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Delito de Opinião

Religião, realidade e felicidade

João André, 31.07.14

Nos últimos tempos um estudo que indica que as crianças religiosas são menos capazes de distinguir fantasia e realidade tem feito umas piscinas no Facebook. Todos os dias algum dos meus contactos o indica, seja para o apresentar, defender ou denegrir. Não tendo possibilidade de ler o estudo científico original, decidi dar uma espreitadela a artigos que o citam e acabei a ler outros artigos que referem mais uns estudos dentro da mesma área.

 

Antes de mais o óbvio: o estudo que toda a gente refere foi feito com 66 crianças e, pormenor importante, não estabelece uma clara distinção em relação às histórias fantásticas (que no exemplo usam um nome muito facilmente identificável como bíblico). As crianças seculares terão maior tendência para identificar a história fantástica como não real, mas de acordo com as notícias não existe uma divisão absoluta neste aspecto entre elas e as crianças religiosas. Num outro estudo referido aqui, o mesmo tipo de teste mas algo diferente foi também administrado a crianças. A diferença é que no segundo estudo foram usados episódios bíblicos ou, segundo o artigo, com inspiração em episódios bíblicos.

 

Os estudos são portanto limitados na extensão e poderão não ser os ideais em termos de metodologia. Haveria também que contabilizar a localização: se os estudos forem feitos em regiões de maior fervor religioso, é óbvio que a influência da religião será superior, em ambos os grupos de crianças (as crianças seculares receberiam uma educação mais reactiva à influência do meio religioso circundante).

 

Outro aspecto a considerar seria então a influência da religião ao educar crianças para serem adultos na sua sociedade. Nesse aspecto parece, segundo outro estudo, que as crianças religiosas têm uma melhor saúde mental, são mais equilibradas e felizes. Como qualquer bom cientista, o autor aponta para o facto de a causalidade não estar provada, sendo que poderá estar aqui envolvida uma questão do tipo ovo ou galinha. Por outro lado, outros estudos indicam que a religião não é necessariamente um factor importante para o desenvolvimento mental da criança. Muita da sua importância estará relacionada, mais uma vez, com o meio ambiente: num meio religioso, a religião serve como factor identificativo e de integração para a criança e - igualmente importante - a sua família. Em meios seculares, seriam crianças seculares a integrarem-se melhor.

 

Por fim há a questão da idade a considerar: estas diferenças acentuam-se durante o tsunami emocional/hormonal da adolescência mas reduzem-se na idade adulta. Isto demonstra que, no final de contas, a religião não é assim tão decisiva (positiva ou negativamente) na formação das crianças e adultos quanto muitas pessoas poderão pensar. Influencia obviamente a felicidade em função da sociedade em que o indivíduo está inserido, mas também escolhas políticas, desportivas ou amorosas o poderão fazer. Para quem é intrínsecamente religioso, a religião oferece conforto e uma sensação de pertença a algo de superior, de transcendente. Para quem é, como eu, intrínsecamente ateu, essa falta de crença oferece um outro tipo de conforto, mais intelectual e que ajuda a admirar as maravilhas pelo lado dos factos.

 

No fim de contas, o essencial será a sociedade em que cada indivíduo está inserido. Enquanto ateu, cresci num país essencialmente católico. A minha bússola moral demonstra-o claramente quando me comparo com protestantes. O mesmo se pode dizer para um amigo, ateu que cresceu num país muçulmano e outro, judeu, que cresceu num país católico. Isto deveria ser óbvio para qualquer pessoa sem ter necessidade de contar argumentos científicos (a ironia...) como espingardas.

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