transparecer com o rebuço retórico do "pântano" quando se demitiu. Por isso, quando em 2005 Sócrates ofereceu os préstimos do país, e da sua administração, para facilitar a extroversão africana da China tudo indiciava que o PS não fizera qualquer "julgamento ético" (como Augusto Santos Silva reduz agora a avaliação da política) do seu percurso recente. Como se veio a comprovar, tanto pelas más-práticas dos governantes como pelo apoio cúmplice da generalidade dos profissionais da palavra pública, jornalistas e académicos, durante o consulado socratista. E hoje.
Mas as razões objectivas eram ainda mais óbvias. Num breve texto de Dezembro de 2007 eu resmungava isso, ecoando várias conversas em Maputo. Desde finais de XX que a China hiper-desenvolvera as suas relações comerciais e políticas com os países africanos. Com propósitos e estratégias bem diversos dos da União Europeia, e de Portugal nas suas relações soluçantes com as antigas colónias. O evidente falhanço dos desenvolvimentos africanos (já elencado nos 1960s pelo nada pró-colonial René Dumont) conduzira, desde os 80s, a alterações nas formas de "cooperação" entre a UE (e de países aliados, como EUA, Canadá, Suíça ou Noruega) e África. Grosso modo subordinando doacções, ajuda técnica e empréstimos bonificados a uma "condicionalidade política". Ou seja, à aceitação de boas práticas estatais, de uma democratização assente na "boa governança" (tétrico jargão), do incremento e autonomização da "sociedade civil", da descentralização avessa à opacidade dos poderes, da protecção ecológica, no fundo ao chamado "desenvolvimento sustentável", crente que a democracia é desenvolvimento, uma ideia consagrada no Nobel da Economia então atribuído a Amartya Sen. Muitos criticam este paradigma, dizendo-o neoliberal, exportação do modelo "ocidental" e neo-colonial. Poderá também ser tudo isso, e com toda a certeza contém a defesa dos interesses dos países doadores ("ocidentais"), que é esse o princípio das relações internacionais. Mas também não era só isso, pois fruto de transformações demográficas, socioeconómicas e ideológicas nos países europeus, que haviam promovido genuínas preocupações ideológicas e técnicas de promover algo melhor do que vinha acontecendo no desenvolvimento africano, combater o malvado "afro-pessimismo" (o aggiornamento do racismo), e procurar a defesa do meio ambiente, triturado alhures.
A chegada dos interesses chineses tudo alterou. Neles inexiste qualquer intuito democratizador ou sensibilidade ecológica, ou objectivo desenvolvimentista - há uma preocupação na construção de infraestruturas viárias que promovam o comércio de matérias-primas (e a seu tempo de produtos industriais imensamente sub-remunerados) para a China, algo que as burguesias africanas vêm considerando "desenvolvimento". Estas enormes construções infraestruturais são entendidas localmente como "ofertas" (basta conversar em Maputo com a burguesia letrada para ouvir isso), quando são obras basto sobre-orçamentadas e sob empréstimos chineses, para além de muitas vezes serem de duvidosa urgência (caso exemplar é a recente ponte de Maputo, uma verdadeira excentricidade se sopesadas as necessidades infraestruturais do país, e uma total aberração se considerado o preço astronómico e sobredimensionado da obra). Ou seja, a China financia directamente a sua indústria, construindo em África através de empréstimos contraídos pelos poderes africanos; e indirectamente, através do estabelecimento das infraestruturas de aquisição de matérias-primas baratas.
Questões como o desenvolvimento tecnológico ou empresarial africano (a transferência de saberes) é de nula relevância, o desenvolvimento social é inconsiderado - e nesta área será importante discernir quais as concepções dominantes na China sobre "África" e os "africanos", principalmente se pensarmos no rolo auto-crítico que os europeus fazem sobre o "paternalismo" e o "racismo" com que as suas sociedades interagem com África e seus habitantes. O resultado destes últimos anos é tétrico: países africanos imensamente endividados, ainda que com diferentes conteúdos (países como a África do Sul - mas que outros? - têm alguma maior capacidade de resistência). Dívidas que têm penhores, os recursos naturais, que assim vão passando explicitamente para o manuseio chinês. A razia ecológica, em particular a desflorestação é quase incomensurável. E a corrupção das elites exponenciou-se, num verdadeiro sublinhar da velha definição marxista de "burguesia compradora". É um neo-colonialismo radical, um neo-colonialismo selvagem, para glosar a expressão "capitalismo selvagem". (Abaixo deixo um programa da Al-Jazeera, que não é a "Voz da América" nem qualquer "Canal de Bruxelas" sobre o assunto, para quem tiver interesse).
Para qualquer tipo que tivesse dois dedos de testa e uns centímetros de conhecimento esta via era já óbvia em 2005. O poder português, o PS de Sócrates, preferiu a obtenção de migalhas - no seio do que agora se sabe serem interesses esconsos das articulações político-económicas: por exemplo, em 2006 noticiava o Público que o Espírito Santo ajudara a entrada chinesa no petróleo angolano (alguma ideia sobre a situação actual?, é a pergunta sarcástica necessária). Ou seja, refutando a nossa inserção nas políticas desenvolvimentistas europeias (os célebres acordos de Lomé e Cotonou) e toda a retórica que acompanhara o estabelecimento da CPLP na década anterior. Nada disto importou, apenas a miragem de alguns ganhos como intermediário da entrada triunfal da política económica chinesa em África. E, ainda mais ridículo, com promessas de abertura do enorme mercado chinês aos produtos portugueses, pomposamente anunciada na imprensa aquando da visita do PM chinês em 2005: 13 anos passados seria interessante ver os dados reais dessa abertura, e o impacto na economia portuguesa.
Alguns dirão que nada havia a fazer, que a dinâmica africana da China foi tão possante que uma pequena economia como Portugal nada poderia fazer em contrário, clamando assim a subordinação à "razão de Estado" e à obtenção de ganhos para o país. É uma paupérrima concepção de Estado e de mundo, bem como da política africana portuguesa. Mas mesmo que nesse registo rasteiro, de avaliação política sob estritos critérios de contabilidade nacional, será importante questionar: que ganhos económicos teve o país na sua extroversão para a China? E qual a situação das relações económicas com África, em particular com as duas grandes ex-colónias? E as relações políticas (catalépticas as com Moçambique, apesar da retórica do nosso PR, gélidas as com Angola, apesar do fogareiro agora aceso pelo PR angolano)? Outros, com mais memória, dirão que o governo de Sócrates teve o sucesso de conseguir realizar a cimeira Europa-África, em plena crise diplomática devido à oposição Reino Unido - Zimbabwe. Foi um facto, mas isso ter-se-á devido aos méritos da equipa do MNE da altura, Amado e Cravinho (este agora em rota para MNE do próximo governo). E deixa a pergunta fundamental: quais os benefícios reais obtidos, tanto para África como para Portugal, e já nem falo da política desenvolvimentista da UE? Ou seja, a sinofilia do governo português mostrou bem o quão de cabotagem era o seu rumo. Em termos internacionais. E em termos nacionais. Foi anunciado, de modo evidente, em 2005. Tornou-se evidente nos anos subsequentes.
Quinze anos depois se a situação das relações africanas com África é esta, também o é a relação de Portugal e de alguns países europeus. A influência chinesa está a crescer na Europa austral, de modo avassalador. Aqui não há matérias-primas, das quais a indústria chinesa necessita. O objectivo são os mercados, o "mercado europeu", necessários à indústria e à finança daquele país. Mas o tipo de abordagem predatória será o mesmo. As sociedades europeias amortecerão o impacto socioeconómico de maneira mais protegida, mas o impacto desdemocratizador talvez venha a ser mais sentido (não se está já a sentir?). Não se trata de ser sinófobo, ou de clamar "Vêm aí os Chineses". Mas de perceber, passado este tempo e sendo explícito o que já era óbvio, que quando se vê um governante português como a actual Secretária de Estado do Turismo choramingar a um grupo económico chinês "…por favor, usem-nos, como porta de entrada, como cobaias, para testar a forma de entrarem na Europa" estamos no "grau zero" da política. E que as nossas elites políticas nada aprendem com a história recente. Os socialistas (e o bloco central por definição) na sua cabotagem, na busca de restos disponíveis. Os comunistas presos a uma patética solidariedade com um poder que de "comunista" tem o nome e a foice e o martelo - lembram-se as pessoas da sabujice do parlamento português ao recusar receber o Dalai Lama em 2001, por pressões chinesas, e do texto do velho dirigente comunista Aboim Inglez, esse que fora em tempos de conflito sino-soviético muito adversário da China, a esse respeito? Rezava assim: "Tivemos entre nós, uma semana, o sr. Kenzin Gyatso, mais conhecido pelo título do 14º Dalai Lama, numa das suas constantes itinerâncias pelo mundo, na condição de cabecilha do que resta da clique reaccionária e retrógrada tibetana, conluiada com o imperialismo para atacar a China pela via da mentira e do separatismo". À direita os liberais, cegos e sonâmbulos, a quererem crer que isto é o "mercado" - quando "isto" é o capitalismo de Estado, de que se falava sobre o bloco soviético, mas agora super-competente. E o BE sempre relativamente simpático com quaisquer laivos de "alterglobalização" (entenda-se, antiamericanismo) que surja no horizonte.
Nenhum destes partidos, nenhuma das fracções desta "burguesia compradora" portuguesa, se opõe ao verdadeiro imperialismo chinês, voraz que é. E os governantes pedem "por favor" para que os interesses chineses sejam mais céleres e intensivos na sua intervenção. É a mesma mediocridade, ininteligente, cleptocrática e anti-patriótica que reconhecemos em tantos dos poderes africanos. Sem qualquer projecto de país, plano ou estratégia de desenvolvimento. E depois, sabe-se lá porquê, dizem-se, ufanos, de "esquerda", símbolo do progressismo e desenvolvimentismo.
E um povo que a apoia. Nessa confluência um país inibido de o ser. Nada mais do que isso.
(Então aqui fica o programa a que aludi, vinte minutos sobre o presente de África. E o futuro de Portugal).
Fotografia minha
Pagodes etíopes
A estação de autocarros de Bahar Dar, uma pequena cidade localizada no noroeste etíope, é um caso esplendoroso de improviso organizado. Um recinto a céu aberto com piso de terra batida, murado por paredes variadas – secções em tijolo, secções em chapa de zinco, secções em falta. Lá dentro, nada estava sinalizado. Após transpor os desafios impostos pela barreira linguística e pelos fura-vidas que vivem da inexperiência de viajantes incautos, avistei a carrinha com destino a Gondar. São cerca de 170 km em direcção a Norte. A furgoneta tinha capacidade para 20 pessoas, mas naquele dia viajámos 32. Entre o excesso de passageiros e o excesso de bagagem, foram três horas e meia sem espaço para mexer um músculo.
Ao meu lado, no último banco, viajava um técnico de saúde etíope com 50 e muitos anos. “Em amárico, o meu nome significa Paciência”. Nome apropriado, pois encarava o espaço exíguo com uma temperança invulgar. Trabalhava como epidemiologista em Bahar Dar numa clínica custeada com fundos internacionais. Combatia doenças como a tuberculose e a SIDA. “Mais do que trabalho médico, é trabalho educativo”. Fora aceite num curso de formação em Israel e andava à procura de um mecenas que o ajudasse com as despesas de deslocação.
A conversa começou virada a Oriente. “Tudo aqui é chinês. Das pilhas aos chinelos, até aos novos meios de transporte. Bom, os novos e os velhos. Esta carripana, batida e cansada de velha, veio da China”. De facto, as advertências de segurança coladas nas janelas estavam escritas em mandarim.
As relações económicas entre a República Popular da China e África - investimento, empréstimos, comércio e apoio ao desenvolvimento - aumentaram de forma muito substancial nos últimos 15 anos. E a tendência parece manter-se. No primeiro trimestre de 2017, as relações comerciais sino-africanas cresceram 16,8%, atingindo os 38,8 mil milhões de dólares. O investimento directo aumentou 64%, e a China anunciou o investimento de 60 mil milhões de dólares em projectos de apoio ao desenvolvimento.
Este crescimento tem merecido a atenção de analistas de diferentes áreas. Sintetizando bastante, o debate orbita em torno a duas grandes teses. A primeira defende que Pequim disponibiliza capital e meios a troco da exploração dos recursos naturais existentes em África, que usa para o desenvolvimento interno da China. Tratar-se-á, portanto, de uma relação com propósitos essencialmente económicos. A segunda tese vê na aposta chinesa em África uma estratégia política de médio-longo prazo na qual a economia desempenha um papel meramente instrumental. Ao disponibilizar financiamento e ao construir infraestruturas, Pequim pretende criar dependência nos países africanos, em parte através do aumento das dívidas públicas, uma relação que a China explorará politicamente.
O caso da Etiópia parece validar esta última tese. É a que mais convence Paciência. “Ao contrário do nosso vizinho Sudão, rico em petróleo, a Etiópia não dispõe de abundantes recursos energéticos. Mas Adis Abeba obteve da China mais do dobro dos empréstimos recebidos por Cartum”. De acordo com o Financial Times, a Etiópia é o sexto país africano que mais investimento directo recebeu de Pequim entre 2003 e 2017, ficando à frente de países como Angola, o Níger e Marrocos. No que respeita a empréstimos chineses entre 2000 e 2015, a Etiópia ficou no segundo lugar do ranking africano.
O que a Etiópia não tem em recursos minerais e em hidrocarbonetos tem em relevância estratégica. É um referencial de estabilidade no Corno de África (mais por demérito dos vizinhos do que por mérito próprio). As Forças Armadas etíopes são essenciais no combate ao radicalismo islamista na região, em particular ao grupo terrorista somali al-Shabab, cuja violência ter-se-á estendido ao Norte de Moçambique, e que tem grande impacto no Golfo de Áden, um ponto nevrálgico para o comércio marítimo internacional. A Etiópia é também indispensável para a estabilização do Sudão, onde têm presença policial e militar tanto no quadro bilateral como no âmbito das Nações Unidas (trata-se, aliás, do país que mais contribui com pessoal para esta missão da ONU).
O meu companheiro de viagem salientou outro aspecto, pouco referido nas análises políticas. “80% do caudal no Nilo vem da Etiópia, o que cria relações tão estreitas como tensas com o Egipto.” Recorde-se que o Cairo é uma capital essencial nos arranjos de poder no Médio Oriente.
Por tudo isto, a Etiópia é uma peça estratégica do troço africano da Nova Rota da Seda, um projecto anunciado pelo Presidente chinês Xi Jinping em 2013, que unirá a China à Europa por via terrestre e marítima, passando por África, Ásia Central e Médio Oriente. O projecto abrange 68 países, mais de 65% da população mundial e cerca de um terço do PIB do planeta. Portanto, não se estranhe que Pequim tenha construído a título gracioso a nova sede da União Africana, instalada em Adis Abeba – onde, por mero acaso, foram encontradas escutas que, diz-se, pertenceriam aos serviços de informações de Pequim.
Em infraestruturas ferroviárias, rodoviárias e hídricas, mas também no número de cidadãos chineses que andam pelas ruas, a presença da China é evidente. Aliás, a presença de trabalhadores chineses é tão significativa que o aeroporto da capital etíope (cuja ampliação está a cargo de uma empresa chinesa) entende justificarem-se ecrãs com informações sobre partidas e chegadas apenas em mandarim.
Painel de informação de voos no aeroporto de Adis Abeba - fotografia minha
Falávamos da China e Paciência perguntou-me pela Coreia do Norte. Disse-lhe que no pouco acesso que tivera a internet naquele dia vira que o regime norte-coreano lançara um míssil sobre o Japão. Saltou no banco. “Isso não vai acabar bem”. Como o assunto eram desgraças, contei-lhe que naquela manhã houvera uma explosão no metro de Londres. Não tinha sido reivindicada ainda, mas tudo apontava para um atentado terrorista. “As pessoas são tontas. E há muito tonto em África e no Médio Oriente. Não percebem que se a Europa não está bem, África também não estará. Quanto mais vocês, europeus, gastam em segurança menos investem nas nossas economias e no apoio ao nosso desenvolvimento. E mais espaço se abre à China. O terrorismo na Europa também mata em África”. Mas, para Paciência, na Europa também há tontos: “E como se isto não bastasse, vocês ainda inventam problemas como o Brexit. Vamos perder todos”.
Lalibela, norte da Etiópia - fotografia minha
O orfanato
A estrada de acesso ao portão principal é um atoleiro. Os carros e carroças atascados na lama obrigam a gincana apeada, com o lodo a chegar ao meio da canela. É um cenário comum durante a época de chuvas, período que vai de Junho ao final de Setembro. Dentro do recinto funciona uma clínica pediátrica e um orfanato financiados e geridos por uma ONG europeia.
As crianças ali acolhidas têm idade estimada – abandonadas na rua, ninguém sabe ao certo quando nasceram. O membro mais recente da família era uma menina que teria entre um e dois meses de idade, recolhida à beira da estrada. Como referido em posts anteriores, a berma da estrada é o centro da vida social e do comércio nas zonas rurais e, por isso, é lá que as crianças são deixadas para que alguém as encontre. Acontece, porém, que é também à beira da estrada que apodrecem os cadáveres dos animais atropelados – cães, burros, hienas, há de tudo – e que a população sem acesso a saneamento básico faz as suas necessidades. Quando a menina foi encontrada tinha o corpo entregue à sarna.
“As infecções de pele e as doenças respiratórias são os problemas mais comuns nas crianças desta região. Há casos extremos. Mas são problemas que os hábitos de higiene, o saneamento básico e o acesso a água potável eliminariam quase por completo”, explica N., médico, chefe de serviço na clínica pediátrica. “Gastam-se fortunas em apoio médico, mas 90% das doenças em pediatria resolver-se-iam com coisas simples”.
O problema com maior incidência e gravidade é a malnutrição. Os casos mais frequentes são de malnutrição severa, embora os números oficiais do Estado mostrem uma realidade diferente, onde a malnutrição moderada é a regra e a severa quase marginal.
“O Governo falseia os dados por duas razões”, explicou-me N. “Primeiro, porque pretende transmitir ao exterior uma imagem positiva do país, essencial para alcançar suas ambições de Estado dominante na região. Segundo, porque precisa de demonstrar aos patronos internacionais, estatais e não estatais, que os milhares de milhões de dólares que anualmente entram no país para combater a malnutrição infantil estão a ser bem utilizados”.
Há uma terceira razão. Na última década, entre 40% e 50% do orçamento do Ministério da Saúde proveio de financiamento exterior, tanto de Estados como de organizações internacionais. Só com este apoio a Etiópia consegue ter um serviço nacional de saúde gratuito de âmbito nacional. Mais do que cumprir uma função do Estado, a saúde pública assume um papel político, pois é usada pelo Governo para mostrar que não existe discriminação étnica e, dessa forma, mitigar pulsões nacionalistas. O sistema nacional de saúde é, até certo ponto, um instrumento para dissuadir a contestação: com este Governo há saúde para todos; com outro não se sabe.
A luta contra a malnutrição é difícil. Para que não seja inglória, M., 36 anos, coordenadora da ONG no país, conta-me que as crianças com este diagnóstico, mesmo que acompanhadas pelos pais, ficam internadas na clínica. “O tratamento é feito através da administração de um leite em pó, uma fórmula especial. Podíamos entregar este leite aos pais para que o administrassem às crianças em casa. Mas sempre que o fizemos, os pais, ao chegarem às suas aldeias e verem que há mais crianças subnutridas, partilham o leite entre todos. Conclusão: nenhum dos bebés recebe a dose de que necessita. O leite desaparece (e é um bem caro e difícil de obter aqui) e as crianças continuam subnutridas. Agora ficam internadas até que as medições e o peso indiquem que estão bem.”
Procura de trabalho, Adis Abeba - fotografia minha
O serviço nacional de saúde tem cobertura universal, mas está mal equipado, especialmente nas zonas rurais. As ONG prestam uma atenção médica fundamental e, em alguns casos, são mesmo o único apoio às populações, o que coloca uma pressão enorme sobre a gestão de recursos. “Umas noites atrás tivemos cinco casos graves de crianças com problemas respiratórios. Só havia botijas de oxigénio para quatro. E se usássemos o oxigénio com esses quatro casos, não haveria botijas para a manhã seguinte. Tivemos de fazer escolhas difíceis...apoiámos os três casos mais graves, mantivemos os outros em observação, e arrancámos para Adis Abeba para comprar mais botijas”. Num raio de 160 km, esta é a única organização com botijas de oxigénio.
Naquele orfanato, as crianças comem três vezes ao dia, têm água potável e hábitos de higiene, têm uma cama, estudam, têm assistência médica permanente, e estão protegidas da violência – em particular de agressões sexuais, crime com alguma incidência no país. São vidas privilégio quando comparadas com o que sucede fora dos muros da instituição, o que é trágico.
As carências alimentares e os demais problemas de saúde pública expõem os limites do milagre económico e suscitam sérias dúvidas sobre a política de desenvolvimento adoptada pelo Governo. Um relatório muito crítico publicado pelo Oakland Institute em 2016 refere que a crise alimentar vivida nesse ano, que deixou 18 milhões de pessoas dependentes de assistência para sobreviver, teve a sua origem, como sempre, em factores ambientais, mas foi potenciada pelo Plano de Desenvolvimento Comunal e pelo Plano Quinquenal de Crescimento e Transformação da Etiópia. Estas estratégias governamentais resultaram no realojamento forçado de 1,5 milhões de pessoas de comunidades pastoris e agro-pastoris, além de dificultarem o acesso das populações a água. As secas são crónicas na Etiópia, mas parte importante dos estudos independentes sugerem que as fomes catastróficas não têm de o ser.
O nome dos cooperantes foi omitido a pedido dos próprios. As fotografias que ilustram o texto são, intencionalmente, de regiões distantes da vila onde a ONG está sedeada.
De Adis rumo ao Sul - Fotografia minha
Camiões e violência étnica
De Adis Abeba para Sul a viagem inicia-se numa estrada profundamente danificada. Há buracos com o comprimento de autocarros. Literalmente. A isto acresce a inobservância de todas as regras de trânsito: carros, motos, bajaj (tuk-tuk de uso local), pessoas e animais circulam nas mesmas vias, frequentemente em sentidos conflituantes. A sinalização é escassa e decorativa. Uns quilómetros depois surge um troço de autoestrada imaculado, produto da engenharia chinesa.
Antes de chegar ao lago Koka e de volta à penosidade de uma estrada secundária, dois camiões jazem incendiados na berma da estrada. Na Etiópia, a vida acontece na berma da estrada: é na berma da estrada que se constroem as casas de barro prensado, é na berma da estrada que se monta um pequeno negócio abrigado por chapa de zinco, é na berma da estrada que se vê a vida passar. Assim, a presença daqueles camiões neste local não era desleixo. Pergunto a Ermiyas, o meu camarada etíope de viagem, a causa. Íamos sozinhos no carro, mas a frase “mau governo” sai entre dentes. Para perceber o porquê da frase e a razão pela qual foi dita em surdina importa entender primeiro a organização político-territorial do país.
A Etiópia é um estado federal onde a cada um dos nove estados federados corresponde a uma etnia maioritária - no total, existem no país mais de duas dezenas de grupos étnicos. Oromos e amharas são os mais numerosos, sendo, respectivamente, 34% e 27% da população. A etnia tigrínia, que representa pouco mais de 6%, tem um estado próprio e é a força preponderante na Frente Democrática e Revolucionária do Povo da Etiópia (FDRPE), a coligação que detém o poder político federal. Este arranjo político-institucional é fruto de uma tentativa de domesticar a violência.
Em 1974, quando depôs o imperador Haile Selassie, o golpe da junta militar comunista (Derg) pôs fim a um sistema autocrático e feudal e, em simultâneo, destapou um conjunto de tensões políticas e étnicas há muito latentes, às quais respondeu com terrorismo de Estado. Com diferentes velocidades e intensidade, estas tensões transformaram-se em conflitos armados. À luta pela independência da Eritreia, em curso desde a década de 1960, juntaram-se outras protagonizadas por movimentos de base étnica como, por exemplo, a Frente de Libertação Afar, o Partido Revolucionário do Povo Etíope, a Frente Islâmica de Libertação da Oromia, a Frente de Libertação Oromo e a Frente de Libertação Nacional Ogaden.
A Etiópia torna-se então o cenário de diferentes guerras civis que com frequência se misturaram e sobrepuseram. Do lado do Estado, as purgas e os assassinatos transformaram o regime militar ditatorial numa tirania de corte personalista liderada pelo infame Major Mengistu Haile Mariam. Neste período de tirania militar, que foi de 1974 a 1991, momentos houve em que a Etiópia foi palco – e vítima – de um estado de guerra total. Os avanços e recuos destes conflitos foram determinados pelas identidades étnicas, pela demografia, pela geografia, mas também pela influência das potências enfrentadas na Guerra Fria.
Findo o regime militar em 1991 e obtido o reconhecimento internacional da Eritreia em 1993, o país virou-se para dentro à procura de soluções. Desde o final do reinado de Halie Selassie que a fragmentação da sociedade em diferentes etnias, línguas e culturas estava no centro da contestação social. As tentativas dos diferentes regimes em forjar uma unidade nacional mediante a eliminação da preponderância das identidades étnicas saíram sempre goradas – e o custo dessas tentativas foi medido em cadáveres.
Vila na periferia de Gondar - Fotografia minha
A solução de um estado federal que conferisse autonomia política e administrativa às principais etnias foi a via encontrada para acomodar as diferentes identidades e evitar maior desagregação territorial, sendo esta a base do actual regime.
Da teoria à prática há sempre uma distância considerável e, por isso, os méritos do federalismo são mitigados por quatro problemas de gestão política. Primeiro, a descentralização é débil. O poder político está concentrado no Estado Federal, em particular na FDRPE, no poder desde 1991, controlada pela etnia tigrínia. Segundo, a ausência de liberdades políticas. A imprensa não é livre, o acesso à internet é controlado e a oposição é oprimida, algo que foi bastante visível em 2015, ano em que foram realizadas as últimas eleições legislativas onde a FDRPE ficou com 500 mandatos parlamentares num total de 547 – os 47 de diferença foram conseguidos por partidos leais à coligação no poder. Terceiro, muitos dos representantes locais são encarados pelos seus constituintes como fantoches do poder central, cooptados por via da corrupção. Por último, e embora se tenha encontrado uma forma equilibrada de distribuir os recursos do orçamento de Estado, a maior parte dos fundos e projectos internacionais de apoio ao desenvolvimento bem como a construção de infraestruturas estão localizados na região Tigré ou nas zonas definidas pela etnia que a controla.
Às tensões étnicas e nacionalistas do passado acresce então o sentimento de marginalização económica e política. E, devido à natureza autoritária do poder incumbente, não existem no sistema político etíope mecanismos e canais eficazes através dos quais os cidadãos possam exprimir o seu descontentamento e encontrar soluções. Era a tudo isto que Ermiyas se referia quando respondeu “mau governo”.
Os dois camiões ardidos eram então uma recordação do sucedido onze meses antes, em Outubro de 2016, mês em que os oromos celebraram o festival anual Irreechaa, evento onde se celebra o fim da época das chuvas e se pedem colheitas prósperas à natureza. Milhões de oromos acorrem à localidade de Bishoftu, relativamente próxima do lago Koka, por onde passava em viagem. Ter-se-ão infiltrado na massa de peregrinos manifestantes anti-governo e a polícia reagiu com brutalidade: os números oficiais referiam cerca de 50 mortos, embora diferentes organizações não governamentais coloquem a cifra na ordem dos 100. O caos e a violência deixaram um rasto de destruição que o passar dos meses foi apagando. Em Setembro sobravam dois camiões ardidos, uma espécie de memento mori que a todos recordava os efeitos da violência étnica (e a brutalidade que o regime usa para a reprimir).
O episódio do festival Irreechaa foi antecedido por meses de protestos oromos contra o Executivo. Iniciados em Novembro de 2015, e motivados por causas diversas – desde um plano para expandir a cidade de Adis Abeba que retiraria terrenos de cultivo à região oromo a manifestações contra o permanente clima de intimidação que rege a vida política –, os protestos alastram-se a várias cidades da Oromia. Entretanto, a etnia amhara iniciou os seus próprios protestos contra o Governo e dele obteve a mesma reacção. Em Outubro de 2016 o Governo Federal decretou o Estado de Emergência, findo em Julho de 2017. A Comissão Etíope para os Direitos Humanos, organismo dependente do Governo e por ele criado para refrear as acusações de autoritarismo vindas do estrangeiro, fez o balanço dos protestos ocorridos em 2016 e concluiu que há 600 mortos a lamentar.
Semanas depois de ter visto os dois camiões, e já numa região diferente, ouviria a frase “mau governo” outra vez. A 18 de Setembro de 2017, de caminho a Harar, no Este do país, sou aconselhado a não seguir viagem. “Há refugiados em direcção a Harar porque as coisas estão complicadas junto à fronteira com a Somália”, disse-me Agu, diácono numa igreja ortodoxa. De facto, era notória agitação e o nervosismo das pessoas que se iam juntando na rua. Pouco a pouco formou-se uma caravana de gente apeada que transportava como podia o pouco que tivera tempo de arrumar. Perguntei a razão. Foi então que ouvi o fatídico “mau governo”.
A causa imediata eram confrontos entre somalis e oromos. Naquele primeiro dia as autoridades federais contabilizaram 18 mortos, um número contestado pelos representantes locais, que registaram mais de 30. O número de refugiados internos andava na ordem das dezenas de milhares. Porém, a violência foi menos intensa do que em Fevereiro e Março daquele ano, quando os confrontos entre oromos e somalis provocaram centenas de mortos – o número exacto nunca foi apurado.
Com estradas cortadas, esperámos junto à rádio por novidades. Enquanto houve notícias, Agu traduziu o que ouvia para inglês. Faltava saber o que esteve na génese dos confrontos. Mas disso não falavam na rádio. “Isto é instigado a partir de Adis. Metem-nos uns contra os outros para aparecerem [a FDRPE e os tigrínia] como os únicos capazes de garantir a unidade da Etiópia”. A tese tem alguns argumentos válidos e adeptos nas regiões Oromia e Amhara, mas é impossível de demonstrar. Vale por ilustrar a desconfiança que existe em relação à FDRPE.
Sem prejuízo do progresso alcançado desde 1991, a Etiópia está no 134º lugar do Global Peace Index 2017, uma lista que avalia o nível de segurança em 164 países. Nos diferentes parâmetros, analisados numa escala de 1 (muito baixo) a 5 (muito elevado), a Etiópia é especialmente mal classificada em Conflitos Internos Combatidos (4.3), Acesso a Armamento (4.0), Intensidade de Conflito Interno (4.0) e Protestos Violentos (3.5). Em relação a 2016, a Etiópia caiu 16 lugares e piorou na generalidade dos indicadores. Foi, de resto, o país que mais pontuação perdeu.
Invertida a marcha em segurança graças à amabilidade daquele diácono que me cuidou como se fossemos família, segui viagem em direcção ao orfanato onde passaria os próximos dias.
Estes factos e dados reportam a 2017. Eleições recentes alteraram o status quo - sem prejuízo dos sinais positivos que resultaram das eleições, o real significado da alteração ainda está por ver.
Entre o milagre económico e o abismo político
centro de Adis Abeba - fotografia minha
À noite, vista do ar, Adis Abeba nada deve a Nova Iorque ou a Xangai. A capital etíope apresenta-se como uma metrópole colossal, vibrante, repleta de pontos de luz e de cor. Aterrando, o cenário muda e sobressaem as contradições de uma cidade indecisa entre o progresso e os abismos do passado.
Os edifícios modernos compartem espaço com formas de miséria indisfarçável. As avenidas movimentadas onde desponta dinheiro novo são entrecortadas por vielas enlameadas e sem iluminação, controladas por matilhas de cães vadios. O novo betão tem ao lado casas de chapa de zinco. As estradas, irregulares e acidentadas, conhecem poucas regras de trânsito e são apenas para quem as domina. Num táxi, o destino é dito com base em referências – um hotel, uma escola, uma embaixada – porque as ruas não têm nome. O novo metro de superfície, uma infraestrutura construída e financiada pela República Popular da China, coloca no século XXI uma população que vive com cortes diários e prolongados de água e de eletricidade.
Ainda que pareça um contrassenso, tudo isto são sinais de um notável progresso económico. Após décadas de guerras civis e depois das fomes dramáticas da década de 1980, a economia etíope não tem rival na região e poucas são as economias no mundo com um crescimento comparável. De acordo com o Banco Mundial, entre 2003 e 2015 a economia etíope cresceu a uma média anual de 10,8%, o que compara com um crescimento médio regional de 5,4%. O crescimento do PIB em 2016 situou-se nos 7,6%.
Este sucesso, apelidado por alguns analistas de milagre económico, levou a um decréscimo acentuado da pobreza. Ainda de acordo com o Banco Mundial, no ano 2000 55,3% dos etíopes viviam em pobreza extrema – menos de 1,90 dólares por dia –, uma percentagem que desceu para os 33,5% em 2011. A esta década de êxito económico juntam-se duas décadas de avanços sociais: aumentou o número de crianças a frequentar o ensino primário, a mortalidade infantil reduziu para metade e o número de cidadãos com acesso a água potável duplicou.
No entanto, é um êxito com limitações severas. As que são visíveis na capital e nas demais cidades acentuam-se bastante quando nos aventuramos em zonas rurais. Percebemos que o milagre económico é um fenómeno essencialmente urbano e que no espaço rural, a maior parte do território, onde reside mais de 80% dos 102 milhões de habitantes, a pobreza e as condições de vida insalubres são a regra.
As carências internas não mitigam a relevância estratégica da Etiópia no mundo. É essencial aos projectos comerciais e políticos da China e assume-se como primeira linha de combate ao terrorismo islamista na África Oriental, o que em grande medida justificou a visita oficial do então Presidente Barack Obama em 2015, o primeiro Chefe de Estado norte-americano a visitar o país. Ladeada por focos de instabilidade no Sudão do Sul e na Somália, virada para o Golfo de Áden, e vizinha do Djibuti – país com a maior base militar permanente dos Estados Unidos da América em África e com a única base militar chinesa fora da Ásia –, a Etiópia é uma peça indispensável para a estabilidade de um ponto sensível para o comércio e segurança internacionais.
Este post, em jeito de introdução, é o primeiro de vários que relatam um mês de mochila às costas pela Etiópia em Setembro do ano passado. Os factos, dados e estatísticas referidos nestes textos foram obtidos nessa altura.
Robert Mugabe, Dezembro de 2008
No dia 21 de Fevereiro de 2009, quando celebrou 85 anos, Robert Mugabe mandou organizar um faustoso repasto que incluiu tudo do bom e do melhor. Indiferente à chocante miséria que grassava no seu país, o Zimbábue, outrora conhecido por celeiro de África.
O festim incluiu nada menos de duas mil garrafas de champanhe (Möet & Chandon e Bollinger de 1961 no topo das preferências), oito mil lagostas, cem quilos de camarão, quatro mil doses de caviar, 16 mil ovos, 500 quilos de queijo e oito mil caixas de bombons Ferrero Rocher, entre outros acepipes.
Fora das paredes palacianas, milhares de zimbabuanos viam-se forçados a arrancar ervas daninhas do mato para matar a fome. A ex-Rodésia do Sul, como era conhecida durante o domínio colonial britânico, batera no fundo: 94% de desempregados, sete milhões de habitantes dependentes da caridade internacional, mais de 70 mil casos de cólera confirmados pela Organização Mundial de Saúde devido à falta de elementares condições de higiene, a maior inflação do planeta, o colapso generalizado da sociedade civil.
Aquela celebração digna da corte absolutista de Versalhes foi um dos inumeráveis actos obscenos praticados pelo poder político num país varrido por todo o género de indignidades. Perante o silêncio conivente de muitos, em África e na Europa, que ao longo destes anos foram aludindo a Mugabe como um "combatente da liberdade" sem corarem de vergonha por abastardarem uma das mais nobres palavras associadas à espécie humana.
Em Dezembro de 2007, Lisboa recebeu Mugabe com todas as honras, na inútil cimeira entre a União Europeia e África. Dar-lhe face nessa altura equivaleria a fazer correr sangue no Zimbábue, dissemos então vários de nós na blogosfera. Infelizmente, foi isso que sucedeu. Para vergonha nossa e dos nossos civilizadíssimos parceiros comunitários.
Quem analisar com atenção o percurso político de Mugabe – um homem de formação católica que se tornou marxista quando estudava Direito numa universidade sul-africana – verifica que os primeiros sinais do déspota em que se tornou eram já detectáveis no início da década de 80, quando ainda merecia os mais rasgados elogios da imprensa internacional, pela forma brutal como esmagou aquele que era então o seu principal adversário político: Joshua Nkomo, líder da União Popular Africana do Zimbábue (Zapu).
Nkomo foi, a par de Mugabe, um dos principais opositores a Ian Smith, que durante década e meia tentara impor ali um regime dominado pela minoria branca, nunca reconhecido pela comunidade internacional. Após a independência, em 1980, integrou o Governo de unidade nacional como ministro do Interior. Menos de dois anos depois, Mugabe acusou-o de conspiração contra o Estado. Nkomo foi preso e pelo menos 20 mil dos seus apoiantes no Leste do país acabaram assassinados. A Zapu foi dissolvida e a União Nacional Africana do Zimbábue (Zanu), de Mugabe, tornou-se o partido único.
No ano 2000, a máscara caiu de vez. Mugabe lançou uma “reforma agrária – a ocupação pura e simples das propriedades agrícolas dos brancos. Suprimiu toda a oposição. Aboliu o poder judicial independente. Meteu na cadeia opositores, sindicalistas, estudantes e activistas de direitos humanos. Amordaçou a imprensa. E fez mergulhar o país no caos económico: em Outubro de 2008, segundo o Banco Central do Zimbábue, a inflação atingiu 231.000.000%. Cerca de um terço da população zimbabuana exilou-se em Moçambique ou na África do Sul para fugir à fome.
«Neste momento, as pessoas morrem de fome neste país que dava de comer a toda a região, onde havia cultivo de todo o género», alertava em 2007 uma ilustre ex-residente no Zimbábue: a escritora Doris Lessing, nesse ano galardoada com o Nobel da Literatura. Segundo a Unicef, um quarto das crianças do Zimbábue são órfãs: a esperança de vida é a menor à escala mundial - 37 anos para os homens, 34 anos para as mulheres.
O antigo estadista modelar, invocado outrora como exemplo no continente, tornou-se apenas mais um nome a juntar à longa lista de tiranos que vêm destruindo o sonho de uma África próspera, justa e livre. Nada diferente do que fizeram um Bokassa, um Mobutu ou um Idi Amin numa parcela do globo onde a esperança de progresso parece uma miragem cada vez mais longínqua.
Apesar da cruel evidência dos factos, o agora deposto Robert Mugabe ainda era visto em largos sectores como um “herói da libertação”. Este paternalismo benévolo de certas elites ocidentais, cheias de complexos de culpa pelo “colonialismo”, contribui para oprimir África, o único continente onde é generalizada a condescendência perante as violações mais generalizadas e grosseiras dos direitos humanos.
Se hoje assistimos com júbilo à queda do tirano que chegou a proclamar "o Zimbábue é meu", não podemos baixar a guarda perante quem lhe sucede. As últimas seis décadas de história ensinam-nos que um déspota africano, em regra, é substituído por outro déspota. Já sabemos o suficiente para deixarmos de confundir democratas com ditadores.
Depois de a Netflix ter aderido à turba contra Kevin Spacey e acabado liminarmente com a série House of Cards, a única coisa que resta aos apreciadores do género é acompanhar a situação no Zimbabwe. Devo dizer que não estou a achar o enredo muito diferente.
Salva Kiir, um autêntico "cowboy" africano
Cinco anos depois da sua independência, celebrada, diga-se, com grande apoio e entusiasmo dos líderes ocidentais, que, nestas coisas, costumam meter o realismo político de lado ao deixarem-se invadir por um idealismo tolo e irresponsável, o Sudão do Sul é hoje mais um Estado à deriva, com um tecido social retalhado e uma economia de rastos. O país está a saque e refém das vontades e caprichos do suposto "pai" da independência, Salva Kiir, um autêntico "cowboy", que, na boa e velha tradição das lideranças africanas, rapidamente revelou as suas tentações interesseiras e despóticas.
Agora, cinco anos depois, a comunidade internacional parece ter acordado para uma realidade que já era evidente muito antes do referendo que levou à independência do Sudão do Sul: embora a sua população seja maioritariamente cristã e animista, contrastando com o cariz muçulmano do Norte, aquele território estava longe de ter as condições estruturais e os recursos políticos para se tornar num país independente. Era óbvio.
Recordo que dias antes do referendo realizado a 9 de Janeiro de 2011, questionei-me se não estaria mais uma guerra civil iminente em África e cheguei a escrever no Diplomata o seguinte: "Estará África na iminência de uma nova guerra civil? Os observadores internacionais no terreno, como o senador John Kerry, presidente do comité dos Negócios Estrangeiros do Senado dos Estados Unidos, acreditam que não. Estão confiantes que o referendo que se realiza no próximo Domingo no Sudão, e que irá decidir se o Sul daquele país se tornará numa nação independente, não terá consequências gravosas, estando neste momento todo o processo a decorrer sem problemas. A CNN, no entanto, e inspirada na longa tradição africana de conflitos internos, colocava as coisas de uma forma mais prática ao dizer que o resultado deste referendo ou institui o mais recente Estado da comunidade internacional ou acaba em guerra civil. Atendendo ao historial do Sudão e ao comportamento da sua cúpula político-militar nos últimos anos, o Diplomata só pode concordar com aquela observação."
Pouco mais de um mês tinha passado sobre o referendo e já se verificavam confrontos fronteiriços entre o Sudão do Sul e o Sudão. E em Março voltei ao assunto para falar dessa personagem "hollywoodesca", Salva Kiir, que iria ser o futuro Presidente a partir de 9 de Julho. E todo o cenário era preocupante, porque Kiir mostrava os sinais de vir a ser um líder que iria infligir grandes danos ao seu país e povo, tendo-se aproveitando da popularidade e carisma do defunto John Garang, antigo líder sudanês, que lutou pela independência da região do Sul e que morreu em 2005 num acidente de helicóptero. Kiir fez parte do círculo próximo de Garang, tendo este sido o grande responsável e inspirador da independência do Sudão do Sul.
A questão é que após a independência e perante a incapacidade de lidar com os problemas internos, Salva Kiir tentou aproveitar os conflitos fronteiriços com Cartum para criar neste o inimigo externo e desviar as atenções da sua governação. Não é por isso de estranhar que menos de um ano após a independência, o já Presidente Kiir assumia claramente o conflito com o Sudão. É certo que os problemas sempre existiram com o regime de Cartum liderado pelo também pouco recomendável, Omar al-Bashir, no entanto, foi no plano interno que a situação mais se deteriorou, como, aliás, seria expectável.
Nstes últimas dias, a violência na capital Juba tornou-se demasiado evidente e a situação bastante ruidosa, obrigando os EUA, através da sua Conselheira de Segurança Nacional, Susan Rice, a pronunciarem-se com aquelas declarações já habituais, que têm tanto de inócuo como de incompetentes: “Esta violência sem sentido e indesculpável – levada a cabo por quem, mais uma vez, coloca os interesses pessoais acima do bem-estar do seu país e do seu povo – coloca em risco tudo aquilo a que o povo sul-sudanês aspirou nos últimos cinco anos”, disse Rice em comunicado.
A verdade é que há muito que Washington podia ter colocado alguma ordem na política do Sudão do Sul, mas não o fez, deixando o caminho aberto para que Kiir e outros fizessem do mais recente país independente o seu "playground" africano.
Uma das maiores nódoas diplomáticas registadas neste século em Portugal foi o acolhimento que prestámos à Guiné Equatorial como nosso Estado-parceiro na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - apesar de ninguém ali falar português, como se comprova pela própria página oficial do Governo de Malabo, só com versões em castelhano, inglês e francês. O direito de veto que formalmente ainda nos vem reconhecido nos estatutos da CPLP tornou-se letra morta, como este caso infelizmente comprovou.
Alegaram alguns, apesar de tudo, que pelo menos isto ajudaria a abrir o país ao exterior e até a democratizá-lo. Tretas. O generoso tratamento que lhe dispensámos serviu apenas para consolidar o despótico regime de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, o ditador há mais tempo em exercício de funções no planeta. Ascendeu à presidência num sangrento golpe de Estado, a 3 de Agosto de 1979, e nunca mais largou o bastão do poder, que utiliza para vergastar qualquer tímido protesto. Todos quantos se atreveram a criticá-lo pagaram um preço muito elevado. Nuns casos, com a prisão e a tortura. Noutros, com o exílio compulsivo.
No domingo, 24 de Abril, Obiang foi novamente "reeleito" por números que dizem tudo acerca do sistema político vigente no país: 99,2% dos votos. E promete prolongar a tirania pelo menos até 2023.
Terceira maior produtora de petróleo da África subsariana, a Guiné Equatorial é também um dos Estados mais corruptos do planeta. Ocupa o 144.º dos 187 lugares no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Tem o quarto maior índice mundial de mortalidade infantil. A maioria da sua população sobrevive com o equivalente a menos de um dólar por dia.
Repito o que aqui escrevi há dois anos: lamento que sejamos os primeiros a desprezar a lusofonia enquanto prestamos vassalagem a qualquer facínora, desde que tenha muitos barris de petróleo para exportar. A originalidade e a força da CPLP assentariam sempre na base cultural. No idioma comum, na cultura comum cimentada pela unidade linguística. A partir do momento em que o critério dominante se torna a "diplomacia económica", que venham a Turquia, a Indonésia, a Rússia ou a Noruega. E porque não a Arábia Saudita?
Sinceramente, é mais do que lamento. É repulsa. E vergonha.
Quando a morte de um leão numa caçada se torna objecto de importância maior do que que o drama vivido pelas pessoas que tentam atravessar as águas para buscar terra livre, é porque algo, neste mundo, está muito pior do que se consiga imaginar.
Não duvido que a morte de Cecil, o símbolo felino do Zimbabwe, se revista de aspectos muitíssimo lamentáveis. Mas, confesso - e que me perdoem os defensores dos direitos dos animais -, a sorte dos que fogem do inferno africano ainda continua a preocupar-me muito mais.
Quem é que anda por aí a despachar velhas G3 - velhas mas operacionais - para o Sudão do Sul? Bom, não estou à espera que alguém ponha o dedo no ar, mas que elas apareceram lá, apareceram. Foram descobertas no fim do ano passado pela UNMISS, a missão da ONU no país, mas escaparam aos média aqui. A denúncia está no Jirenna, blogue do jornalista e missionário José Vieira, com oito anos passados na jovem república, há 18 em guerra civil. Foi postada ontem, com o título G3 portuguesas matam no Sudão do Sul, e remete para factos com datas frescas. Cálculos por alto apontam para pelo menos 50 mil mortos no conflito. O papel de Portugal no comércio mundial de armamento é notícia antiga. Sabemos é pouco sobre ele. Talvez as provas encontradas agora, relatadas pela Small Arms Survey, sirvam para alguma coisa. Na segunda foto são nítidas as letras FMP - Fábrica Militar Portuguesa. Que tal se a Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias se debruçasse um pouco sobre o caso?
Teodoro Obiang Nguema é um dos homens mais ricos do continente africano, com uma fortuna pessoal avaliada em 600 milhões de dólares. É também aquele que se encontra há mais tempo no poder em África. Dirigente supremo da Guiné Equatorial desde Agosto de 1979, ascendeu ao cargo de Presidente da República num sangrento golpe de Estado que depôs o tio, Francisco Macías Nguema, sob cujo mandato o país -- ex-colónia espanhola, independente desde 1968 -- passou a ser conhecido por "Auschwitz africano".
O primeiro acto de Obiang como senhor absoluto no palácio presidencial de Malabo foi mandar executar o tio após um julgamento fantoche.
Apesar das receitas petrolíferas, que têm enriquecido a família do ditador, o país continua mergulhado na miséria. A Guiné Equatorial, que ocupa o terceiro posto do continente na exportação de petróleo, tem o quarto maior índice mundial de mortalidade infantil: cerca de um quinto das crianças guineenses morre antes dos cinco anos (dados da Unicef, referentes a 2009) e 70% dos seus habitantes vive na mais extrema pobreza.
O chamado Partido Democrático da Guiné Equatorial mantém-se, na prática, como partido único desta nação de língua oficial espanhola que nunca conheceu eleições democráticas. O mais recente relatório da Amnistia Internacional sobre o país, em que Obiang acumula as funções de Chefe do Estado e chefe do Governo, não deixa lugar a dúvidas: praticam-se ali detenções arbitrárias e execuções extrajudiciais. Há pelo menos um activista dos direitos humanos desaparecido.
No índice anual de liberdade de imprensa elaborado pelos Repórteres Sem Fronteiras, entre 179 países avaliados, a Guiné Equatorial ocupa o 166º posto (a Finlândia está em primeiro e Portugal no 28º lugar).
O Governo português está a ser fortemente pressionado por alguns parceiros da CPLP para desbloquear o veto à entrada da Guiné Equatorial como membro de pleno direito da organização. Não quero crer que tais pressões possam surtir efeito. Se a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa fizer a vontade a Teodoro Obiang confere caução de respeitabilidade a um regime que merece a reprovação generalizada do mundo democrático. E começa, desde logo, por violar as suas bases programáticas. O artigo 5º, nº 1, e) dos seus estatutos estabelece com clareza que a CPLP é regida pelo "primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, da Boa Governação, dos Direitos Humanos e da Justiça Social" (em iniciais maiúsculas no original). E o número 2 do mesmo artigo reitera este compromisso em termos ainda mais inequívocos: "A CPLP estimulará a cooperação entre os seus membros com o objetivo de promover as práticas democráticas, a boa governação e o respeito pelos Direito Humanos."
Afinal tudo quanto não existe no regime despótico de Malabo. Com uma agravante: Obiang pode dominar a linguagem dos cifrões mas não sabe falar português. Tornar-se-ia o castelhano língua de trabalho da CPLP?
Leitura complementar: Este ditador vem a Lisboa (3)