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Delito de Opinião

Saber escrever, saber escutar

Pedro Correia, 02.08.14

 

O Joel Neto escreve aqui algo que há muito penso também sobre tradução: é infelizmente cada vez maior o número daqueles que entre nós cultivam a tradução literal de textos literários, à margem de considerações estéticas, como se estivessem a traduzir um relatório árido e burocrático. Sem entenderem, como o Joel salienta -- e muito bem -- no diálogo com um leitor na caixa de comentários do seu blogue, que "um livro inglês traduzido para português é um livro português. As únicas regras a que tem de submeter-se são as do português. Inclusive do ponto de vista melódico".

Não perceber isto é nada perceber de essencial nesta matéria.

 

Qualquer texto em português, ainda que possua matriz estrangeira, torna-se património da nossa língua. Com as suas particularidades, o seu ritmo, a sua semântica muito própria, a sua inconfundível eufonia. Porque cada idioma tem a sua própria cadência musical. Não sabe escrever quem não sabe escutar.

O sujeito elidido ou subentendido é uma dessas características que conferem subtileza ao nosso idioma. Enquanto noutras línguas, designadamente o inglês, as regras determinam a menção expressa do sujeito, a nossa regra impele-nos à omissão do nome ou até do pronome assim que ele nos tenha sido apresentado.

Um exemplo básico:

"Clara went away. She left everything behind."

Não faz sentido traduzir este trecho assim:

"Clara foi embora. Ela deixou tudo atrás de si."

Mas já fará sentido traduzi-lo desta maneira:

"Clara partiu. Deixou tudo para trás."

 

 

A propósito, não sei se já repararam. Esta é uma das maiores diferenças entre os diálogos pretensamente "naturais" ou "realistas" das telenovelas e os diálogos da vida real:

- Ó João, vamos sair esta noite?

- Não posso, Maria. Tenho que trabalhar.

- Ó João, mas tu tinhas prometido...

- Eu sei, Maria. Mas não posso mesmo.

São duas pessoas lado a lado num sofá (nunca falta um enorme sofá em qualquer telenovela). Tudo muito solto e despachado. Único problema: ninguém na vida real fala assim. Quantas vezes mencionamos o nome da pessoa que se encontra ali em casa, à nossa frente, trocando connosco umas frases banais do quotidiano?

Estamos perante um truque retórico que os autores dos guiões utilizam para ajudar os espectadores a memorizar o nome das personagens. Mesmo à custa da verosimilhança que dizem cultivar com esmero e afinal desmentem em cada frase.

 

A tradução literária, quando é competente, não se ocupa apenas do idioma: ocupa-se da qualidade da escrita. Não numa pretensa fidelidade à letra original levada ao extremo, mas na fidelidade ao espírito do autor para melhor o reproduzir no texto traduzido.

É aliás neste sentido que se diz com frequência que As Minas de Salomão, de Henry Rider Haggard, "ganharam" qualidade literária na célebre tradução de Eça de Queirós. Ou, em sentido inverso, ainda hoje nos chegam os ecos da tradução francesa do romance A Selva, de Ferreira de Castro, feita por Blaise Cendrars -- que alguns garantem ser superior ao original.

 

Como é frequente dizer-se, o tradutor trai. É um facto. E ainda bem: nunca nenhum texto, ao ser transposto para outro idioma, será traduzido de forma competente através de uma simples colagem de vocábulos.

Costumo ilustrar isto com títulos de filmes. Nunca saberemos quem se lembrou de traduzir Gone With the Wind por E Tudo o Vento Levou, algo muito mais intenso e radical. Mas devemos estar gratos a tal pessoa. Porque o título português, que se tornou uma expressão idiomática, faz sentido no contexto e adequa-se ao conteúdo. "Levado (ou levada?) pelo Vento", tradução literal na voz passiva, deixa-nos tão indiferentes como se estivéssemos a contemplar uma parede de tijolos.

E nunca poderemos agradecer bastante a quem se lembrou do título Bem-Vindo, Mr. Chance para baptizar em português a obra-prima de Hal Ashby protagonizada por Peter Sellers. Ao ponto de não faltar quem garanta que o título original deste filme de 1979 é "Welcome, Mr. Chance".

Não é: chama-se Being There.

Mas algum de nós guardaria dele tão boa memória se algum burocrata de turno, como se recebesse um relatório para traduzir, lhe tivesse chamado "Estando Ali"?

 

Em cima: fotograma do filme Bem-Vindo, Mr. Chance

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