Reviver o passado em Caminha
Devido à profissão dos meus pais, ambos professores, passei a infância a saltitar de terra em terra. Quando fiz 12 anos vivia já na oitava casa onde morei, em cinco terras muito diferentes.
Na altura, como julgo ser normal acontecer com qualquer miúdo nas mesmas circunstâncias, isso entristecia-me. Porque me sentia incapaz de cultivar amizades de infância que perdurassem para a vida. Hoje, pelo contrário, considero que esta constante itinerância produziu efeitos muito mais positivos do que negativos. Graças a ela, posso gabar-me de ter várias terras em vez de uma só.
Há quem não valorize isto, mas eu gosto de sentir que fui dispersando raízes por diversos quadrantes a que de algum modo posso chamar meus. Mesmo quando estou muitos anos sem visitá-los. Tem-me acontecido por estes dias, aproveitando as férias de Junho. Passei toda a semana anterior numa das minhas terras adoptivas: Tavira, que frequento com raras intermitências desde há vinte anos.
De um dia para o outro, no entanto, decidi rumar do extremo sudeste ao extremo noroeste do País. Confirmando que bastam oito horas para atravessarmos Portugal de lés a lés. E cá estou em Caminha, onde não pousava há três décadas. Não por falta de vontade mas por falta de oportunidade.
Ainda bem que voltei. Porque esta é uma das paisagens da minha infância. Vivi três anos em Viana do Castelo e fazíamos praia um pouco onde calhava, ao longo da estrada nacional 13: Carreço, Afife, Vila Praia de Âncora. Há poucas horas passei defronte da antiga Pensão Meira, hoje um orgulhoso hotel de Âncora, onde a família se alojava durante parte da estação estival.
Mas as minhas melhores memórias infantis de Verão são daqui, da foz do Rio Minho que tenho neste preciso momento defronte dos meus olhos. Do areal de Moledo, onde pela primeira vez vi pára-ventos, presença obrigatória nas praias minhotas batidas pela nortada. Das águas plácidas do rio, que frequentávamos quando o oceano ficava mais agitado. Da aprazível mata do Camarido, com o seu parque de campismo e os seus aromas a flores silvestres. Das caldeiradas em família no entretanto desaparecido Pirata, situado junto ao posto da velha Guarda Fiscal
Regressei. E fiz bem. Calcorreando no presente os trilhos do passado quase como se não houvesse décadas de permeio. Eis-me de volta à marginal, que acompanha o vasto rio fronteiriço - semelhante aos cenários que transplantámos para todas as paragens onde deixámos marca, do Rio de Janeiro a Díli, de Luanda a Macau, de Goa a São Tomé.
A paisagem do passado ecoando no presente: a muralha seiscentista, a matriz, as tílias na praça central, a torre do relógio, o Coura desaguando no Minho, a silhueta tutelar da Serra d' Arga e a massa imponente do Monte de Santa Tecla, na Galiza, atraindo-nos para o outro lado da foz.
Sinto-me miúdo outra vez enquanto cruzo estas ruas. Quando cá vínhamos, abancávamos por vezes na Adega do Chico, típico restaurante familiar. Nunca mais soube dele até há dois dias, quando deparei com ele quase por acaso. Está praticamente na mesma: só deixou de haver serradura no chão, como era habitual nas adegas daquele tempo.
Até o prato mais emblemático ainda é o célebre bacalhau à Chico.
É o que peço, sentado na esplanada, enquanto escrevinho estas linhas, acompanhadas de goles de um fresquíssimo verde de Ponte de Lima - outra paisagem da minha infância que quero revisitar.
Cada vez mais me convenço que a felicidade em abstracto não passa de uma utopia: existem, isso sim, múltiplos momentos felizes.
Este é um deles. E há que aproveitá-los todos: cada qual é um pedaço de eternidade.