O meu amigo de andanças feicebuquianas Pedro Brinca é professor de economia em Lisboa, ao que sei respeitado pelos pares e estimado pelos alunos, não sendo portanto provável que entenda grande coisa do assunto. Mas de futebol, reconheço contrariado, sabe. Isto é um problema porque a analisar os jogos não é menos sofisticado do que seria se estivesse a falar dos de xadrez, e outro tanto fazem os melhores comentadores, ainda que em geral sejam mais proficientes em geometria e matemática do que em gramática. Ora eu sou do tempo em que, para falar do jogo, os analistas, que nele viam o que toda a gente via, adoptavam um palavreado intensamente lírico, às vezes pitoresco e ainda mais frequentemente asneirento: as equipas distinguiam-se pelo pundonor e o jogador xis pelo arreganho, enquanto tal ponta-de-lança chutava com o pé que tinha mais à mão.
O melhor futebol era o brasileiro, e quem viu Tostão, Gérson, Rivellino, Pelé e inúmeros outros sabe do que estou a falar.
Depois vieram os engenheiros da bola, que descobriram que fintar um defesa é um risco e uma perda de tempo, até porque onde dantes havia um agora há dois, e se a coisa demorar três, de modo que o melhor é passar ao camarada que está mais bem colocado, porque toda a gente que está no campo corre que se mata, a ganhar posições quem ataca e a anulá-las quem defende.
De modo que há pelo menos dois jogos, um com bola e outro sem, e as capacidades atléticas, mais a precisão do passe, é que passaram a fazer a diferença, com o ocasional tipo de génio lá à frente, que porém não consegue marcar se a bola não lhe chegar ou, chegando, tiver uma chusma em cima dele.
Isto seria o menos. Mas como pela mesma maré também ficou assente que não sofrer golos é mais importante do que marcá-los, o jogo transformou-se num cansativo exercício de paciência em que duas equipas, em particular se tiverem níveis semelhantes de competência, ficam o tempo todo a “rodar a bola” (expressão consagrada pelos cognoscenti, catálogos ambulantes e infelizmente falantes de lugares-comuns), tolhidos de medo e à espera de um deslize.
O jogo Portugal/Bélgica foi assim: chato. Um belga foi feliz e, de meia-distância e porque nenhum defesa o atrapalhou, marcou; e um médio português, no caso Rafael Guerreiro, rematou, com grande galo, ao poste (para não falar de dois balões que não foram à baliza, de outros, o esférico moderno sobe muito), uma bola que seria indefensável.
Ou seja: perdemos e as análises são umas; e seriam outras se tivéssemos empatado e, talvez, ganho no prolongamento, onde o cansaço facilita as distracções – a enconar ganhamos improvavelmente o último campeonato, e este, pelo mesmo processo, também estava ao nosso alcance.
Eu, que sou intelectual de grandes cogitações e tendo a detestar todos os clubes com excepção do FC do Porto, portanto pessoa de elevação e distanciamento, há muito entendo que quem está enfarinhado nestas coisas não está a ver bem a questão.
A questão é esta: os jogadores são mais altos, mais atléticos, mais calculistas; os treinadores estudam os adversários cuidadosamente, de modo a anular-lhes as vantagens; e toda a gente, antes de jogar para ganhar, joga para não perder.
O calculismo vai a ponto de as faltas poderem ser “cirúrgicas”, porque a penalidade é menos gravosa do que o risco de uma jogada prosseguir, e, nos casos relativamente mais sérios, que dão origem a cartões amarelos, pode ela beneficiar não a equipa ofendida mas uma terceira que nem ali está, escândalo com o qual os adeptos convivem alegremente.
Lembremo-nos apenas de um exemplo: as medidas da baliza são as mesmas de sempre. Porém, os guarda-redes dos primórdios eram muito mais baixos (o assunto está particularmente bem documentado por causa das incorporações militares, onde sempre a altura dos mancebos foi medida), pelo que os contemporâneos levam vantagem.
Alterar regras? Nem pensar, dizem os amantes de futebol. O que de certo modo é reconfortante: comunas, bloquistas, socialistas, progressistas sortidos, rezam nesta matéria todos pela mesma cartilha, que é a conservadora.
Pena seja só no futebol.