Rua Tolstoi
Nikita Krushchev aprovou em 1954 um decreto que transferia a Crimeia, península do Mar Negro, da república soviética russa para a república soviética ucraniana. Mal imaginava o líder da URSS que este gesto simbólico, duas gerações depois, estaria na origem de um conflito que ameaça transformar-se no detonador da III Guerra Mundial. Avancemos 60 anos. Em 2014, a Rússia invadiu a Crimeia e apoderou-se daquele território, que considera crucial para a sua sobrevivência como potência nuclear e império com ambições. Seguiu-se uma guerra civil de oito anos no Donbass, entre Kiev e separatistas. Em 2022, a Rússia invadiu toda a Ucrânia e, para a opinião pública, é como se a história tivesse começado nesse ponto.
Um ano depois da invasão, as baixas ucranianas são superiores ao que se dizia, mobilizam-se velhos e adolescentes, a Ucrânia transforma-se num país de memórias e de viúvas. Fugiram cinco milhões de pessoas para a Europa Ocidental, três milhões para a Rússia.
Khushchev não podia conceber nada disto, ou que a rua Lev Tolstoi, em Kiev, mudaria de nome para rua Pavlo Skoropadsky, general do império russo, cossaco, monárquico, suportado pelos ocupantes alemães numa brevíssima república ucraniana, em 1918. Este general exilou-se na Alemanha, onde morreu, em 1945, vítima de bombardeamento aliado. O líder soviético olharia para o seu contemporâneo Skoropadsky como um inimigo irrelevante, figura trágica e derrotada.
Abril de 2023: as autoridades mudaram o nome de centenas de ruas, retirando todas as estátuas e nomes de pessoas de origem russa. Os sacerdotes e fiéis da igreja ortodoxa russa estão a ser expulsos dos seus locais de culto e milhões de livros escritos em russo foram destruídos. A história começou a ser alterada, a língua e a cultura russa serão apagadas. Khrushchev não podia efabular nada disto, sendo estranha a bênção da UE, que promete a Kiev uma adesão rápida. A oposição e as televisões pró-russas foram suprimidas e a Europa olhou para o lado; agora, intensificam-se detenções e perseguição religiosa, mas os europeus ficam em silêncio.
Russos e ucranianos a matarem-se uns aos outros por causa de um presente simbólico? Khrushchev não podia imaginar, mas deu nisto: quando a guerra terminar, será concretizada uma nova limpeza étnica no espaço europeu, algo de impensável em 1954; os ucranianos russófonos terão de emigrar e haverá na Europa Oriental mais um país puro, de bom nacionalismo.
imagem Night Café, (IA)