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Delito de Opinião

Sete de uma vez!

Maria Dulce Fernandes, 18.05.22

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A noite exalava calor, maresia e compostura orgânica, dos gatos que a Madame Louca rebentava contra a parede da quinta, mal farejava uma nova ninhada, indiferente a insultos e ameças de quem a achava uma pessoa odiosa e desumana. 

Meio vestida, meio despida, vagueava eu pela casa quente sozinha, indolente e entediada. Até os livros emanavam um calor salobro e enjoativo. 

Os meus pais tinham ido ver uma revista ao Maria Vitória. Os rapazes tinham saído, um com os amigos, o outro para jogar à bola na rua com a miudagem do costume. Ouviam-se da varanda "Chuta! Passa! Coxo! Mãos de Manteiga! Corre! Golo!"

Recostei-me no abrasador sofá de pele e deixei-me levar pela lassidão que o tédio arrasta. Dormitava.

Acordei com o grito rouco da campainha da porta. Corri ao intercomunicador e uma voz infantil e assustada gritava: "Vem rápido que o filho da Jorgete vai matar o teu irmão." O quê? Vem ajudá-lo depressa, que ele está escondido debaixo da furgoneta do pitrolino."

Enfiei um vestido ou um casaco e uns chinelos, desço a escada a correr e saio do prédio como se estivesse com a vida em  atraso.  

A rua estava inteirinha à janela. À volta da furgoneta do pitrolino estavam duas ou três velhotas e o Carlos Calmeirão com uma marreta numa das manápulas e uma bola debaixo do braço. "Malandro, partiste-me duas pernadas ao limoeiro! Levas uma sova. Não passa de hoje!"

"Deixa os miúdos, Carlos, tem juízo, são crianças!", gritavam as vizinhas. "Esta já não a vêem mais", dizia o  homenzarrão ufano, mostrando a bola nova que o miúdo ganhara de presente de Natal. "Sai daí, malandro! Vais apanhar nem que eu fique aqui  a noite toda."

Tremiam-me as pernas como se a temperatura, por magia, se tivesse tornado glacial. Respirei fundo. Ouvi algo estranho, um som abafado meio gutural, como se saído das entranhas da terra. "Posso saber o que se passa aqui?" Falei, acho que fui eu quem falou aquilo, porque o Carlos Calmeirão olhou para mim irritado e disse: "Este patife hoje vai apanhar. Vá para casa, isto não é coisa para as mulheres se meterem."

Não sei bem o que me deu. Ainda hoje estou para saber como consegui empurrar o Calmeirão e dizer ao meu irmão para sair debaixo da furgoneta. "Ele bate-me, mana!" "Não bate, que eu não deixo." "Ai não? Vamos lá ver se não lhe bato." "Então toque-lhe só que eu quero ver. Vá, toque-lhe lá, que vai ver o que lhe acontece."

O miúdo saiu do esconderijo a tremer e ficou atrás de mim. "Dê-me a bola se faz favor. Não é sua!"

Já com a bola na mão agarrei o meu irmão por um braço e levei-o para casa. Tremia tanto, mas tanto que nem sei como subi as escadas sem me ir abaixo das pernas, mas creio, ou tenho mesmo a certeza, que fiz o último patamar a gatinhar. Se o Carlos Calmeirão lhe batesse eu fazia o quê? Nada! O que podia eu contra um tipo que fazia dois de mim? Não sei como, nunca saberei, mas funcionou!

A verdade é que durante todo o tempo que morei com os meus pais até casar, o Carlos Calmeirão baixava os olhos sempre que passava por mim.

Lembrei-me deste episódio das minhas recordações mais delirantes quando lia à minha neta a história do Alfaiate Valente: "Matei sete duma vez!" Senti-me Indómita, indomável, inevitável... mesmo que se tivesse tratado apenas de moscas como as que me zurziam na garganta, me derretiam as pernas e me empurravam na direcção daquele adamastor.

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