Servir gato por lebre em defesa do indefensável
A pretexto da guerra na Ucrânia, a televisão pública insiste em convidar como suposto especialista em assuntos militares o major-general Raul Cunha. Que aproveita para falar de política, reforçando em muitos dos que o ouvem a convicção de que estamos perante um simpatizante de Moscovo.
Convocado novamente pela RTP3, o que declarou ele no serão de 30 de Abril?
Coisas como esta, referindo-se ao Batalhão Azov, agora integrado na Guarda Nacional ucraniana: «Há ali gente que cometeu crimes graves.» E esta: «Como os militares ucranianos não se renderam, terá ali havido um grande desbaste.» E ainda esta: «Os russos estão a procurar atingir sobretudo grandes concentrações de tropas, postos de comando e depósitos logísticos ucranianos.» Sem esquecer esta: «As forças que libertaram Mariúpol estão agora a progredir em direcção a Zaporíjia.»
Segundo este major-general, portanto, as forças ucranianas «cometem crimes» no seu próprio país – não se tendo escutado dele a menor alusão a crimes russos. Na sua versão, Putin apenas visa alvos com relevância bélica no país invadido, não escolas, hospitais, teatros, igrejas, lojas e habitações: tudo quanto temos visto relatado por repórteres no terreno deve ser ilusão de óptica. Além disso, coisa espantosa, Mariúpol – arrasada em 90% pela artilharia invasora – foi «libertada», não destruída. Cereja em cima do bolo: militares ucranianos mortos por tropa de Moscovo são mero «desbaste». Como quem corta relva no jardim.
Frases que causam náuseas. Sendo emitidas num canal público, pago por nós, a sensação de repugnância aumenta. E redobra por virem de alguém que a 25 de Fevereiro, no mesmo canal, justificava assim a criminosa acção de guerra: «Quando o puseram num beco sem saída, o que é que ele [Putin] fazia a seguir? Tinha de atacar a Ucrânia, obviamente.»
Há um evidente contraste entre este patético apego à causa russa e a análise serena, esclarecida e bem informada de um comentador assíduo noutro canal: refiro-me a Miguel Monjardino, especialista da SIC em temas internacionais.
«Uma brigada mecanizada precisa de cem mil litros de combustível a cada 48 horas. A grande dificuldade russa é o apoio logístico à sua ofensiva e o atrito a que estas forças estão a ser submetidas. A Ucrânia vai ter de ceder território nesta fase perante as barragens de artilharia russas, mas o que será decisivo no futuro é o número de soldados russos que estão a morrer diariamente e o impacto que esse atrito tem no potencial ofensivo das unidades russas», dizia neste domingo.
Com ele aprendemos sempre alguma coisa. E também com as reportagens nunca destituídas de enquadramento ético nem despidas do factor humano feitas por jornalistas como Susana André ou Nuno Pereira, também na SIC. Não admira que o Jornal da Noite desta estação tenha sido em Abril o bloco informativo mais visto dos canais portugueses. Os telespectadores podem nunca ter ido à Ucrânia, mas sabem distinguir quem lhes serve gato por lebre e repudiam quem se presta a defender o indefensável.
Texto publicado no semanário Novo.