Sobrepressão (2/5)
Trabalhava numa empresa de investigação de causas e avaliação de danos de acidentes, quase sempre contratada por companhias de seguros. Diariamente, visitava locais afectados por incêndios, inundações, acidentes de trabalho graves, roubos. Falava com as vítimas – pessoas sem um braço, queimadas ou paralisadas –, com os colegas delas, com os patrões e com os familiares. Para todos eles, representava o inimigo. O indivíduo que, na sequência de uma infelicidade, vinha procurar formas de lhes recusar aquilo a que julgavam ter direito. Enfrentava essas situações com a mesma predisposição com que enfrentava o trânsito. Tinha uma tarefa a desempenhar e desempenhá-la-ia bem. Com cortesia e firmeza. Buscando factos. Recusando ser afectado por emoções. Este modo de conduta não tornava o processo indolor mas, no início da carreira, aprendera que estabelecer outro tipo de relação só dificultava o processo. Nem mesmo quando procurava levar as pessoas a dizerem-lhe o que provavelmente deveriam calar fingia amizade. Certas formas de actuação pareciam-lhe indignas. Pelo contrário, insistir, apontar contradições, ameaçar com as consequências de teimar numa mentira, esses constituíam procedimentos aceitáveis - e ele usava-os melhor do que ninguém.
Estava consciente de que era um trabalho de merda. Mas, nos cinquenta e dois anos que levava de vida, ganhara experiência suficiente para saber que quase todos são.
O chefe queria discutir o último relatório dele. Não porque tivesse erros (umas quantas acções de formação e pelo menos outros tantos livros sobre gestão de recursos humanos faziam o chefe começar todas as críticas com paliativos) mas porque desejava estar bem preparado ao apresentá-lo ao cliente. E porque achava que ele fora demasiado taxativo nas conclusões. «Estamos basicamente a chamar aldrabão ao sinistrado.»
«É o que ele é.»
O sinistrado era um empresário com três empresas do sector da cortiça, que andara a retirar material de uma delas antes da ocorrência de um incêndio. Não fora possível provar a natureza fraudulenta do incêndio mas ficara imediatamente óbvio que as quantidades de cortiça, de rolhas e até mesmo de equipamento (quão estúpido era preciso ser para retirar do local duas máquinas de escolha de rolhas e depois exigir que a seguradora as pagasse?) eram muito inferiores às reclamadas.
«Ele devia ser preso.»
«Talvez. Mas uma coisa é fornecer dados que permitam à seguradora decidir, outra é praticamente decidir por ela.»
«Ninguém está a decidir por ela. No relatório só se referem as inconsistências nas quantidades e as declarações de testemunhas que viram veículos levar cortiça das instalações no fim-de-semana anterior.»
Os olhos do chefe mostraram resignação por ter que lhe explicar novamente certas evidências. «É demasiado taxativo. Não deixa margem à seguradora…»
«E porque devia deixar? Há lá alguém com interesse em que o sinistro seja pago rapidamente, sem ondas?»
Nos olhos do chefe, a resignação passou a irritação.
«Sabes bem que não é isso. Fazê-los levar para tribunal um caso que lhes vai custar dinheiro e que acabarão por perder só vai levá-los a confiar menos em nós no futuro. E depois há as idas a tribunal que isto vai implicar. Não ganhamos dinheiro por ir a tribunal.»
Sentiu-se insultado, depois relaxou. Não valia a pena. «OK, amanhã trato disso.»
«Prometi entregar o relatório hoje.»
Levantou-se da cadeira. «Vai ter de adiar. Tenho pouco mais de três horas para fazer duzentos quilómetros – e comer qualquer coisa.»
«Dá tempo. Fazes as alterações em dez minutos.»
«Não num relatório desta importância, quando posso ter de ir a tribunal defender o que escrevi. Trato do assunto amanhã de manhã. »
Era sempre assim: resistia apenas para adiar o inevitável. Saiu, deixando o chefe a remoer o compromisso. Sara fê-lo parar. «Tens um minuto?»
Sara era a administrativa da empresa. Dava apoio ao chefe, aos três técnicos permanentes e a quaisquer outros contratados a recibo verde. Quarenta e poucos anos de idade, um metro e sessenta e cinco, divorciada, sem filhos. Uma dezena de quilos em excesso agrupados no tronco e nas ancas (a cara era surpreendentemente magra), cabelo pintado num tom de castanho que a embalagem juraria ser louro. Prolongava a última palavra de cada frase, fazendo tudo o que dizia soar a queixumes.
Dois anos antes, haviam tido uma relação. Em menos de um mês, estavam fartos um do outro. Sara descobrira nele os aspectos que ele sempre julgara estarem bem à vista (a intransigência, a falta de sociabilidade), ele surpreendera-se com quão desinteressante, carente e desorganizada ela era. A relação deixara um efeito de estranheza e ressentimento, que se manifestava sempre que a conversa se desviava do plano estritamente profissional.
«Não posso, estou atrasado. Tem que ser agora?»
Ela hesitou.
«Não, deixa estar. Conduz com cuidado.»
«Sempre. Até amanhã.»
Recolheu a pasta que deixara junto à secretária e saiu.
No final da tarde, ao regressar a casa, não resistiu e tentou de novo. O dia acabava tão cinzento como começara mas já não chovia. Nas três faixas da auto-estrada, o trânsito avançava cem metros de cada vez e depois parava repentinamente. Quando um miúdo num Focus com jantes pretas e ponteira de escape sobredimensionada fez uma diagonal da faixa da direita para a da esquerda, acabando dez ou quinze metros adiante do carro dele, parado na faixa do meio, fez o que fizera de manhã: olhou para o pneu traseiro direito do outro automóvel e desejou que rebentasse. Nada aconteceu. Verificou que a sua faixa continuava parada e tentou novamente, obtendo o mesmo resultado. Sentiu-se ridículo e zangado. Quando a faixa central avançou, o rapaz no Focus saltou para ela e, depois de ultrapassar um monovolume, regressou à da esquerda. Ele resistiu à vontade de fazer uma terceira tentativa e conduziu até casa com a raiva borbulhando-lhe na garganta.
(Continua amanhã...)