Reparações às ex-colónias
A treta das reparações às ex-colónias, trazida à tona no jantar com os correspondentes da imprensa estrangeira por Marcelo Rebelo de Sousa, é um assunto em que, pela natureza das respectivas causas, a esquerda e a direita não estão nem estarão de acordo. Por isso mesmo, é um óptimo tema para desviar a atenção da trapalhada das gémeas brasileiras. O assunto está aí, a esquerda brasileira no poder já pegou nele e o líder espiritual do Chega não lhe fica atrás nos decibéis. Mais uma marcelice lançada na praça pública. O interesse do país, a crescente polarização partidária, a urbanidade no espaço público e, last but not least, as suas relações familiares, nada contam face ao seu impulso patológico na busca do desequilíbrio.
Já muita coisa foi dita sobre mais este triste momento do nosso ainda Presidente, que, não haja quaisquer dúvidas, continua a beneficiar da tolerância apenas permitida aos excêntricos. Basta imaginar o que não seria se tivesse sido Cavaco Silva a referir-se a António Costa como “oriental” e por isso “lento”. Nem é bom pensar.
Relativamente à nossa suposta dívida para com as ex-colónias, vários são os pontos que podem ser lembrados e que mostram como tudo isto não é mais do que palha para entreter, e assanhar, o público.
No caso brasileiro, olhemos para o mapa da América do Sul. Salta à vista a desproporção territorial entre os países que dela fazem parte, em que o Brasil ocupa metade da área total, e a restante é dividida por doze outros países. Façamos, pois, um exercício de imaginação e imaginemos que o processo de independência da antiga estrela das colónias portuguesas tinha sido idêntico ao que ocorreu nas possessões espanholas. Imaginemos uma América do Sul composta não por treze, mas por vinte e quatro países. É fácil concluir que a paz entre estados que há décadas reina neste continente resulta exactamente do absoluto desequilíbrio entre todos eles. O processo de independência do Brasil, com todas as suas particularidades históricas, está visceralmente ligado à história de Portugal e permitiu que este colosso chegasse aos dias de hoje como um país que, além de ser um estabilizador regional, pela sua dimensão tem uma palavra a dizer à escala global. Tivesse, quem aposta no revisionismo para ganhar notoriedade, um conhecimento básico de história, assim como quem lhe dá atenção, e deste debate resultaria apenas um reconhecimento credor do mérito dos nossos antepassados comuns. Sobre a escravatura no Brasil, quem quiser mesmo pegar no assunto, que se entenda internamente com os descendentes dos antigos esclavagistas, pois são todos brasileiros.
O caso das reparações à Guiné-Bissau, Angola e Moçambique pode simplificar-se se, tal como acontece num contrato, começarmos por definir o que é que estes países são, como se formaram, como é que as suas fronteiras foram desenhadas, que ponto comum juntou sob a mesma bandeira diferentes tribos e etnias. Quem é que lutou, e morreu para que o que hoje é reconhecido internacionalmente como sendo as suas fronteiras, estejam onde estão? Faz ou não o respectivo território parte do que se identifica como país?
A natureza insular de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe altera a questão da definição das fronteiras, mas podemos também fazer um outro exercício de imaginação. Durante o processo de descolonização, foi considerada a hipótese de que Cabo Verde continuasse a ser parte de Portugal. Imaginemos que hoje este dois países seriam, tal como os Açores e a Madeira, outras duas regiões autónomas com uma Assembleia Regional, eleições regionais de quatro em quatro anos e que garantiriam aos seus habitantes cidadania europeia, assim como os fundos comunitários que privilegiam as regiões mais periféricas e desfavorecidas. Nem os líderes políticos portugueses dessa época, nem os fundadores das respectivas nacionalidades, tiveram a visão de que juntos estaríamos todos melhor. Não há forma de reparar esta falha que não é exclusivamente portuguesa.
Todos estes países, com as suas diferentes línguas locais, têm no português uma língua global, que lhes permite aceder à literatura clássica e científica, assim como a conteúdos multimédia e ao mundo digital. Pode isto entrar na conta das ditas reparações?
Ainda sobre o mesmo assunto, mas numa abordagem mais particular, já aqui escrevi sobre uma viagem que fiz à Guiné em 2013. Soube que depois de ter estado no Cacheu, junto ao antigo Forte Português, que ali foi construído o Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro. Eu, que gosto de história e de museus, gostaria de ali voltar para o visitar. Mas não consigo deixar de imaginar que numa terra onde uma pessoa pode morrer por lhe faltarem vinte euros, e que com cem euros se pode custear a anuidade de um aluno na Cooperativa de Ensino de São José, um dos poucos estabelecimentos que funcionam regularmente, para me questionar se as crianças do Cacheu, que correm pelas ruas em grupo e sem preocupações, sem médico ou escola, carecem mais do acesso a esses serviços, ou de um Memorial da Escravatura à sua porta.
É demasiada energia gasta em querer mudar o passado. Seria melhor canalizar tal empenho na construção de um futuro melhor.