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Delito de Opinião

"Ser imparcial não é humano"

Pedro Correia, 24.02.18

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 Claire Foy como Isabel II em The Crown

 

Terminei ontem de ver a primeira temporada de The Crown [A Coroa] - razão bastante, suficiente e mais que justificada para ter aderido à plataforma Netflix, produtora e distribuidora em exclusivo desta série britânica, que me dizem ter sido a mais dispendiosa da história da televisão.

Valeu a pena o investimento. Sem a menor concessão ao figurino do entretenimento industrial, The Crown é um tratado sobre as emoções humanas submetidas à razão política no singular quadro constitucional do Reino Unido. A figura central - de estrutura piscológica muito mais densa do que as frívolas "revistas do coração" permitiriam alguma vez entrever - é Isabel II, já com o mais extenso reinado de que há registo histórico. Ascendeu ao trono por morte inesperada do pai, em Fevereiro de 1952: tinha só 25 anos e súbditos em todas as parcelas do planeta - resquício moderno do antigo império inglês, que no início do século XX era ainda o mais poderoso à escala mundial.

 

Nascida numa nação impregnada de moralidade vitoriana que permaneceu como baluarte de resistência simultânea às hordas nazis e ao dominó das "revoluções socialistas" que varreram o século, Isabel II tornou-se num paradoxo vivo, seduzindo artistas tão diversos como Andy Warhol ou Lucian Freud, fotógrafos como Cecil Beaton ou Annie Leibovitz, guionistas, realizadores, músicos e uma plêiade de ensaistas políticos.

Percebe-se o fascínio por esta figura distante mas familiar, sem reprodução possível noutros ordenamentos constitucionais, funcionando como um elo permanente entre as raízes da monarquia milenar que corporiza e a sociedade multiforme em que crescem os seus bisnetos, mantendo uma imbatível popularidade no país que se foi agitando ao ritmo dos Beatles, dos Smiths e dos Sex Pistols.

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The Crown (2016) mostra-nos esta Rainha ainda jovem e de passo incerto, nascida para desfrutar uma tranquila existência entre cães e cavalos na aristocracia rural inglesa, e que acabou conduzida pelos caprichos da História à solidão do "mais horroroso palácio britânico", o de Buckingham, transportando o peso simbólico da Coroa legada pelo seus ancestrais desde o normando Guilherme, o Conquistador, no século XI.

Permanecer nesta ambígua coexistência entre tradição e modernidade foi desde o início o seu lema. E também o seu maior dilema, que ela soube solucionar de forma irrepreensível no complexo convívio com treze chefes de Governo - nove conservadores e quatro trabalhistas, onze homens e duas mulheres, de Winston Churchill a Theresa May.

 

O quarto episódio traz-nos um extraordinário diálogo entre a jovem monarca e a sua avó paterna, que sobrevivera não apenas ao marido, Jorge V, mas ao filho segundo, que jamais sonhara ser Rei.

A tímida Isabel II (notável desempenho da belíssima actriz Claire Foy), num raro momento propício a confidências, sente-se compreeensivelmente abalada pelo recente falecimento do pai, Jorge VI, e ainda assombrada pela abdicação do tio, Eduardo VIII, que em 1936 provocara um abalo sísmico na monarquia ao optar por uma paixão mundana em desfavor do trono. E mostra-se perplexa pela sua insólita posição institucional: cabe-lhe simbolicamente decidir sobre tudo sem afinal se pronunciar sobre coisa alguma.

 

«Não me parece certo, um Chefe do Estado não decidir sobre nada.»

«É o mais certo», diz-lhe a Rainha Maria, sua avó.

«É? Mas não fazer nada é não trabalhar...»

«Não fazer nada é o trabalho mais difícil de todos. E consome toda a tua energia. Ser imparcial não é natural, não é humano.»

 

Este diálogo ajuda-nos a compreender como The Crown é muito mais do que uma simples série televisiva: é uma exemplar coreografia do realismo político, aqui elevado a um patamar artístico. Como senha de identidade não apenas de uma soberana ou de um regime, mas também de um povo que conseguiu enfrentar adversidades inomináveis e soube perdurar para além de todas as contingências históricas.

5 comentários

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    Pedro Correia 24.02.2018

    Só hoje comecei a ver a segunda temporada. Gosto deste ritmo lento da série, iniciada cronologicamente em 1947 (embora com episódicas incursões anteriores) e que onze episódios depois vai em 1956, durante o breve Executivo Eden, em plena crise do Suez.
    Como sempre, leio o menos possível sobre as séries e os filmes para não desperdiçar o potencial efeito-surpresa. Só li alguma coisa sobre a primeira temporada depois de a ter visto na íntegra. Fiquei a saber, por exemplo, que Isabel II também já a viu - por insistência do filho mais novo, o príncipe Eduardo - e terá gostado.
    Não me custa acreditar. Desde logo porque está fisicamente muito favorecida ao ser interpretada pela bela Claire Foy.
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    João Pedro Pimenta 24.02.2018

    Essa segunda série interessava-me particularmente, mas não tenho Netflix. A Gostava de ver retratada a crise do Suez, que teve consequências abismais no Reino Unido e no Império Britânico - o último grande fôlego das potências europeias no espaço "colonial", a guinada da política internacional britânica ao lado dos EUA e a aceleração da construção europeia. Até porque gostava de ver as reacções da Rainha a esse anunciado fim do império.
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    V. 25.02.2018

    A perspectiva da série é sempre dada através do plano familiar (e particularmente o lado conjugal é explorado numa série de círculos concêntricos que começam no casal Elizabete/Filipe, a relação de Margaret com o fotógrafo — com quem chegou a casar, creio? —, o matrimónio falhado do PM que é transposto para o nº10, etc, etc. Há uma série de paralelos em que os factos históricos e políticos acabam por sumir-se no lado emocional que provocam no teatro caseiro. Isto para dizer que nesta série os factos políticos são quase acidentais e não me parece que sejam muito dissecados nas suas repercussões históricas.
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    Pedro Correia 25.02.2018

    Não vejo as coisas desse prisma. Vejo, isso sim, como as questões pessoais podem suscitar crises constitucionais. Foi o que aconteceu com a abdicação, em 1936: décadas depois, ainda assombrava a instituição monárquica e os agentes políticos em geral.
    Ou a aparente senilidade de Churchill no seu segundo mandato em Downing Street. Ou a dependência de Eden de drogas no auge da crise do Suez. Ou as infidelidades da mulher de Macmillan, bem conhecidas da sociedade londrina.
    Esta série mostra-nos que existe uma dimensão pessoal nunca negligenciável dos fenómenos políticos - algo que não está previsto nas cartilhas deterministas, nomeadamente no darwinismo ou sobretudo no marxismo, que descreve a história política em função dos choques entre classes sociais impostos pelas condições económicas.
    O ser humano é, no entanto, muito mais do que um 'homo economicus'. Aqui, de algum modo, aprendemos isso também.
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