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Delito de Opinião

"Se for preciso corte metade"

Pedro Correia, 06.07.16

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Nuno Rocha (1933-2016) 

 

Vejo-me nas fotografias, miúdo ainda, naquele grupo em que todos eram mais velhos que eu. Mas tratávamo-nos por tu e as hierarquias eram muito mais diluídas nessa época, apesar de circular nas redacções uma frase importada das casernas: “A antiguidade é um posto”. Na hora de bulir, todos arregaçavam as mangas e aceleravam o passo: ninguém ia pavonear-se para as televisões armado em general, todos se comportavam como soldados.

Vejo-me a entrar naquela Redacção, num primeiro andar ao Príncipe Real que na sala maior funcionava como piso térreo, enquanto desfilava perante mim uma espantosa galeria de personagens de um romance que talvez ainda venha a ser escrito. Uma delas era o director do jornal, um portuense transplantado para Lisboa que ganhou fama como repórter do Diário Popular. No célebre “baile do século”, oferecido pelo magnata Antenor Patiño e realizado na última noite da vida política de Salazar, furou o veto à entrada de jornalistas disfarçando-se de empregado de mesa. Pôde ser assim o único a contar a história.

 

O director escrevia artigos copiosos – linguados, como se dizia no jargão profissional da época – que não tinha a menor paciência para rever.

Um dia, era eu ainda estagiário, chamou-me para que lhe corrigisse os erros de ortografia. E logo partia para outra prosa. Às vezes dava-me a impressão de que ele escrevia sozinho metade daquele semanário, contínuo sucesso de vendas, que ostentava como título de glória um comício em Almada em que o general Vasco Gonçalves lhe chamou “pasquim”.

Chamava-se Tempo, feliz título que define toda uma época já passada e que não regressa. Os nossos maiores concorrentes eram dois outros semanários (Expresso e O Jornal), a informação processava-se a um ritmo muito mais vagaroso do que o actual, podíamos dar-nos ao luxo de guardar notícias para só divulgar na quinta-feira.

E toda a gente lia jornais: eram frequentes as tiragens acima dos cem mil exemplares, números impensáveis para os dias de hoje. Havia quem comprasse só para ler um colunista: o Manuel de Portugal, por exemplo, era um sucesso sem par. Recebíamos chamadas de cidadãos anónimos a perguntar se podíamos “transmitir uma palavra de agradecimento àquele senhor que tanto gosto de ler”.

 

O director dos artigos copiosos era o Nuno Rocha. Morreu ontem, aos 83 anos, esquecido do mundo, alheado do fluxo informativo que durante tantas décadas o fez produzir um número incontável de notícias.

Desaparece num momento em que o jornalismo se transfigura por completo, frágil como nunca, transformado num voraz mecanismo reprodutor de desempregados em série, sem metade do prestígio social que teve nas décadas precedentes. A relação polifacetada do jornalista com a vida transformou-se numa relação estritamente monogâmica com um ecrã de computador.

O servo da gleba ressuscitou no servo da tela.

 

Nessa altura, não. Havia tempo para trabalhar no duro e tempo para nos afastarmos do som estridente das máquinas de escrever e dos telefones que não paravam de tocar, alargando horizontes, convivendo, fazendo amizades, conhecendo mundo. O Nuno Rocha tinha muitos defeitos, mas sabia dar oportunidades a quem começava. Aos 20 anos, pôs-me um bilhete de avião nas mãos e enviou-me como repórter para uma eleição na Grécia. Aos 21, mandou-me entrevistar figuras como Jorge Amado, Alvin Toffler (morreu por estes dias), Björn Borg e Jorge Jardim. Aos 22, deu-me carta branca para reformular o suplemento de artes e espectáculos, com novos temas, novos colaboradores e novo grafismo.

Continuava a escrever copiosamente, continuava a viajar como se não houvesse amanhã, ditando prosas ao telefone das mais diversas paragens. Na redacção, sempre sentado à secretária, o Chefe Peixe Dias conferia-lhe a pontuação e abria-lhe parágrafos nos textos com paciência de bom samaritano.

Chamávamos-lhe assim mesmo: Chefe – algo que nunca chamei a mais ninguém. Hoje só os cozinheiros merecem tal título, o que se adequa muito ao ar do tempo.

 

Ali, naquele semanário de direita onde não faltava gente de esquerda, fiz amizades para a vida. A Teresa e o Fernando, que me acompanham no DELITO. O António Ribeiro Ferreira, o Paulo Portas, o Carlos Santos Pereira, o Paulo Reis, o Ramos André, o Júlio Santos, o Carlos Pires, o António Duarte (o que será feito dele?), o Luís Marinho, a Helena Vieira, o Paulo Camacho, o António Fontoura, a Anabela Saint-Maurice, a Ana Guedes, o Jorge Nuno Oliveira, o Horácio Piriquito, o Jorge Botelho Moniz, o Vítor Pereira, o João Líbano Monteiro, a Eva Cabral, a Leonor Ribeiro da Silva, o Alcides Pinto, o Eduardo Sousa, o Augusto Teixeira, o Luís Costa Ribas, o Alfredo Canana. O Octávio Saldanha, o José Vasconcelos, o Ilídio Barreto e o Jorge Alves Oliveira, que nunca mais vi.

E tantos outros: Raul Alves Fernandes, Palmira Correia, Gouveia de Albuquerque, Isabel Atahide Cordeiro, Luís Fraga, Wilton Fonseca, Jorge Massada, Noé Ramos, Piedade Paulo. Alguns que já cá não estão: a Margarida Viegas, o Händel de Oliveira, o José Neto, o Albano Matos, o João Isidro, o Carlos Basto, o Jorge Pereira de Almeida, o José Paulo Canelas.

Aprendi quase tudo quanto conheço nesta profissão com quase todos eles. Porque então havia tempo para os mais velhos ensinarem os mais novos. E para os mais novos levarem na cabeça dos mais velhos. E corrigirem os textos. E reescreverem tudo desde o início, se fosse necessário.

 

Hoje imprime-se o erro sem que ninguém o detecte. Porque anda tudo a cem, porque cada um só sabe de si, porque todo o homem é uma ilha e a profissão deixou de ser um vasto arquipélago. E o jornalista – agora convertido em “profissional multimédia” nesta era já sem chefes em que a antiguidade deixou de ser um posto para ser posta de lado – quase perdeu até direito ao nome. É um número numa folha de cálculo.

Nunca a tecnologia foi tão desenvolvida. Nunca se esteve tão à distância do mundo real.

As “fontes” deixaram de ser criaturas de carne e osso, interlocutores a quem era possível encarar olhos nos olhos: tornaram-se seres virtuais, uma voz ao telefone, dois correios electrónicos, três sucintas mensagens num telemóvel.

Hoje ninguém se daria ao incómodo de se disfarçar de empregado para penetrar na festa de um Patiño: as dondocas que lá estivessem encarregavam-se da “reportagem” com trinta selfies a ilustrar. Saía na página quatro do jornal gratuito, três minutos para ler no metro, com títulos replicados nos rodapés das televisões e das farmácias de serviço entre o mais recente atentado no Bangladeche e a nova tatuagem da velha estrela do futebol.

 

O Nuno Rocha, meu primeiro director num jornal a sério, já cá não está para relatar os factos da semana. Nem o Chefe João Peixe Dias poderia voltar a aparar-lhe a prosa enquanto cofiava o bigode em gestos nervosos, de eterno cigarro a arder-lhe nos dedos.

“Se for preciso corte metade”, dizia o director. E o Chefe cortava. Outros tempos.

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