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Delito de Opinião

Ronaldo e Harden

João André, 11.09.24

Há nas análises à NBA um comentário que surge com frequència: a Época Regular (ER, Regular Season) não interessa. Claro que isto é rapidamente desmentido: são 82 jogos por equipa, os jogadores desenvolvem sistemas, química, dinâmicas, os treinadores afinam pormenores e procuram as melhores formas de explorar os seus pontos fortes e limitar os pontos fracos. São também a principal parte da acção do ano e ainda oferecem o interesse de atribuir os prémios da ER: MVP, DPOY, ROY, All-NBA, All-Defensive, etc. Para combater o menor interesse das equipas e audiências, a NBA até adicionou um torneio durante a ER para motivar mais as pessoas. No entanto toda a gente percebe o conceito da ER: as equipas mais fortes afinam motores para os play-offs (PO), as do meio tentam chegar aos PO, as mais fracas trocam jogadores, procuram jogadores no Draft e jogam com o tecto salarial para poder crescer no futuro. O interesse passa portanto muitas vezes para os cerca de 2 meses a partir de meados de Abril quando começam os play-offs.

Isto soa a algo que já vimos, não? Talvez nas competições europeias, especialmente na Liga dos Campeões, a uma fase de pré-eliminatórias que só interessam aos adeptos das equipas nelas envolvidas, a uma fase de grupos que queremos excitante mas regride habitualmente para um passeio para os mais poderosos - com uma ou outra surpresa a polvilhar a acção - e só começa realmente a excitar no final do Inverno, quando os jogos a eliminar surgem a sério. O mesmo se pode dizer dos jogos de selecções, os internacionais. Os Campeonatos da Europa e do Mundo têm crescido de tal forma em tamanho que só desastres eliminam os favoritos (olá Itália!) e mesmo quando não têm bons torneios, acabam por ter mais oportunidades para se apurarem através dos play-offs de "repescagem".

No entanto é nos play-offs (NBA) e fases finais (futebol) que os torneios são ganhos e é ali que tudo muda. Na NBA, a rotação de jogadores que anda pelos 10-12 jogadores na ER passa para uns 7-8 nos PO para evitar ter elos mais fracos a explorar. As fraquezas das equipas adversárias - jogadores que não defendem bem, jogadores com lesões, fraqueza nos ressaltos, etc., são exploradas impiedosamente para se obterem quaisquer vantagens. As tácticas das equipas são afinadas ao mais infímo pormenor e ajustadas de acordo com o adversário e o jogo anterior. No futebol, o mesmo se passa, especialmente nas fases finais de torneios de selecções. As semanas antes do torneio são o único período de tempo que seleccionadores têm para preparar as equipas e afinarem as suas tácticas. Nesses momentos, os mais bem sucedidos tendem a ser pragmáticos e adaptam tácticas aos jogadores que têm ou simplificam tudo e seguem para um estilo mais defensivo, dado que é mais fácil de preparar que movimentos atacantes mais fluidos.

O que também se vê em play-offs e fases finais é um desaparecimento de estrelas. Na NBA isso tem-se visto em jogadores como Joël Embiid, um enormíssimo jogador, altamente dominante, mas que tem o maus hábito de desaparecer nos play-offs, em parte devido a problemas com lesões. O mesmo se viu durante anos com James Harden, que marca pontos como se aquio fosse a coisa mais fácil do mundo na ER mas depois desaparece nos PO. Há razões individuais para isso, claro - Embiid tem frequentes lesões e Harden tem um jogo tão centrado em si mesmo (os americanos usam o termo heliocentrico) que poderá estar esgotado quando joga nos PO. No entanto também é verdade que se na ER as defesas não irão necessariamente dar 100% para evitar que um gigante de 2.13m, 127 kg e pés de bailarina chegue ao cesto, nos PO pará-lo será não só uma necessidade quando a parada sobe, mas é também um ponto de honra, mesmo para os jogadores mais modestos (assumindo que entram no court). E isto sem falar nas mudanças de tácticas para parar os melhores jogadores adversários (ou, no caso de alguns como Nikola Jokić, aceitar que não podem ser parados mas então limitar a produção dos companheiros de equipa).

A solução mais fácil surge quando o adversário é heliocentrico, ou seja, quando tudo anda à volta da sua estrela. É o caso das equipas dos Houston Rockets que tinham James Harden. A solução passava por lhe tornar a vida tão complicada quanto possível, atacá-lo na defesa para o cansar e esperar que implodisse. Só as equipas que saíam dessa lógica conseguiam depois ultrapassar os seus adversários, coisa que é difícil no basquetebol quando há apenas 5 jogadores de cada lado em cada momento.

No futebol podemos ver o mesmo. Os jogadores que destroem os adversários que têm pela frente, que dominam jogos, marcam golos, dão assistências e ganham prémios individuais. Alguns só o fazem com equipas mais fracas, outros fazem-no com qualquer tipo de adversário. No entanto, quando chegam às fases finais, quando cada jogo é de grande importância, o jogo torna-se mais difícil. Os espaços desaparecem. Os adversários lutam como se as suas vidas dependessem daqueles 90 minutos e trocados. Mesmo os adversários mais fracos tornam a vida mais difícil aos favoritos e podem, pelo menos num dos jogos, deitá-los ao tapete. É nesses momentos que as estrelas se vêem, costuma dizer-se, mas isso é mais cliché que realidade. Desde 1986 e 1990 (Maradona) que não há um jogador que carregue a equipa às costas para uma vitória ou final. Há, claro, jogadores que brilham em alguns momentos, até mais que uma ou duas vezes, mas nenhum carregou a sua equipa do início ao fim e/ou a salvou consistentemente quando precisava. Os vencedores são as equipas que se adaptam, onde as estrelas percebem quando se devem sacrificar para favorecer a equipa, onde o seleccionador faz ajustes para corrigir erros, reduzir riscos e explorar fraquezas adversárias. E, como o futebol tem 11 jogadores para cada lado, as estrelas serão menos decisivas que no basquetebol, onde tocarão na bola a cada 15-30 segundos.

Isto para falar de quê? De Cristiano Ronaldo. Ronaldo é um dos maiores jogadores da história do futebol e consensualmente o seu maior goleador. Os 900 golos (e 901º uns dias depois) oficiais que atingiu na carreira na semana passada é um número que nem sequer faz sentido escrever. Isto em cima dos restantes títulos individuais e colectivos que conquistou. A discussão sobre quem é o melhor do mundo de sempre (ou dos últimos 15 anos) continuará mas o seu nome estará sempre na discussão. Pegando na pergunta de Ronaldo «E o meu passado?», a resposta só pode ser: é único. A pergunta é: e o presente? É que a meu ver Ronaldo, hoje em dia, assemelha-se acima de tudo a um James Harden. Um jogador que continua a marcar muitos golos na sua liga (mesmo que de terceira categoria) e até nos jogos de qualificação internacionais, mas que quando chega às fases finais vai desaparecer, porque o jogo sobe de dificuldade, os adversários se preparam para ele e a equipa, sob as ordens de Martinez, parece jogar principalmente para ele. Note-se: Ronaldo não deixou de saber marcar golos. Só que a idade não é só um número, é uma ralidade. Se fosse só um número Ronaldo continuaria no Real Madrid e a ganhar Ligas dos Campeões. Isto nada tem de mal. Toda a gente envelhece, se torna mais lenta e menos capaz fisicamente, até espécimes únicos como Ronaldo. Só que fingir que assim não é dá em resultados como os do último Europeu: uma equipa pejada de talento (tanto que deixa em casa nomes que seriam titulares em mais de 50% das restantes selecções) que afunila o jogo para a sua estrela e torna o jogo fácil de defender.

Apesar de eu ser da opinião que Ronaldo, com o que deu à selecção, deveria anunciar a sua retirada da mesma, receber uma homenagem (idealmente no Estádio de Alvalade) com enorme festa, pompa e circunstância (talvez a 10 de Junho para receber meia dúzia de comendas de uma só vez), não significa que seja essa a única solução. Ronaldo ainda contribui de forma óbvia para Portugal. O seu jogo pode passar por sair do banco e jogar num sistema de dois avançados para poder sobrecarregar defesas ou, uma vez que continua a ter uma certa gravidade (no sentido físico de atracção de outros corpos), pode seguir para outros terrenos e arrastar defesas e assim abrir espaços para colegas (como Morata, Giroud e Guivarc'h fizeram pelas respectivas selecções quando venceram títulos). Ser portnto uma diversão. Mas isso significa sacrificar-se pela equipa, aceitar menos protagonismo para que a selecção beneficie*. Se é capaz de o fazer não sei, mas detestaria vê-lo como um James Harden, que à medida que envelhece e perde velocidade, as equipas adversárias passam a ver como uma vantagem, em vez de um risco.

* - já agora, isto lembra-me de um jogo de Portugal numa fase final. O adversário tinha identificado William Carvalho como o jogador que conduzia a bola a meio campo e como tal talvez o jogador chave a eliminar do tabuleiro. Para isso tinham designado um jogador para se encostar a William e nunca sair de perto, mesmo quando a bola andava noutros terrenos. Tendo percebido isto muito depressa, William Carvalho começou a arrastar o médio que o marcava para locais onde a bola não estivesse, assim criando um jogo de 9 contra 9 (jogadores de campo) que beneficiava Portugal e criando um buraco no meio campo adversário. Um exemplo claro de inteligência e sacrifício pessoal.

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