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Delito de Opinião

Santos e pecadores

José Meireles Graça, 18.11.23

Rui Ramos, Alberto Gonçalves e Henrique Pereira dos Santos pertencem ao grupo escassamente povoado das melhores cabeças que circulam no espaço público da opinião.

Cada um a seu modo, defendem a actuação do Ministério Público na Operação Influencer (excelente nome para uma marca de calças de ganga); e todos os corifeus de esquerda que circulam no mesmo espaço tocam a rebate, atacando aquele organismo, que querem domesticar de muitas formas – veja-se, por todos, o que diz Vital Moreira aqui.

Já eu entendo que quem defende o faz, frequentemente, por más razões; e quem ataca também. E como este assunto se transformou numa despropositada guerrilha esquerda/direita convém perceber, com o meu precioso concurso, o que está em jogo.

Pontos prévios: Numa sociedade democrática não tem de haver um sistema de justiça de esquerda e outro de direita; não existem modelos que se possam copiar e que estejam razoavelmente acima de críticas; nenhum sistema nos convém que ignore o que nos define como sociedade com determinada cultura e determinada tradição; a igualdade de todos perante a lei e a separação de poderes são conquistas civilizacionais, mas aquela existe para defender os fracos dos abusos do poder, seja do Estado seja dos fortes, não para que um se sobrepuje aos outros sob pretexto de que os seus agentes pertencem a uma casta de cidadãos isentos de paixões, fabricados numa madraça universitária e cultivados num aquário funcional opaco.

Que dizem então os preclaros do meu lado do espectro, resumindo (e escolhendo arbitrariamente alguns trechos de textos, não adiantaria recensear e tentar contrariar todos)?

Rui Ramos

Acham que António Costa se teria demitido sabendo que, apesar das suspeitas do Ministério Público, nada de sério se passava com os seus colaboradores e amigos? É óbvio.

Creio que António Costa tem provavelmente mais culpas no cartório do que estas que lhe assaca Rui Ramos. Mas as minhas convicções não servem para fundamentar investigações e as dos magistrados do MP também não. O que as fundamenta são indícios sérios. E como desses indícios o que se sabe é nada, e como o MP nos habituou a achar normal que inquéritos sejam conduzidos com afloramentos na praça pública ao longo de anos, resulta que os indícios não podem ser débeis ao ponto de que talvez haja actividade criminosa ou talvez não, mas entretanto o político fica com a carreira num caco porque o eleitor comum de decisões subtis sabe nada. O que sabe, ou julga saber, é que onde há fumo há fogo. Significando isto que os magistrados do MP têm o poder de destruir carreiras públicas com base em palpites. Dir-se-á que muitas diligências intrusivas são validadas por juízes (escutas, buscas domiciliárias ou em escritórios de advogados, etc.) Mas nenhum juiz valida o que não lhe é proposto, e ficaria decerto mal visto se fosse demasiado exigente: o investigado não é colega da mesma profissão, nem peixe do mesmo aquário, nem a decisão tem a mesma exigência da de uma verdadeira sentença judicial.

Vamos agora fingir que o crime de tráfico de influências já não é crime? Acham que basta chamar-lhe lobbying? Tenham então a coragem de legalizar o favoritismo e a obtenção de vantagens na governação.

Vamos. O lobbying é a codificação do que tem fronteiras mal definidas e consiste precisamente na “obtenção de vantagens”. Para isso não é preciso coragem, mas a constatação humilde de que mais vale fazer relativamente transparente o que é opaco do que confiar em maquinarias de investigação onde a ignorância do mundo real vai com frequência de par com inevitáveis preconceitos.

Assumam que o Estado e o país são só para os socialistas e os seus amigos, e que todos os outros portugueses estão a mais. Determinem que só há lei para quem não tem cartão de militante socialista.

A conjugação das tradições portuguesas de tolerância para com a corrupção (não faltam políticos que são eleitos e reeleitos apesar de o eleitor não ter qualquer dúvida de que são corruptos) e de desprezo pelos que são apanhados faz com que que o MP não precise de mais nada do que a passagem para a opinião pública de um qualquer indício que está a ser investigado e isso é o bastante – Costa sabia que se não desse à sola iria ser cozinhado em lume brando. Que no caso tenha apanhado a oportunidade para sair pela porta das vítimas, ou por ter receio do futuro próximo, que talvez não seja de rosas, não releva para o caso. E a psique nacional é tão estranha que não é impossível ser condenado e mesmo assim reeleito localmente. Mas nem o que se passa no plano local é traduzido para o país nem, mesmo localmente, se pode dizer que a acusação ou condenação é uma recomendação.

O tráfico de influências serve a economia nacional?

Não, não serve. A intromissão do MP no processo político, desde logo com acusações maximalistas que por si indiciam uma sanha persecutória, também não serve.

Não, a demissão do primeiro-ministro e a dissolução da Assembleia da República não resultaram das pretensões e das pressas de um pequeno número de magistrados.

Resultaram, como os factos demonstram. Que os magistrados quisessem ou não esse resultado irreleva.

Os actuais líderes do Partido Socialista – os que se demitiram e os que agora são candidatos – já provaram não serem capazes de assegurar esse regular funcionamento [o das instituições democráticas]. São hoje, objectivamente, um limite ao desenvolvimento do país e uma ameaça à democracia.

O passo do raciocínio é maior do que a perna. Porque os líderes actuais (e também os recentes) do PS já provaram muitas coisas, todas elas negativas. Mas ainda ninguém alegou que as eleições fossem fraudulentas ou fora dos prazos ou em clima de falta de liberdade de expressão. Donde, o que temos é o que o eleitorado quer que tenhamos. Lamentável, decerto, mas sem necessidade de novos actores que não sejam os que se dispõem a disputar os favores dos eleitores.

Alberto Gonçalves

… disseram que o Ministério Público (MP) perpetrou um golpe de Estado para prejudicar um estadista sem rival na História Universal dos Estadistas, pelo menos desde que o “eng.” Sócrates caiu em desgraça e na Ericeira.

Pelo que me diz respeito não disse bem isso mas não andei completamente ao largo. Somente lembro que o “eng.º” Sócrates não era PM aquando da tourada espalhafatosa em que foi detido.

Talvez seja útil acrescentar que, pelo meio, os portugueses votam. Votam com a atitude do sujeito que dá marteladas na cabeça por acreditar que a próxima vai fazer-lhe bem, mas votam. Com curiosa frequência, portentosa amnésia e desmesurado optimismo, votam no PS…

Pois votam. Acho uma abominação que votem assim, e a verdadeira razão do nosso deslizar para os últimos lugares do desenvolvimento. É porém um direito que lhes assiste, como aos reformados cujas conversas ouço diariamente no café e que dizem uma quantidade prodigiosa de asneiras sem que eu me dê ao trabalho de mudar de mesa.

Sonho com o dia em que a vasta maioria dos cidadãos descubra uma evidência: a de que um partido que em larga medida ocupa e domina o Estado dificilmente é alvo de maquinações e injustiças.

Eu não sonho exactamente a mesma coisa, preferia que a vasta maioria dos cidadãos desejasse que o Estado não estivesse tão presente em todas as esquinas da vida e da economia. Porque, se estiver, e mesmo que o partido fosse outro a permanecer no poder tanto tempo, os cavaleiros andantes do MP pouco mais poderiam  fazer do que, como agora, criar uma enorme convulsão pondo-se em bicos de pés. Convém ter presente que, de futuro, é provável que os telefones sejam à prova de escutas, as reuniões em locais discretos (e não em restaurantes, detalhe quase cómico que anda no processo) e, se isso não chegar, a criação de serviços com poderes majestáticos para investimentos específicos. Sobretudo como estes, dos quais nem eu nem quase ninguém, incluindo os magistrados, entende pevas.

Na quinta-feira, à saída do Conselho de Estado, o dr. Costa afirmou que “O país não merecia ser chamado novamente a eleições”. Pois não. Sobretudo se não as aproveitar, como não vai aproveitar, para enterrar em definitivo o PS.

Talvez sim e talvez não. Porém, o que é líquido é que o processo não será encerrado a tempo porque a tradição é acusar para investigar (e, de preferência, com os arguidos presos) e não investigar para acusar. De modo que a vitimização talvez funcione, caso em que será pior a emenda do que o soneto.

Henrique Pereira dos Santos

É normal ser investigado, eu já devo ter sido investigado (ou pelo menos decisões em que participei) meia dúzia de vezes, quer pelo sistema judicial, quer pelo jornalismo, quer dentro de processos administrativos, e isso nunca me incomodou. Se há dúvidas, investiga-se, esse deve ser o princípio geral. Volto a repetir, ser investigado é o normal, há organizações que estão sistematicamente a fazer auditorias internas, em especial nos departamentos mais sensíveis, e o que é pena é que isso não aconteça, de forma sistemática, na generalidade da administração pública.

Excelente princípio. E esses serviços investigados, e os respectivos funcionários, podem perder eleições e verem as carreiras cassadas pelo mero efeito das investigações?

Os meus amigos que estão sempre irritados com o Ministério Público, que acham incompetente, abusivo, pouco respeitador das liberdades individuais, tendem a confundir a condenação ou isenção de culpa, matéria que se trata nos julgamentos, com os efeitos sociais das notícias sobre investigações judiciais, e portanto ficam horrorizados com o que aconteceu, por exemplo, a Miguel Macedo (para não falar sempre dos mesmos). Dizem que a vida de Miguel Macedo ficou destruída. Não é verdade, a sua carreira política ficou destruída, a sua vida ficou prejudicada, mas não pelo Ministério Público que investigou, mas pela sociedade que equivale escrutínio a condenação.

Sou um desses que está irritado (moderadamente, a idade e o feitio não autorizam grandes excitações). O argumento, porém, não convence porque é óbvio que nenhum ministro tem condições para o ser com autoridade se estiver embrulhado em acusações pelo aparelho judicial. De resto, precisamente as mesmas pessoas que acham, como Henrique Pereira dos Santos, que a decisão de renunciar é inteiramente voluntária, reclamariam a demissão se o acusado fosse de partido antipático. É um processo de intenções que lhe faço? É.

A ideia de que o Ministério Público deve subordinar as suas investigações e acusações a critérios de oportunidade política e à probabilidade de afectar a vida de pessoas e depois, afinal, não ter razão nas acusações, é uma ideia muito mais perigosa socialmente que a ideia de que o poder não precisa de ser escrutinado por quem não tenha medo de o escrutinar.

Ao que o Ministério Público se deve subordinar é à necessidade de acusar com consistência, investigar com segredo, evitar expedientes medievais (como prender gratuitamente nos casos em que uma simples notificação para comparecer no dia xis seria suficiente) e sim avaliar as consequências. Havia magistrados no direito romano que só podiam ser processados no fim do mandato. Sem ir tão longe, e para ilícitos menores, talvez não fora despropositado, para não dar demasiados poderes a quem não responde pessoalmente por decisões precipitadas, erróneas, preguiçosas ou ineptas, consagrar na prática um princípio de oportunidade.

… nada disso é razão para dizer que o Ministério Público não deveria ter o poder de investigar o que acha que é criminalmente relevante.

O que está aqui em causa não é uma investigação, são as prisões preventivas, as acusações delirantes (o juiz de instrução não absolveu, nem suponho que fosse razoável esperar que o fizesse, mas deixou cair as acusações mais graves, precisamente o cerne do processo), o trombetear de diligências e as consequências. O MP recorreu. Não paga custas, tem o tempo que for necessário, e os magistrados que acusaram não verão as suas carreiras prejudicadas pelo falhanço se, como é provável, ele se verificar. E eu, se fosse magistrado, teria vergonha de prender um autarca durante seis dias (ou sequer um) porque agilizou não sei quê e fez com que umas iniciativas da terra fossem subsidiadas. Ser preso, no sistema americano, é uma banalidade, mas a americanização dos costumes, como a fast-food, é dispensável.

Finalmente: o Ministério Público (e os juízes de instrução, se forem da variedade que sanciona prisões para investigar) conta com a benevolência da opinião pública: é para os poderosos verem, que não são mais do que os outros. Somente o problema está posto ao contrário: se assim se tratam os que veem os seus casos esparramados nos jornais, o que não farão aos pobres diabos que ninguém conhece?

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