Sobre o orifício bónus
Não vale a pena inventar um nome fictício.
Refiro-me a uma senhora, quase vizinha, dona de um dos mais coloridos enxovais de palavras com que a Divina Providência prendou esta pequena povoação onde nasci e vivo, e que, desde tenra idade, sempre conseguiu alegrar todos os que a escutam. Quer dizer, nem todos, porque quando se vira do avesso, abrem-se-lhe as goelas três oitavas acima do habitual (sendo já o “habitual” tudo menos discreto) deixando toda a comunidade a lamentar a falta de sorte do visado.
Órfã desde tenra idade, cresceu com uma tia, duas portas ao lado da tasca onde se encontravam os piores beberrões das redondezas. A falta de instrução primária nunca lhe tolheu a veia jogral, no sentido poético do termo. Foi sempre muito boa a memorizar palavras difíceis e invulgares, assim como a conseguir usá-las no momento certo, com conta peso e medida, que é como quem diz, nunca gastou uma manilha para cortar palha.
De zero a cem, a sua amplitude lexical começa logo ali ao pé da porta, onde desde nova se tornou na figura mais popular da tasca, subindo até aos píncaros que lhe permitiam ter cordiais conversas com catequistas, beatas e até com o Senhor Prior.
Lembrei-me dela, quando li sobre uma qualquer agremiação que sugeriu o recurso à expressão “orifício bónus” como alternativa à palavra “vagina” e tudo isto para não ofender homens trans e pessoas não binárias. Correndo o risco de tomar opinião, confesso a dificuldade em desvalorizar o alcance de quem decide chamar “bónus” a uma vagina. Confesso até a surpresa pela incapacidade metafórica de quem se diz preocupado com as sensibilidades trans e não binária, e que acaba por associar algo de positivo, de recompensa ou até de, cruzes canhoto, prémio, ao que na imemorial conversa sobre uma “foot massage” à belíssima esposa de Marsellus Wallace é descrito como o “santos dos santos”.
Ora se o prémio do seguro automóvel varia de acordo com o sistema bónus-malus, em que o bónus equivale a uma descida do valor a pagar, e o malus a um agravamento como punição pelos sinistros causados, está ou não o bónus associado a algo que é tudo menos neutro? Muito sinceramente, esta agremiação sofre de homofobia estrutural e galopante, hétero-patriarcal e neo-libertário-carbónico-positiva. No mínimo.
E é aqui que as sólidas valias hermenêuticas da minha quase vizinha podem ser válidas.
Um dia, um amigo meu deu por ela no meio da rua principal a relatar detalhadamente, com ar sério, alto e bom som e para quem quisesse ouvir, um exame que lhe tinham feito em Coimbra. Este meu amigo já não se lembra da maleita que motivou tal procedimento, mas o trecho que entrou para a memória colectiva da terra foi qualquer coisa assim:
- “E depois meteram-me o aparelho, uma coisa de ferro assim deste tamanho, na boca do corpo. E não te estejas a rir, ó sacana, que já não és nenhum garoto. Querias que eu dissesse outra coisa, mas eu aqui ao lado da Igreja não digo palavras porcas. Vai bardamerda."
Fica a sugestão. A boca do corpo.