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Delito de Opinião

Saneamentos

José Meireles Graça, 06.07.21

Em tempos, o Facebook suspendeu-me um amigo por 30 dias, por causa de uma piada qualquer aparentemente racista (e que fosse, a piada e ele; mas, incidentalmente, o amigo em questão de racista tem nada). Irritado, escrevi um texto onde reflectia sobre as redes sociais.

Acabava assim: Fizeram-me falta os 30 dias do meu amigo. Não é esquerdista, não é preto nem cigano, não é pobre nem explorado, não é situacionista nem convencional. Azar dele: os tempos vão para quem pensa como deve ser; para os outros há suspensões.

De então para cá o mesmo incontinente verbal já foi suspenso várias vezes, pelas mais diversas razões, e calhou conhecê-lo em pessoa: é, como previa, igual ao que previa. Se vivêssemos na mesma cidade, é provável que frequentássemos o mesmo café, nos sentássemos às mesmas mesas e asneirássemos com pertinácia, à vez; e seguro que com ele aprendesse alguma coisa porque isso é o normal quando se têm percursos de vida, experiências, formações e interesses muito diferentes, se houver um fundo inato de tolerância, curiosidade, alguma coisa para a troca e predisposição para levar o mundo, sempre que possível, na desportiva.

O Facebook é um café em ponto grande, tão grande que há uma quantidade infinita de grupinhos que não se podem ver uns aos outros, e numerosos clientes dos quais a prudência aconselha a manter uma confortável distância. Mas todos têm o direito de beber a sua meia-de-leite, ou a imperial, ou o bagaço, ou o que seja, é ao gosto de cada qual. E se o camarada tem por hábito arrotar, ou cuspir, ou mesmo vomitar, o espaço sobra e por isso o dono do estabelecimento não se incomoda, até porque os bêbados e os malcomportados tendem a juntar-se uns aos outros ou, quando venham às mesas dos civilizados, serem acolhidos com fleuma nuns casos, e com abundância de pontapés noutros.

Não se incomoda com isso, e faz muito bem, mas três coisas lhe importam: a primeira é que se diga mal do Governo; a segunda são mentiras; e a terceira a nudez.

Governo é como quem diz, não é bem isso: é mais um conjunto de ideias que acha que desagradam aos costureiros das tendências e à maioria dos clientes. Mentiras também não, é mais, além das propriamente ditas, verdades ou hipóteses que não tenham chancelas oficiais dos mandarins do pensamento. E nudez porque, coitado, é americano e lhe ensinaram de pequenino que é pecado, além do que muitos clientes são também daquela infeliz nacionalidade, ou não são mas ingeriram na infância quantidades consideráveis de pudicícia e hipocrisia.

Pois bem: há dias o meu mural, velhinho de dez anos e pesado de milhares de histórias, fotografias, links, reflexões, levou completo sumiço: nada, zero, niente, kaput. Alguém num servidor em Denver, Colorado, alterou a palavra-passe e o endereço de e-mail, de modo que semelhante arca do tesouro estará talvez perdida para a humanidade, que ficará com certeza impassível enquanto eu furibundo. Adiante, que talvez o meu eu pretérito ainda venha a renascer.

Sucede que outro amigo, da variedade com vastíssima plateia, notoriedade pública e créditos firmados como autor de crónicas, no caso sobretudo sobre assuntos económicos e de políticas públicas, reproduziu há dias uma capa da revista Playboy onde aparecia a Lenka do Preço Certo de mamas ao léu, num comentário. No dia seguinte, ao querer publicar um link para outro assunto, ficou ciente de que estava impedido de o fazer. Chegou-lhe a mostarda ao nariz e bazou de vez – não está para aturar insolências moralistas de uns merdas que ninguém sabe quem são e que, quase planetariamente, decidem o que se pode e não publicar num meio que só teve o sucesso que teve, e que se traduz em incontáveis milhões para os proprietários, porque deu voz a quem não a tinha, ou permitiu ampliar os púlpitos de alguns pregadores, preservando o direito de cada um ler apenas o que lhe interessa, escrever para grupos ou, se houver audiência, um público mais vasto, e interagir com quem aceite interacções.

Grandes burros, o sucesso cega-os: quase toda a gente é conformista e aprecia indignar-se contra os que não o são. Mas são estes o chamariz, o exercício da liberdade de opinião incomoda mas a sua ausência acaba por fazer os ambientes enjoativos.

Suponho que se vai arrepender: quem está habituado a um café imenso achará qualquer outro acanhado; e o paleio de que há coisas muito mais produtivas para fazer, sendo de conteúdo verdadeiro, deixa de lado que pois sim mas nem só de pão vive o homem – também vive de se irritar com disparates, dar umas ensinadelas nos dias bons a alguns pedantes, receber outras nos maus, aturar uma turba de irrelevantes, aprender alguma coisa sobre o que lhe interessa e o que julgava que não lhe interessava, e divertir-se no durante e nos intervalos.

A mim, que porque sou velho sou mais sensato (também já era em novo, mas não quero pôr-me para aqui com gabarolices), não é impossível que isto irrite mais do que a ele. É genericamente um tipo de esquerda, no sentido de que liga muito mais importância à igualdade material entre os cidadãos, e tem muito mais confiança nos poderes demiúrgicos do Estado, do que eu. Mas não é um idiota que diz coisas porque sim, antes se dá ao trabalho de as medir, e como é de profissão professor de economia, usa ancorar-se em doutrina, estudos, pareceres, tudo embrulhado em despretensão, a que soma uma declinação própria. Por último, e sem ser o menos, não se leva demasiado a sério, em contraste com a suficiência que é quase uma marca d’água da profissão, e aprecia discretear nas redes sobre o que se chama a espuma dos dias, a qual não é menos saborosa do que a na parte de cima de um fino (imperial, para quem viver nas partes para onde o Saara se vai expandir primeiro) bem tirado.

O Facebook vai fazer-lhe falta, e ele a mim. Razões porque o aconselho a fazer o que se fazia nos tempos da Velha Senhora: encontrar maneiras de dizer o que se quer de forma que os coronéis deixem passar.

Somos muitos a apreciar-te, Luís Aguiar-Conraria, mesmo na versão light, que não é a mesma dos artigos de opinião. E se isso não te diz grande coisa, informo que também não falta quem não te grame: queres dar-lhes essa alegria?

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