Sobre o manifesto (8)
Tem sido gabado o mérito das propostas do chamado manifesto dos 70 no plano económico-financeiro ou da cidadania, por vezes com frases que surpreendem pela grandiloquência: chega a haver quem ache que este documento constitui a prova viva de que estamos "condenados à liberdade".
Mas será assim?
Entendamo-nos: nada do que nele vem expresso, no plano económico, é original. Pouco se concretiza -- e, desse pouco, quase nada depende dos decisores nacionais. O Economista Português destaca a "fraqueza das propostas construtivas" do manifesto. Exemplo: "O texto sobre a competitividade é um selecto acervo de lugares-comuns desprovidos de operacionalidade". Enquanto o insuspeito Jorge Bateira, no jornal i, considera a que a proposta dos signatários "assenta em dois pilares muito frágeis: a viabilidade política da renegociação das dívidas na União Europeia e a capacidade de crescimento da economia portuguesa com os instrumentos de política de uma região autónoma, sob tutela do Tratado Orçamental".
Mais: "Como é que é possível que este manifesto escamoteie totalmente todos os custos associados a uma reestruturação da dívida, apresentando-lhe apenas os benefícios? Como é possível fazer escolhas informadas só com a metade boa da informação?" Interrogações de Pedro Braz Teixeira (também em artigo no jornal i), cuja perplexidade partilho.
Facto inegável: o manifesto passa praticamente ao lado do problema fulcral da economia portuguesa, que é o crescimento. E de outro, que se tornou iniludível e em grande parte se relaciona com o primeiro: a necessidade de conter a espiral da despesa pública. Nos últimos cem anos, a nossa década de menor crescimento foi precisamente a primeira do século XXI, quando continuávamos a receber fundos estruturais no âmbito do quadro comunitário de apoio.
Isto significa que o mal já vem de longe e não pode ser solucionado, no todo ou em parte, com as receitas que nos trouxeram aqui. Receitas que nos conduzem não aos três D de 1974 mas aos três D de 2014: despesa, dívida e défice.
De qualquer modo, o manifesto é relevante do ponto de vista político. Não por trazer a assinatura de algumas personalidades de direita, aliás quase todas comprometidas com as políticas que conduziram Portugal à presente situação, mas por incluir personalidades de grande peso político situadas à esquerda do PS. Com destaque para Francisco Louçã e Fernando Rosas, que descolam das habituais posições de trincheira dessa área política para um singular aggiornamento, indiciando estar enfim algo a mover-se na esquerda portuguesa rumo a soluções governativas de futuro. Sem necessidade sequer do recém-nascido partido Livre para desempenhar essa missão.
Isto mesmo foi intuído por Francisco Assis, com notável sentido premonitório, no seu texto de ontem no Público.
"O que é estranho não é a assinatura desses homens e dessas mulheres oriundos da direita -- é, pelo contrário, a adesão de um dirigente histórico do Bloco de Esquerda [Louçã]. Esse acontecimento tem um grande significado. É possível uma política diferente", escreve o cabeça de lista do PS às eleições europeias.
Degelo à vista na esquerda, pondo fim a um dos principais bloqueios da política portuguesa? Se o manifesto servir para isto, já terá utilidade. O resto é sobretudo folclore político-mediático, algo em que manifestamente o País não sofre de qualquer défice.