Simplex paraláxico
Vital Moreira conta uma história de abusozinho de um serviço público, semelhante a inúmeras outras que se passam todos os dias, e a historieta tem, para quem conheça razoavelmente o país em que vive, o selo da autenticidade.
Infelizmente, não percebeu bem o problema e caracteristicamente sugere uma solução que o não é. E como a personagem tem audiência nos círculos do Poder (ainda ontem no Princípio da Incerteza Alexandra Leitão reproduzia quase palavra por palavra a argumentação jurídico/burocrática, impecável no seu formalismo e estúpida na sua substância, deste prestigiado constitucionalista, para isentar a Câmara de Setúbal no escândalo da russofilia – um assunto de que não me vou ocupar aqui) o que escreve tem consequências.
O caso começa por a GNR reter abusivamente um documento. Abusivamente porque reter um documento por causa da falta de outro é um expediente do bully que a autoridade não deveria ser. Ou o procedimento está legalmente previsto e deve ser alterado; ou não está e o agente, ou quem o comanda, deve ser imbuído da convicção de não estarmos no Texas, através da competente sanção disciplinar. Vital, porém, este passo achou bem.
Continua com o cordato cidadão a produzir presencialmente o documento em falta mas nem assim lhe devolverem o outro, sob um pretexto capcioso. Não achou bem mas em vez de pedir para falar com o chefe do serviço e expor-lhe a situação (o homem reconhecê-lo-ia e isso seria provavelmente suficiente), que seria o expediente tuga na versão desenrascada, ou fazer um barulho dos demónios e cobrir a funcionária de sarcasmos, que seria o expediente da versão cidadão insolente, desestimada pelos costumes, foi fazer uma procuração – grande trabalheira.
A procuração dava-lhe plenos poderes mas não há maior poder do que o do funcionário atrás do seu balcão – uma realidade com a qual se esfrega quotidianamente o cidadão comum mas que jamais penetrou os espessos muros da Academia, pelo menos em Coimbra. O funcionário tem dentro de si, o mais das vezes, um pequeno ditador, não por ser diferente das outras pessoas mas por ser igual, sendo as excepções raras. De modo que Vital foi de requitó fazer um requerimento, regressou, lá resolveu o problema, e vem queixar-se e propor soluções.
Que soluções? Uma só, o Simplex, que infelizmente chegou a muitos lados mas não ao IMT de Coimbra, um esquecimento imperdoável. Noutros lugares e com outros documentos (o cartão de cidadão e o passaporte, refere expressamente Vital) é trigo limpo farinha Amparo: é tudo fácil e rápido. Chega a ser ternurenta esta fé, não se desse o caso de as redes sociais, que Moreira não frequenta, estarem inçadas de histórias de desesperos com os serviços, via internet: se aqueles não responderem, não esclarecerem, nem teimosamente deixarem de insistir numa nebulosa de procedimentos abusivos, atropelos e blackouts, o cidadão e o contribuinte não podem escaqueirar a tromba dos responsáveis como seria, senão desejável, ao menos compreensível, nem podem falar com o chefe, nem com o funcionário amigo de um amigo que dá um jeitinho, mas podem partir o telemóvel da penúltima geração, ou o computador da antepenúltima, com efeitos ademais benéficos na diminuição dos níveis de tensão arterial momentaneamente alterados.
O Simplex é, e sempre foi, um equívoco, porque não simplifica significativamente o funcionamento do Estado, nem altera o seu modelo de relacionamento com o cidadão, nem diminui custos para este: apenas desmaterializa por vezes papéis e poupa deslocações, que está por demonstrar valham mais do que a multiplicação de procedimentos e taxas, além de anonimizar uma relação que, por passar a ser impessoal, abre a porta a toda a casta de abusos insindicáveis. Não prevê sanções para atropelos e descasos, confiando em que o aparelho disciplinar que existe é amplamente suficiente. Mas não é, nem nunca foi: que vai acontecer a esta funcionária, ou a quem nela superintende no caso de estar realmente a cumprir ordens? Nada.
O bom do Vital acha que colocando esta idiota atrás de um computador sucedem três coisas: produz mais e recebe dois kilobytes de sensatez e pelo menos um de eficiência.
Isto ele acha e também que com o PS o país não será ultrapassado pela Roménia. Confere.