Sabores da Memória
Um dia destes, durante um almoço em casa da minha mãe, alguém se atreveu a invocar o santo nome do rolo de bacalhau da Covó em vão. E digo em vão porque não há quem dê com a famosa receita.
Do meu lado, era capaz de jurar que estava guardada numa caixa rectangular, daquelas de lata, ensanduíchada entre um papel rascunhado com o segredo das filhoses de abóbora e outra nota com indicações para os ovos enrolados. A minha mãe jura que se perdeu nas brumas das arrumações. O problema foi que, depois de enunciada a fatídica lembrança, as papilas gustativas de toda a família desataram a salivar em excessos saudosistas.
Com muita pena, não cheguei a conhecer a Covó: uma tia-avó a cheirar a bolo que se despediu do mundo poucos meses antes de eu chegar. Mas o rolo de bacalhau, graças a Deus, foi perpetuado por mais um rol de tempo pela Céu, uma empregada da minha avó que tinha um lugar tão seguro nos nossos corações que até passava os Natais connosco.
Acontece, porém, que a Céu foi viver para a terra vai para mais de 20 anos e o que é certo é que nunca mais ninguém meteu o dente num rolo de bacalhau daquela categoria.
Vai daí que o meu irmão, depois do incontornável almoço, alinhavou meia dúzia de indicações da minha mãe e resolveu encetar a empreitada de delegar na Patrocínia, uma cozinheira de mão-cheia, a reconstituição da famosa iguaria.
Foram-se fazendo experiências. Primeiro estava atirar para o soufflé, depois ficou abatatado em demasia e, por fim, lá pela quarta tentativa, já se tinha conseguido uma aproximação bastante razoável. Mas, confessava o meu irmão, se era certo que se tinha acertado na textura, ao sabor ainda lhe faltava qualquer coisa. Um tempero, um ingrediente, uma qualquer especiaria que ele não conseguia identificar mas que remetia irremediavelmente esta versão para a segunda divisão dos rolos de bacalhau.
Fui forçada a chamá-lo à razão. O ingrediente que ele procurava era a essência da Covó e da Céu. E isso ainda não é coisa que esteja à venda no Pingo Doce.