Sozinho em casa
Em política, convém valorizar a importância daquilo que não é dito, mas expresso de outra forma. Veja-se, a título de exemplo, o que sucedeu ontem com Marcelo Rebelo de Sousa: em plena crise do coronavírus - que já contagia governantes e suscita temores sobre uma crise económica à escala global - o Presidente da República decide confinar-se durante 15 dias às quatro paredes domésticas, submete-se voluntariamente à análise clínica para indagar se é portador do vírus (deu negativo) e, cereja acima do bolo, concede uma entrevista a Miguel Sousa Tavares no Jornal das 8 da TVI, em que alterna os recados políticos com o enaltecimento das virtudes domésticas. Sozinho em casa, em minucioso exame à proposta de Orçamento do Estado para 2020, Marcelo comporta-se como uma fada do lar: cozinha, lava a loiça, estende a roupa e passa a ferro.
Em momento algum da entrevista, concedida a pretexto do quarto aniversário da sua tomada de posse, afirma que tenciona recandidatar-se a Belém. Mas tudo nela - tanto na dimensão pública como privada do cidadão Rebelo de Sousa - nos sugere que o Chefe do Estado não pensa noutra coisa. Mais: o teste ao coronavírus e esta original aparição presidencial via FaceTime à hora do jantar dos portugueses constituíram o pontapé de saída da campanha eleitoral que culminará no escrutínio de 2021.
Ao declarar-se em quarentena preventiva, levando o País a acompanhar com alívio as novidades do seu boletim clínico e com elevado apreço o exemplo de desapego às honrarias palacianas de que dá provas, Marcelo exibe um florentino instinto político - muito acima de qualquer rival, declarado ou não. E até invoca um seu ilustre antecessor para, com aparente candura, devolver uma farpa que Ana Gomes lhe endereçara pouco antes enquanto aproveita desde já para captar votos à sua esquerda: «Mário Soares é imbatível, é unico na democracia portuguesa, a votação dele é irrepetível.»
Sabe-a toda. Confirmando que a política profissional é para gente crescida, não para meninas ou meninos.