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Delito de Opinião

Sobre o expansionismo russo e a defesa europeia: a importância de saber pensar

Recordando uma excelente reflexão de José Cutileiro em Julho de 2007

Pedro Correia, 19.02.25

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Há artigos que, relidos à distância, nos confirmam a enorme capacidade dos seus autores de verem para além da espuma dos dias, antecipando tendências e captando sabiamente os sinais dos tempos.

É o caso deste que trago hoje, publicado na edição de 21 de Julho de 2007 do Expresso pelo embaixador José Cutileiro. Sobre a atribulada relação entre a União Europeia e a Rússia pós-soviética que tem o seu símbolo máximo em Vladimir Putin.

Exceptuando mudanças mínimas, poderia ter sido escrito hoje.

Acabo de recuperá-lo dos meus arquivos: parece-me tão luminoso e revelador que não resisto a partilhá-lo convosco. Sublinhando que esta excelente reflexão surgiu antes da anexação de partes da Geórgia por ordem do Kremlin e muito antes do assalto russo à Crimeia e ao Donbass - e cerca de década e meia antes da trágica invasão em larga escala do território ucraniano pelos blindados de Moscovo.

«Uma vela a São Putin». Transcrevo-o nos parágrafos seguintes com merecida vénia à memória de José Cutileiro (1934-2020). Quando ele partiu, deixou-nos mais pobres. Bem precisávamos da sua lucidez e da sua esclarecida opinião agora.

 

Nenhum país da União Europeia é uma grande potência. Quando os europeus eram fortes não se juntavam uns aos outros, guerreavam-se uns aos outros - e metiam-se a conquistar impérios e dominar o mundo. Hoje já não há impérios e é a União que faz a força. Força de fracos que têm se se juntar? Talvez, mas é a que há - e é preciso reforçá-la, pese aos patriotas à antiga.

Vem isto a propósito da Rússia de Putin. Passado o primeiro bafo de liberdade, o fim da União Soviética foi sentido em Moscovo como a derrocada de um império. Exacerbou a insegurança histórica do nacionalismo russo, que imagina sempre à sua volta perigos e ofensas que não existem e só sabe defender-se atacando. A nostalgia de Estaline foi crescendo: com mudança de letra - feita pelo autor dos versos originais - Putin mandou repor o hino nacional do tempo da ditadura. Entretanto, em meia dúzia de anos, o preço do petróleo subiu de $17 para $75 o barril. A Rússia vem logo atrás da Arábia Saudita na quantidade de petróleo extraído e tem no seu subsolo as maiores reservas de gás do mundo. Empoleirados nesta riqueza, Putin e a sua gente afirmam-se por maus modos contra um Ocidente que, acham eles, lhes quer mal e os humilhou ou ignorou nos anos de Gorbachev e Ieltsin.

Moscovo provoca, ameaça e tenta dividir. Ele é a carne polaca, o monumento aos soldados russos da Estónia, o projecto de defesa antimíssil que associa Estados Unidos, Polónia e República Checa, a independência do Kosovo, a recusa de extraditar o suspeito de assassinato por terrorismo nuclear de um dissidente em Londres. Ele é o esforço permanente de desunir os ocidentais em negócios de energia - importante porque a Europa vai buscar à Rússia um quarto do gás de que precisa. Ele é o orçamento militar, com o nuclear à frente, que cresceu seis vezes desde 2001. A mortalidade e a morbilidade russas, piores do que as de qualquer outro país não-africano, aumentam o alarme por denunciarem a fragilidade subjacente ao novo estado policial que se instala. 

O lado bom de tudo isto é que, perante a Rússia de Putin, a solidariedade europeia, ainda titubeante, começou a afirmar-se. O incómodo político-militar que se perfila a Leste junta-se ao fundamentalismo islâmico e à concorrência económica dos novos mundos para assustar saudavelmente os europeus.

Paul-Henri Spaak, combatente das lutas heróicas contra o nazismo e o comunismo, escreveu em 1969: «Nos últimos vinte anos vários homens de Estado europeus foram chamados pais da Europa ou pais da Aliança Atlântica. Nenhum deles merece o título. Este pertence a Estaline. Sem Estaline, sem a sua política agressiva, sem a ameaça que fez pairar sobre o mundo livre, a Aliança Atlântica nunca teria nascido e o movimento por uma Europa unida, englobando a Alemanha, jamais teria conhecido o seu espantoso sucesso.»

A Rússia não é evidentemente a União Soviética mas tal, como ela, poderá levar ao reforço da construção europeia.

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