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Delito de Opinião

Sopa turva

José Meireles Graça, 13.06.21

Há uns anos, escrevi um texto seminal e definitivo sobre aspectos essenciais da fritura do bacalhau, nomeadamente no tocante à distinção, que até então a doutrina mal fazia, entre o frito e o fritado do precioso gadídeo. Uns anos volvidos, uma amiga querida sugeriu que o mesmo discernimento e empenho fossem empregues na dilucidação da problemática do ovo estrelado, ao que com gosto anuí.

O segundo post deixou de fora, por economia de tempo, alguns aspectos relevantes, em particular a comparação de vários tipos de ovos, diferenças regionais entre Norte e Sul, e influência deletéria que a poluição gourmet, e a cozinha autoral, têm vindo a exercer na confecção dos géneros em geral, incluindo portanto o ubíquo ovo na sua preparação mais comum.

Proponho-me hoje, com o habitual desprendimento e apenas com a pretensão de abrir caminho para a elaboração de estudos mais aprofundados sobre esta matéria tão rica de implicações, deitar uns olhos inquisitivos e meditativos sobre a sopa.

A razão é que, a pretexto de ir jantar a Lisboa com pessoas de representação, fiquei por lá uns dias. E hoje, como estivesse com falta de apetite ao almoço, fiquei-me por uma sopa de feijão verde (é assim que a sopa de vagens é designada no dialecto local).

Toda a minha vida as refeições começaram com sopa ou caldo, de inúmeras variedades, com excepção de paleio, um género que nem por ser abundante, largamente consumido e sem contraindicações para a saúde, faz pratos aceitáveis para cristãos tementes a Deus.

Estabeleçamos desde já a diferença entre sopa e caldo: quem for procurar vai descobrir que os soi-disant entendidos dizem que o segundo é um concentrado e por isso pode servir de base para a primeira; e, se forem nutricionistas, aproveitam para pendurar uma série de elogios na sopa, e reservas ao caldo porque falta isto e aquilo.

Tretas: sopa é o que assim é considerado pela tradição local; e caldo também. De modo que eu como sopa de nabos, num prato bem fundo, e um primo que nasceu a 50 km chama-lhe caldo de nabos e faz muito bem; e, do lado de lá da fronteira, fazem um caldo galego que não é muito diferente da nossa sopa de cozido. Quem quiser transtornar o assunto pode aliás ir ao francês e apurar a distinção entre soupe, potage, bouillon e consommé, com a garantia de escaldar, não a língua, mas a cabeça.

E então, a tal sopa, estava boa? Não, não estava: era na realidade um caldo de batata com umas rodelas de cenoura e uns talos de vagens. Se fosse caldo verde, em vez dos talos tinha uns fiapos de couve galega segada; e se fosse sopa de beldroegas, ou de olhos (olhos de couve, entenda-se), ou de couve branca, ou doutro vegetal qualquer, teria uns tímidos vestígios da espécie à qual pilhasse o nome.

Sucede que as boas sopas não são nem caras nem excessivamente difíceis de cozinhar, e portanto cabe perguntar por que razão os restaurantes não as fazem, nem têm variedade na oferta. O motivo é que o cliente típico não as pede, e a que têm na ementa é mais para o velho ocasional, ou a criança, ou o tipo que tem a dentadura num oito. Para o cliente ordinário não, que esse não sai de casa para comer uma sopa, credo.

Pois não. É que, além do mais, é uma coisa muito nossa, típica de um país pobre em que gerações sucessivas tiveram de se alimentar com o que tinham à mão, e pôr-lhe água para enganar a fome, e aquecê-la para matar o frio.

Coisa pobreta e antiga, portanto – nada a ver com a União Europeia, e o TGV, e as estrelas Michelin, e o PS costista, e os gostos das hordas de motoristas de táxi que, em matéria de typical, se ficam pelas sardinhas, que não os escaldam se as deixarem cair em cima das alpergatas, e pelo peixe e marisco, que é muito mais barato do que o que encontram nas terras brumosas de onde provêm, e é além disso cozinhado com sal porque as autoridades de saúde, para já, só impuseram o seu ponto de vista fascista nas padarias.

Mesmo em casa, pergunto-me se essa geração do Uber Eats, e do takeaway, se dá ao trabalho de fazer a sopa dos seus pais e avós – talvez ache que é uma coisa ultrapassada.

É como as contas sãs, a ética da pessoa de bem, o espírito de missão e outras obsolescências caídas em desuso – não desapareceram, apenas estão em stand-by.

O quê, o PS misturado com esta temática? Isso não será forçar a nota? Não, nem por sombras: ele também há a sopa turva, e dessa, realmente, ainda comemos todos os dias.

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