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Delito de Opinião

Será a liberdade que irá vencer?

Paulo Sousa, 01.12.21

Há alguns anos, num alfarrabista, tropecei neste “breviário de cultura”, o décimo quarto da coleção da escritora Gabrielle Froment-Meurice, dedicado à Vida Soviética e publicado no nosso país em 1976.

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A palavra “breviário” só a associava aos livros de orações diárias e por isso, por aparecer ali ao lado da foice e do matelo, despertou-me uma atenção especial.

A autora começa por descrever a grandeza do território da URSS. Para sobrevoar os seus 60.000 km de fronteiras seriam necessários três dias e três noite de voo num Tupolev 800 km/h. O clima é “sadio e tónico”, acrescentado que “os Russos veem nisso o segredo da sua robustez proverbial (“Aí onde um alemão morreria três vezes, o Russo nem sequer adoece”). O “a” minúsculo reservado para o gentílico da Alemanha é substituído por um decidido “R” maiúsculo para o congénere russo, o que também faz parte da mensagem.

Sobre os meios de transporte anotei duas passagens. “Contrariamente ao que se passa nos EUA, a aviação privada não existe na URSS” e ainda “As vias-férreas têm o afastamento de 1,52m (na Europa 1,44m) o que permite comboios mais pesados, mas reduz a velocidade.”

Sobre a população é referido que “o regime soviético procura reunir em torno de um ideal colectivo e de um trabalho comum conducente à homogeneidade social de grupos humanos pouco homogéneos por todas as suas características”. Esta passagem poderia alimentar uma extensa dissertação para quem estivesse interessado em desenvolver a temática do identitarísmo, o que não é o meu caso, mas não deixa de ser interessante.

No que respeita à urbanização o optimismo está sempre presente. É apontado o exemplo de Katchkanar no norte dos Urais “onde há dez anos se arroteava taiga, ergue-se hoje uma cidade de 35 000 habitantes, prevendo-se que dentro de poucos anos tenha 100 000. (ver link)” E continua dizendo que “Estas novas cidades não se criam por acaso, mas são inscritas no Plano.”

Depois de descrito o maior país do mundo, o assunto passa a ser o socialismo. No seu primeiro ponto “Fins e resultados” replica-se a sinopse da contra-capa.

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Não pretendo trazer para aqui todo o livro, que ainda apresenta uma extensa lista de estatísticas onde se incluem máquinas de costura produzidas, frigoríficos, aspiradores, rádios reparados e pares de calçado consertados, mas retenho um excerto da conclusão: “Ainda se está longe de resultados que satisfaçam uma sociedade à qual é cada vez mais difícil impor sacrifícios.”

Em 1976, este tipo de literatura podia condicionar escolhas políticas, era aliás esse o seu objectivo. Tal e qual como acontece em algumas religiões, o comunismo pratica um proselitismo quase agressivo e publicações como esta faziam parte do esforço de propaganda do país e do regime que aspirava a “mostrar o caminho para todo o Universo”.

Simultaneamente decorria a chamada corrida espacial que, se não servisse para mais nada, pelo menos servia para mostrar ao mundo a capacidade científica e tecnológica da URSS.

Pouco se sabia relativamente ao dia-a-dia efectivo do povo soviético. Era difícil confirmar a informação que chegava ao ocidente e os vazios que daí resultavam eram preenchidos pela imaginação dos apoiantes assim como dos opositores. O que se passou em Budapeste, e mais tarde em Praga, bastou para afastar alguns defensores do comunismo, mas nunca faltou quem continuasse a acreditar nos amanhãs que cantam.

Dúvidas relativas às falhas do capitalismo assim como das democracias liberais, eram alimentadas pela propaganda que garantia as vantagens da previsibilidade do Plano. Qual seria o desenlace deste confronto? Venceria o rigor do socialismo científico ou, pelo contrário, seria o caótico sistema liberal a perdurar no tempo? Quais os resultados da justaposição de uma infinidade de escolhas ditadas pelo livre arbítrio dos indivíduos e das empresas em concorrência, quando confrontados com o rigor da economia planificada?

O que aconteceu no virar da década de 80 para 90 já sabemos, mas enquanto que agora quando ouvimos tanta balela podemos esboçar um sorriso condescendente, nos anos 70 e 80 as dúvidas sobre a comparação dos dois modelos eram reais e o cenário de um possível holocausto nuclear era tudo menos animador.

No entanto, o confronto entre o sistema liberal e o autoritarismo socialista está longe de estar resolvido.

O que temos visto acontecer na China nas últimas duas décadas pode alimentar dúvidas similares. Que hipóteses têm os países democráticos, por muita criatividade e capacidade científica que tenham, perante um colosso industrial e económico dirigido a uma só voz, com uma visão de longo prazo, que não perde tempo na contagem de votos nem receia levar a cabo reformas repentinas? A URSS caiu devido às suas debilidades económicas, dirão alguns, mas o modelo chinês, além de parecer ter encontrado forma de que isso não lhe aconteça, lidera algumas áreas do conhecimento e da tecnologia e ousa desafiar a hegemonia dos EUA, e consegue-o mesmo sem ter um único aliado.

Encontram-se explicações para todos os gostos. Para uns o segredo estará na respectiva matriz cultural confucionista, que define a lealdade do indivíduo, para com os seus próximos e para com o seu governante, como uma das grandes virtudes humanas. Por oposição, a matriz judaico-cristã, da qual emana a essência cultural do ocidente, dá uma importância muito superior ao indivíduo. Numa conversa de café pouco preocupada com o rigor da terminologia, isto podia ser resumido como se os chineses e outros povos orientais vivessem numa lógica de formigueiro, em que os indivíduos não hesitam sem se sacrificar pela comunidade, o que nunca seria tão linear no mundo individualista do ocidente.

Os defensores da  China argumentam que o Império do Meio já foi na antiguidade, e durante muitos séculos, o país com a maior economia e o mais poderoso do mundo, estando agora apenas a regressar ao estatuto que já teve, e de caminho aproveita para acertar contas das humilhações sofridas nos séc. XIX e XX.

Quem se identifica com este regime autoritário explica que o perverso sistema dos créditos sociais é muito querido entre os cidadãos chineses, e que apesar de até obrigar à leitura diária de algumas passagens do pensamento do Sr. Xi Jinping, é uma excelente medida para que todos se motivem a fazer parte do que descreveu num artigo de opinião no Diário de Notícias como sendo a Comunidade de Destino Comum da Humanidade.

Os que não aplaudem este Grande Irmão Orwelliano não têm sequer oportunidade de se manifestar, sendo-lhes reservado assim o papel das formiguinhas sacrificadas pelo bem da comunidade.

Será a dimensão da economia chinesa e a sua capacidade científica e tecnológica o seguro de vida deste regime autoritário? Até que ponto o seu sucesso constitui uma ameaça para os regimes liberais?

Jaime Nogueira Pinto, num dos excelentes podcasts em que participa, Radicais Livres e Conversas à Quinta, referindo-se ao fim da URSS, acrescenta um ponto que merece ser destacado. Segundo ele, mesmo com a baixa de preço do petróleo orquestrada pelos EUA e pelos sauditas nos anos 80, que conseguiu abalar irremediavelmente as finanças soviéticas, o que realmente desencadeou o seu colapso foi o fim do medo. A abertura do sistema iniciada pela Glasnost e seguida pela Perestroika levou ao fim do medo e, esse sim, era o cimento do regime.

A mais alta nomenclatura do PC Chinês sabe isso e não abre a mão do controlo férreo sobre os eventuais dissidentes. Alguns alertas sobre a solidez da economia do Sr. Xi Jinping mostram que o capitalismo de estado não está livre de erros nem das respectivas correcções, e correcções significam sempre crises. Mas, como disse acima, os donos da China sabem que mais importante que do manter o crescimento económico a um ritmo regular, o que precisam mesmo é de mostrar aos espíritos rebeldes, àqueles que aspiram a uma “liberdade” diferente, que se não seguirem ordeiramente dentro dos curros colocados pelo PCC, então têm tudo a perder. Os casos do desaparecimento temporário do empresário Jack Ma, ou mais recentemente da tenista Peng Shuai, são bem exemplificativos da forma como o regime chinês lida com quem internamente o afronte ou pense estar fora da sua alçada.

Não podemos esquecer também a forma como a minoria uígure é tratada. Apesar das poucas informações que conseguem cruzar a fronteira, o que sabemos é suficiente para a podermos designar como sendo o Gulag comunista do sec. XXI.

Tudo isto para enquadrar a questão que dá título ao postal. Do confronto entre os regimes liberais e o comunismo soviético, já sabemos o resultado. Qual será então o desenlace da competição estratégica em curso? Estará o mundo livre condenado a recuar naquilo que o define e, pouco a pouco, a aceitar o escrutínio de pensamentos idêntico ao do regime do Sr. Xi Jinping, ou poderão de facto todos os seres humanos aspirar a decidir sobre as suas vidas, a exprimir-se livremente e até a criticar os seus líderes se assim o entenderem?

Passarão muitos anos até que esta questão possa ser respondida, talvez tantos que muitos de nós não assistirão a esse dia. O trajecto até lá não será rectilíneo, mas não duvido que a aspiração pela liberdade é algo partilhado por todos os seres humanos, onde os chineses estão obviamente incluídos. Por isso, o comunismo voltará a ser derrotado.

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