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Como todos os grandes conflitos bélicos, a Guerra Civil Americana está repleta de episódios memoráveis. Um dos meus preferidos refere-se ao encontro dos Generais Grant e Lee, em Appomattox (em Abril de 1865), para discutirem os termos da rendição sulista. Ulysses Grant, o líder do exército nortista, era conhecido pela sua brutalidade e pelo modo temerário com que enfrentara os rebeldes, não raras vezes às custas de milhares de fatalidades. Robert Lee, o grande General sulista, era igualmente uma lenda. Brilhante estratega, obtivera triunfos impensáveis com um número inferior de forças. Sóbrio no trato, recordava o aristocrata virginiano, frugal, mas simultaneamente conspícuo e educado.
A cena é inesquecível. Grant chega atrasado ao mais importante encontro da sua vida. Apresenta-se com uma camisa de cor esbatida e desabotoada, calças corroídas pela guerra e um par de botas vulgar, escondendo-lhe a lama a cor natural. Não trazia esporas, nem espada, nem revólver. O uniforme confundia-se com o de um soldado raso.
Lee esperava-o a um canto da sala. Vestira o seu melhor fato, um uniforme cinzento irrepreensível, perfeitamente engomado, onde se distinguiam as estrelas reluzentes que lhe designavam a alta patente. Trouxera consigo uma espada notável, que se alongava junto ao corpo. O punho, adornado com belas jóias, aguardava o toque aveludado das experientes mãos do general, cobertas com novíssimas luvas esverdeadas. As botas, impecavelmente limpas, possuíam esporas com grandes rosetas.
Apesar de triunfante – e perante o mais célebre inimigo – Grant manifesta uma excepcional deferência para com Lee, que obtém generosas concessões na negociação dos termos de capitulação. Os soldados sulistas não serão acusados de traição e poderão regressar a casa montando os seus cavalos. Seriam imediatamente fornecidos mantimentos àqueles que ainda se encontravam nas linhas de combate. E três dias mais tarde, ao deporem as armas, os soldados revoltosos receberiam ainda honras militares.
Juro que consigo ouvir o general Grant, sussurrando na direcção de Lee: “peço desculpa por tudo isto”. Afinal, a dignidade não é exclusiva dos vencedores.
[republicado a partir de um texto que escrevi há dois anos no BPC].
O Senado federal foi criado para funcionar como uma assembleia de elite, que controlaria simultaneamente a acção do Presidente e a legislação oriunda da “popular” Câmara dos Representantes. Nele serviram figuras notáveis da história americana (como Daniel Webster, Henry Clay, George Norris ou JFK) e hoje o Senado continua a fazer jus ao título de “clube mais exclusivo do mundo”. Todavia, nem sempre foi assim. No final do século XIX, o desenvolvimento das máquinas partidárias, dos lóbbies industriais e das pressões financeiras tornaram os senadores reféns de agendas específicas ou de interesses particulares.
A expansão para o Oeste selvagem suscitou reacções ambivalentes no imaginário americano. Havia, por um lado, um entusiasmo associado a essa notável aventura, que prometia glória e fama para quem nela se atrevia a mergulhar. Porém, o confronto com os rigores do clima, a aridez do solo e a desolação da paisagem conferia um travo amargo a essas esperanças.
São pois muitos os relatos de pioneiros desiludidos com a colonização do Oeste, que também nem sempre impressionou os principais responsáveis políticos americanos. Tendo viajado certa vez até perto de Cheyenne, no que é o hoje o Wyoming, o senador Benjamin Wade comentou com um rancheiro local: “Este é um território ruim – um território abandonado por Deus”. “Está enganado, senador”, disse o rancheiro. “É um território muito bom. Apenas lhe falta água e uma sociedade decente”. Ao que Benjamin Wade respondeu: “Pois, é tudo o que falta ao inferno”.
Na arquitectura política norte-americana, um dos cargos mais peculiares é o de Vice-Presidente, a quem cabem duas tarefas: substituir o Presidente em caso de morte ou incapacidade do mesmo; e presidir às sessões do Senado (sem direito de voto a menos que exista um empate). Embora em anos recentes, os Vice-Presidentes tenham assumido alguma preponderância na Casa Branca (servindo como conselheiros do Presidente), a verdade é que se trata de um cargo com pouca ou nenhuma relevância concreta.
Ao longo dos tempos, os protagonistas e os estudiosos da história americana não deixaram de sublinhar esta singular inutilidade. John Adams, o primeiro Vice-Presidente, chamou-lhe “o cargo mais insignificante alguma vez engendrado pela imaginação humana”. O historiador Arthur Schlesinger considerou que o Vice-Presidente tinha apenas "um encargo verdadeiramente sério": "esperar que o Presidente morra”. Mas talvez a declaração mais sintomática e divertida seja a de Thomas Marshall (Vice-Presidente de Woodrow Wilson): “Era uma vez dois irmãos. Um fez-se ao mar. O outro foi eleito Vice-Presidente. A partir daí, nunca mais ninguém ouviu falar deles.”
Erudito cientista, prezado escritor, eminente revolucionário, tipógrafo, polemista, diplomata, Benjamin Franklin foi o verdadeiro self-made man mais de um século antes do termo ter sido inventado. Um dos pontos culminantes da sua vida surgiu quando contava já 81 anos: a participação na Convenção de Filadélfia, onde seria elaborada e aprovada a Constituição federal dos Estados Unidos.
Discursando em várias ocasiões, Franklin manifestava grande preocupação pelo facto de os Estados se recusarem a obter um compromisso quando à natureza do sistema federal. No último dia da Convenção, e ultrapassada essa dificuldade, Franklin confessaria por fim a sua satisfação e ao mesmo tempo as suas esperanças no futuro dos EUA.
À medida que a Constituição era assinada pelos delegados, Franklin referiu-se a uma pintura que se encontrava na sala e confessou a alguns membros: “Tenho olhado [para este desenho] no curso das sessões, sem ser capaz de dizer se se trata de uma aurora ou de um crepúsculo; mas agora, tenho a felicidade de saber que ali se encontra uma alvorada e não um sol poente”. Em seguida, assinou ele próprio o texto constitucional, não evitando que uma lágrima lhe corresse pelo rosto.
Embora republicana na sua matriz, a Revolução Americana sempre sentiu um grande apreço pelo sistema constitucional britânico e pelas tradições inglesas. É disto exemplo uma célebre discussão no Congresso, no início de 1789, a propósito das denominações formais dos titulares de cargos públicos. Na altura, um comité do Senado sugeriu que o Presidente americano fosse designado de “His Highness the President of the United States of America and Protector of the Rights of the Same” (Sua Majestade o Presidente dos Estados Unidos da América e Protector dos seus Direitos).
Ao contrário do que exemplos como JFK ou Obama podem sugerir, nem sempre a bonomia caracteriza a conduta dos Presidentes americanos. Na verdade, existem vários casos de figuras irascíveis e francamente turbulentas, como Theodore Roosevelt ou Richard Nixon. Todavia, o mais intratável dos Presidentes dos Estados Unidos terá sido porventura Lyndon Johnson (1963-1969). Desconfiava de tudo e todos, tendo colocado escutas nos escritórios dos seus próprios colaboradores e nas casas-de-banho da Casa Branca. Dirigia reuniões com frequência enquanto defecava na sanita, perante os olhares atónitos do seu staff.
A expansão americana para Oeste propiciou o aparecimento de uma cultura aventureira, conciliando o gosto por intrépidas façanhas, o apreço pelo excêntrico e o impulso para gerar novas formas de expressão. Surgiu assim a figura do “declamador”, que combinava talentos oratórios com um espírito audaz e verdadeiramente chico-esperto que fervilhava nos colonizadores do Oeste. Veja-se este discurso de campanha de um candidato no Oregon, em 1858, contagiado por esse espírito barroco, quase grotesco: