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Delito de Opinião

A morte do bloguismo decente

João André, 16.06.19

O jpt postou abaixo um texto sobre a falta de qualidade do jornalismo desportivo dando múltiplos exemplos (que subscrevo, pelo menos na descrição dele). A certa altura escreve:

«19ª notícia: desenvolvimentos sobre a acusação a Cristiano Ronaldo de ter violado uma prostituta americana»

Assim mesmo. Uma "prostituta americana". Não é engano. Nas notícias sobre as acusações de violação a Neymar, a acusadora é simplesmente "mulher". No passado escrevi sobre o assunto e não o quero fazer agora. Até pensei que pudesse ser citação directa do que escreveu o Record, mas depois de procurar a mais recente notícia sobre o assunto no site, encontrei uma onde Mayorga aparece identificada como "modelo", coisa que já não será há muito.

Parece-me então que Kathryn Mayorga foi automaticamente qualificada por jpt como prostituta. O crime? Pelo que vejo, e isto é conclusão minha, ter tido a audacidade de acusar Ronaldo, já que no caso de Neymar a acusadora não recebeu igual rótulo.

Fico esclarecido sobre a qualidade do bloguismo neste caso. De nojo.

Apos um momento #metoo (final)

João André, 15.10.18

Há pouco mais de uma semana decidi colocar uma série de posts com o título "Após um momento "metoo". Continham apenas uma frase com que as acusações/declarações de mulheres são frequentemente confrontadas. Não enquadrei, justifiquei, não me coloquei de qualquer dos lados. Deixei apenas a frase.

 

Houve quem tenha notado isso. Notaram também que deixei os comentários abertos, algo que nunca faço. Eliminei apenas um por grosseria*. De resto fui deixando e nem sequer intervi nas conversas. Não era minha intenção ser foco de nada, antes deixar a discussão avançar. Também não reflectirei sobre os comentários (no momento em que escrevo são 159 no total, média de quase 20 por post). Estão lá para qualquer pessoa ler e não vou pronunciar-me sobre eles. Cada um que tire as suas ilações sem comentários da minha parte.

 

Não é obviamente acidente que esta sequência tenha surgido após o caso Mayorga-Ronaldo, embora as declarações acima tenham surgido apenas da minha memória e não tenham sido levantadas de qualquer texto de opinião ou comentário específico. Podiam ter sido após as declarações contra Aziz Ansari ou Harvey Weinstein. Podiam ter sido após declarações de Jimmy Bennet contra Asia Argento, apenas se mudando o sexo das pessoas.

 

A razão de eu ter iniciado esta lista foi para ressalvar o tratamento a que as mulheres que acusam homens (mais ainda que homens que acusam, seja outros homens ou mulheres) são sujeitas. Uma acusação não é obviamente equivalente a uma condenação nem o pode ser. Uma mulher que tenha a coragem de fazer tal acusação não merece automaticamente ser considerada acima de suspeita. No caso de Kathryn Mayorga, só ela e Ronaldo estiveram naquele quarto naquele momento. Só eles poderão saber o que se passou. Se o souberem: a memória prega partidas tramadas e ambos podem apresentar relatos distintos estando completamente certos do que dizem.

 

Cristiano Ronaldo, como qualquer outra pessoa, é inocente até ao momento em que um tribunal o declare culpado. Isto é do mais puro senso comum. A decência exige que o deixemos agora em paz, para preparar a sua defesa, judicial - perante a justiça, privada - perante os seus entes queridos, e pública - se assim o entender. Não merece que devassemos agora a sua vida e não merece que os media vão agora em busca de "provas" de inocência ou culpabilidade. Ronaldo sempre defendeu ferozmente a sua vida privada - não a devassemos sem razão. Há uma acusação, os media publicaram essa informação factual e a história que a sustenta, além de terem ouvido o lado de Ronaldo, como lhes compete.

 

Ronaldo, como escrevi, é inocente até ser julgado culpado. Só que isso não implica que Mayorga é culpada (de difamação/extorsão...) até ser julgada inocente. Merece exactamente o mesmo respeito da parte do público e dos media que Ronaldo. Não merece que se acredite piamente na sua história (que tem buracos, como seria normal em qualquer história com 9 anos, ainda mais se envolver eventos traumáticos reais) nem que seja acusada de mentir. Ronaldo não sairá incólume desta história, é certo. Ela também não. Mesmo que ela acabe a receber algum milhão de dólares de Ronaldo, ficará sempre com rótulos colados à sua testa. Ele o mesmo.

 

Nestas histórias há sempre vítimas. A minha série de posts quis apenas lembrar que algumas vítimas sâo-no antes, durante e depois de um processo de acusação/denúncia. Lembremo-nos disso quando, do conforto das nossas cadeiras nos tornarmos cruzados do São Facebook.

 

Posts: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8.

 

* - actualização: apaguei também os comentários de luckylucky pelas razões que lhe expliquei no passado. Nos meus posts ele não comenta nem para dizer bom dia.

Pelo fim do dia anual da mulher

João André, 08.03.18

Desde que comecei a pensar no assunto que passei a não gostar do Dia Internacional da Mulher. Fazia sentido a sua celebração quando surgiu, mas não celebro aquilo que passou a representar: o dia em que os homens prestam atenção às mulheres como antigamente comprariam indulgências. Passou a ser então uma espécie de vávula de escape para a consciência. Não faz mal o comportamento machista ou misógino nos outros dias se se oferecerem flores (hoje em dia virtuais) no dia 8 de Março. Como li (ou ouvi) em tempos: por ano há um Dia Internacional da Mulher e 364 Dias Internacionais do Homem.

 

Não é uma questão apenas de como os homens se comportam (e não se pense que eu não me incluo neste grupo). Parte da responsabilidade é também das mulheres, que enchem os seus murais do Facebook, os seus feeds to Twitter ou os seus blogs com comentários de celebração do ser mulher, celebração das mulheres nos seus círculos (pessoais ou profissionais), e o orgulho de ser mulher. Não tenho nada contra isso, mas especialmente o primeiro e terceiro casos fazem-me confusão. Como celebrar ou ter orgulho em algo sobre o que não se tem influência. Seria o mesmo que dizer que se tem orgulho em ter dois pés ou uma boca. Há naturalmente circunstâncias em que isto muda (operações, acidentes) mas nenhum de nós pode influenciar o sexo com que nasceu.

 

Da mesma forma que não vale a pena celebrar o ser-se feminina. Uma mulher que se identifique como tal mas goste de crescer os pêlos, arrotar, vestir-se de calças e camisa de flanela, colocar uma tatuagem a dizer "Amor de Mãe", ver filmes de acção, beber cerveja, e, horror dos horrores, preferir mulheres, será menos digna de ser chamada "mulher"? Pode ser menos interessante do ponto de vista estético (e a estética muda com o tempo), mas não podemos reduzi-la a algo menos que Catherine Deneuve ou Natália Correia.

 

O Dia Internacional da Mulher é então o dia em que as mulheres são lembradas e acarinhadas por serem aquilo que sempre são. Deveríamos no entanto vê-lo como um dia em que reflectimos sobre o papel das mulheres, os seus direitos, aquilo que conquistaram (com ou sem ajuda) num mundo dominado por homens e aquilo que ainda falta conquistar. O papel de movimentos como os actuais #metoo ou #timesup é fundamental, mais que qualquer flor, virtual ou não, oferecida num único dia do ano. Não mudará o mundo só por si, mas lembra o mundo dos desafios que as mulheres e os homens (estamos neste mundo juntos) continuam a enfrentar.

 

Este dia 8 de Março de 2018 é então um belo dia para relembrar tudo o que foi exposto no último ano. Um colunista que eu leio (a propósito de outros temas) gosta d eescrever que a luz do sol é o melhor desinfectante. Se assim é, estes últimos 365 dias têm vindo a desinfectar muitos dos corredores infectos no mundo. E a limpeza, como aconteceu no passado, tem sido feita por mulheres.

 

E, assim, deixo o meu voto. Por para elas serem importantes, deixo às minhas mulheres os meus votos de um Feliz Dia Internacional da Mulher. E o meu desejo muito sincero que seja um dos últimos que se celebrem apenas de ano a ano.

 

#PressforProgress

Indignações

Diogo Noivo, 12.02.18

Lavra um ódio incendiário no twitter em Espanha. O combustível é um artigo de Javier Marías intitulado Ojo con la barra libre (atenção ao bar aberto). O tema, claro, é a fonte de todas as indignações do momento: o #MeToo.

Deixando claro que a rebelião contra o abuso sexual só pode ser algo positivo, Marías lembra que o uso do sexo como moeda de troca nos meandros do cinema é tudo menos uma novidade – o termo couch casting datará pelo menos de 1910 –, uma prática que contou com a anuência descomplexada de muitas aspirantes a actriz. Mais importante, Marías nota que “dar crédito às vítimas pelo simples facto de se apresentarem como tal é abrir a porta a vinganças, a represálias, a calúnias, a difamações e a ajustes de contas”. É uma opinião.

No entanto, ateou-se a pira moral e atirou-se o homem lá para dentro. Pelo caminho, e porque as labaredas são de monta, atirou-se também o jornal El País, onde Javier Marías publicou o texto em apreço. Pedem-se demissões – e até castrações. Põe-se em causa a obra literária do autor e questiona-se a utilidade do jornal. Usam-se hashtags como StopPatriarcado e expressões como bílis cerebral. Alega-se que Marías defende o direito de pernada e, sem surpresa, recorre-se a palavras como misógino, machista, repugnante, casposo, idiota e a tantas outras que o pudor me impede de reproduzir.

Opiniões e #MeToo à parte, razão tem Juan Cruz quando defende que impera a gritaria e o lugar-comum à custa da liberdade de expressão. Embrutecemos.

A acusação para censurar

João André, 19.01.18

O Pedro dedicou dois posts para acusar os movimentos #metoo e Time's Up de censura. Tenho a certeza que a única coisa que o Pedro está a pensar é que estes movimentos têm que controlar a sanha acusatória e está a procurar colocar água na fervura. Está no entanto a fazê-lo de forma errada.

 

A verdade é que me estou nas tintas para as acusações a Woody Allen. Ele já as sofre há décadas (e com boas razões) e nunca teve reais problemas. Também me estou nas tintas para as acusações às outras figuras do entretenimento. Estas surgem precisamente porque os seus alvos são pessoas que têm uma imagem a defender e, como tal, estão mais expostas e não podem reagir de forma tão agressiva como alguns outros.

 

Quantas acusações ficam por fazer? Quantas mulheres espalhadas por todo o tipo de indústrias não falam do que sofrem por medo? Ou quantas são ameaçadas, chantageadas, ignoradas e - sim!, digamo-lo - censuradas por terem acusado alguém? O The Guardian reportou uma cultura de abusos na ONU e subsequente cultura de encobrimento. Quantos outros locais não são iguais? Quantas mulheres foram abusadas por Weinstein ao longo dos anos porque estas acusações não surhiram mais cedo?

 

A verdade é que se este movimento cometará exageros (qual o movimento que não o faz?, pergunto eu mais uma vez) também estará a ajudar as mulheres a finalmente falar das suas situações com menos medo ou, pelo menos, sabendo que têm outras mulheres que as compreendem, que sofreram o mesmo.

 

Acusar este movimento de censura, quando ainda não tem um ano de existência, quando veio a público de forma mais clara ainda não há um mês, não serve para mais que querer empurrar as mulheres para o buraco onde estiveram enfiadas e dizer-lhes «fica mas é quietinha e tem respeito pela mão que te dá de comer!». Na verdade, mesmo sem essa intenção, acusar o movimento de censura nada mais fará que o censurar. São tácticas trumpianas.

 

Querem que estas mulheres saiam do buraco? Deixem-nas falar. Deixem-nas acusar. Quando as acusações não tiverem fundamento, deixem que isso seja apurado de forma correcta. Quererem que elas se calem é voltar a oprimi-les. Quantas mais mulheres falarem, mais facilmente os casos graves se compreenderão.

 

Até lá, não notei que Allen, Franco ou Ansari tenham perdido contratos. Já as mulheres que os acusaram possivelmente estão hoje a ser riscadas de listas. Não admira que algumas escolham o anonimato*.

 

* - ela não é anónima. Está perfeitamente identificada para o/a jornalista que a entrevistou. Não dar o nome publicamente numa entrevista não é anonimato. Como o Pedro bem o deveria saber.

#metoo - um pequeno preço a pagar (2)

João André, 14.01.18

O Pedro Correia seleccionou dois textos nesta temática como comentários da semana. Compreendo-o, houve depois do meu mais alguns posts muito relevantes sobre o assunto aqui no blogue. Noto que os dois textos são ambos escritos por homens e vão na mesma direcção: "coitados de nós que agora passámos a ser perseguidos e já não podemos dizer nada que somos logo perseguidos".

 

Claro, cada um tem a sua opinião, mas ninguém tem direito aos seus factos. Se há casos de mulheres que exageram nas acusações e na pose incendiária e desejo de justiça/vingança, também é certo que a esmagadora maioria dos casos de acusações constituem, no mínimo, comportamento impróprios. Não se trata na maioria dos casos de mulheres a queixar-se de abordagens sexuais, mas da forma como essas abordagens foram feitas.

 

Como escrevi, haverá quem se queixe e terá razões para isso, mas aquilo que deveremos ter que fazer será recalibrar as nossas atitudes para aceitar que o objecto do nosso desejo pode não considerar os nossos avanços tão inofensivos quanto isso. Se os homens não compreendem a necessidade de aceitar este simples facto, então o "preço a pagar" é ainda mais que ajustado.

 

Esta história parece-me simplesmente mais um episódio nas mudanças sociais que elegeram Trump: uma categoria/classe de cidadãos (neste caso, homens) perdem parte do seu poder. E reagem contra isso. Os comentários que o Pedro seleccionou, relevantes como a maioria dos que surgiram ao longo desta semana, fazem parte dessa lógica. A da falácia do espantalho. Nisto, estou com a Teresa.

#micromachismo

Diogo Noivo, 11.01.18

Estava prestes a sair de um edifício de escritórios onde tivera uma reunião. Foi há mais ou menos dois anos, em Madrid. Ao abrir a porta para a rua reparei que atrás de mim vinha uma mulher, uma rapariga nos seus trintas. Fiz o que aprendi com a minha avó e que, por força do hábito, faço hoje de maneira instintiva: um breve compasso de espera, segurando a porta para que a rapariga saísse primeiro. Talvez seja um anacronismo, mas fui ensinado que até o maior canalha, se deseja ser homem, está obrigado a um conjunto de gestos e deferências para com o sexo oposto, um dos quais ceder sempre a passagem. Foi o que fiz naquele momento. E nunca fui olhado com tanto desprezo. A rapariga perguntou-me se eu a achava incapaz de abrir a porta sozinha. Fiquei sem resposta, coisa que me sucede pouco. Perante o meu silêncio, acusou-me de “micro-machismo”.

Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. Em conversas posteriores com amigas, percebi que o assunto é sério ao ponto de existirem jornais espanhóis de referência que, nas suas páginas web, têm blogues dedicados às micro agressões perpetradas pelos homens, pequenas violências quotidianas que, segundo dizem, são causa e consequência de uma sociedade machista. Segundo a doutrina, abrir a porta a uma senhora configura um abuso do tipo.

 

É inegável que existem abusos de poder e agressões sobre as mulheres. É evidente que existe uma cultura machista que resulta muitas vezes em diferenças salariais gritantes, no desequilíbrio de oportunidades de progressão na carreira, na impunidade de quem assedia sexualmente uma mulher. Não há duas formas de olhar para isto: as mulheres são vítimas de violência física e verbal, algo que é tão abjecto como inadmissível. É, pois, fundamental e prioritário denunciar estes abusos, tal como é imprescindível que a censura do machismo nas suas diferentes expressões aconteça tanto no plano jurídico como no plano social.

 

Dito isto, creio que o resultado final desejado é o da paridade. Ou seja, a abolição de toda e qualquer forma de discriminação com base no género. Substituir um mundo onde as mulheres vivem em medo constante por outro onde os homens, pelo simples facto de sê-lo, devem temer consequências não é mais do que um ciclo absurdo onde apenas se permutam os sujeitos de discriminação. Ódio é ódio.

Assim, na qualidade de abridor de portas em série, agradeço a Catherine Deneuve e às demais co-signatárias de uma carta que procura repor a normalidade no debate. Afinal de contas, nos dias de hoje, como homem, dificilmente poderei advogar que “não é machismo que um homem seja cavalheiro”.